leia e assista

Para Eloy Terena, da Apib, Funai usa "táticas abolidas há 100 anos" e Marco Temporal é "erosão"

Coordenador jurídico da APIB, Terena é o convidado desta semana do BDF Entrevista.

Ouça o áudio:

Eloy Terena critica Marco Temporal: "é a dimensão mais expressiva do que estou chamando de Erosão Constitucional dos Direitos dos Povos Indígenas. - Jane de Araújo/ Agência Senado
O retrato de Mato Grosso do Sul é um caso clássico de violação de direitos dos povos indígenas

As violações de territórios indígenas se avolumam todos os dias, por todo o Brasil. As mais recentes vêm do estado do Mato Grosso do Sul, onde povos da etnia Guarani Kaiowá são vítimas de uma série de ataques perpetrados por ruralistas que invadiram terras ancestrais para expandir as fronteiras agrícolas do estado. 
 
Os ataques despertaram a atenção de organismos internacionais, como a ONU, que se pronunciou apontando negligência, e em alguns casos, envolvimento direto de forças policiais nas ações criminosas. O avanço de ruralistas contra indígenas acontece enquanto o Supremo Tribunal Federal se furta a pautar a tese do Marco Temporal. 

Leia também: Empresa que faz NFTs para "preservar a Amazônia" viola direitos indígenas com aval da Funai
 
A medida, que julga o processo de demarcação da Terra Indígena Ibirama, em Santa Catarina, habitada pelos povos Xokleng, Kaingang e Guarani e que teve sua posse questionada por cerca de 300 agricultores dos municípios José Boiteux, Vitor Meireles, Itaiópolis e Doutor Pedrinho, estabelece que só poderão ser demarcadas e reconhecidas as terras indígenas ocupadas legalmente até 1988, data da promulgação da Constituição do Brasil. 
 
“[O Marco Temporal] é a dimensão mais expressiva disso que eu estou chamando de Erosão Constitucional dos Direitos dos Povos Indígenas. Porque você tem a implementação, a construção de uma tese jurídica, para negar o que está muito bem dito na Constituição, que é o reconhecimento do direito originário dos povos indígenas aos seus territórios tradicionalmente ocupados”, explica Eloy Terena, coordenador jurídico da APIB (Articulação dos Povos Indígenas do Brasil).

Saiba mais: BdF Explica | Por que os povos indígenas acusam Bolsonaro de genocídio
 
Terena, que é o convidado desta semana no BDF Entrevista publicado neste 9 de agosto, Dia Internacional dos Povos Indígenas, é do Mato Grosso do Sul, da mesma região que hoje está sob ataque de ruralistas. Mas a violência no estado não é nova. Em sua atuação como advogado por diversas organizações indígenas, como o CIMI (Conselho Indigenista Missionário), chegou a ser perseguido e teve que deixar sua terra natal. 
 
“O retrato de Mato Grosso do Sul é um caso clássico de violação de direitos fundamentais de povos indígenas. O que nós temos hoje aqui são mais de 70 acampamentos Guarani Kaiowá espalhados pelo sul do estado aguardando a demarcação de seus territórios e, nessa situação de acampados, eles são vítimas de várias outras violações”, afirma.

Análise: A natureza não é mercadoria: políticas feministas para os povos e a natureza
 
Com dois doutorados, um deles na Escola de Estudos em Ciências Sociais de Paris, na França, Terena explica que a “academia sempre foi uma espécie de proteção”. 
 
“Eu sabia que se eu continuasse estudando, eu teria uma espécie de um manto protetivo. O doutorado vem mais como uma necessidade. Em determinado momento da minha atuação, eu já estava sofrendo processo de perseguição, ameaça, processo de cassação do meu registro na Ordem dos Advogados do Brasil. Então, eu vi que era um momento de me afastar do estado. Meu carro já tinha sido perseguido”, comenta.
 
Na conversa, Eloy Terena comenta a sua segunda tese de doutorado, onde ele propõe uma reflexão sobre a perda dos direitos indígenas desde a Constituição de 1988 e como o principal órgão indigenista do país perdeu seu caráter principal.

“É preciso uma reforma, inclusive no Marco Legal. O Estatuto do Índio atual é de 1973, ele carrega ainda as marcas do autoritarismo, da tutela, do racismo, da colonialidade. E mesmo com a Carta de 1988, não foi revogado. E isso se aplica também à Funai que, sob o rótulo de nova Funai, tem adotado práticas que já foram banidas há 100 anos atrás”, completa Terena. 

Confira e entrevista na íntegra:
 
Brasil de Fato: Na sua segunda tese de doutorado, que defendeu há poucos dias atrás, você trata sobre a questão dos direitos indígenas e a perda desses direitos no período pós-constituinte. Nós temos falado aqui, sobre isso, recorrentemente. Em uma conversa com Ailton Krenak que foi decisivo para a aprovação de diversos dispositivos na Constituição de 1988, também com Sônia Guajajara. Na verdade, são direitos que nunca foram plenamente implementados, não é?
 

Eloy Terena: Nesta tese eu procuro defender esse processo que eu chamo de constitucionalização dos direitos dos povos indígenas. Quer dizer, a Carta Constitucional de 1988 elevou os direitos dos povos indígenas, uma proteção constitucional e, portanto, um compromisso de estado com os povos originários. 
 
Nós temos ali um capítulo específico que trata dos direitos dos povos indígenas e um conjunto de dispositivos no texto constitucional que fala desse direito, um texto impregnado da consolidação dos direitos dos povos indígenas. E uma coisa que eu analiso é esse processo de erosão constitucional. 
 
Quer dizer, nessas mais de três décadas da promulgação da Carta Magna, como os direitos dos povos indígenas foram sistematicamente negados, tem status constitucional mas não é implementado, e ao mesmo tempo, como tem se inventado expedientes e teses jurídicas para fazer com que esse direito seja deteriorado.
 
Uma delas é a questão do Marco Temporal, que está dependendo de julgamento no âmbito do Supremo Tribunal Federal. Ele é a dimensão mais expressiva disso que eu estou chamando de Erosão Constitucional dos Direitos dos Povos Indígenas. Porque você tem a implementação, a construção de uma tese jurídica, para negar o que está muito bem dito na Constituição, que é o reconhecimento do direito originário dos povos indígenas aos seus territórios tradicionalmente ocupados. 
 
O STF chegou a dizer que interviria na questão da demarcação de terras após declarações do presidente da República, ainda no início do mandato. Agora, o Supremo volta a ter a decisão nas mãos, com a questão do Marco Temporal. O que esperar dessa votação? Após ela sair de pauta, em junho, há previsão de que ela volte a ser debatida?
 
Olha, nós estamos enviando mensagens ao Supremo, para que julgue logo esse processo, porque, como se diz, o tempo está contra os povos indígenas. Sob o argumento de se esperar uma segurança jurídica, nós temos muitas comunidades indígenas acampadas em beiras de estradas, fundos de fazenda, aguardando a demarcação de sua terra.
 
Nós temos um índice muito grande de invasões, em várias terras indígenas e nós temos também um processo contínuo, em que a Funai (Fundação Nacional do Índio) vem concedendo, vem regularizando títulos ilegais em cima das terras indígenas. Então, essa demora no julgamento, ela beneficia apenas o agronegócio.
 
Enquanto os indígenas aguardam a demarcação de seus territórios, esses territórios continuam sendo explorados pelo agro, pela soja, pelo gado, pela atividade de garimpo, madeireira ilegal. Então nós dizemos que a ausência desse julgamento também é uma violação ao direito fundamental dos povos indígenas que esperam há anos, há séculos, a regularização de seus territórios. 
 
É importante dizer que o Estatuto do Índio, que é de 1973, já estipulava um prazo de cinco anos para que todas as terras indígenas fossem demarcadas. Esse prazo venceu em 1978, 10 anos antes da Constituição. A Constituição de 1988 veio e novamente colocou esse prazo de cinco anos para que todas as terras fossem demarcadas. O prazo venceu em 1993.
 
Isso mostra o compromisso do estado de direito em ver esses territórios demarcados. Mas, é claro, não são implementados por conta dos agentes estatais, dos agentes políticos que estão ocupando esses cargos e que não tem compromisso com a proteção e o respeito aos direitos dos povos indígenas.
 
Você fez uma sustentação no STF sobre o Marco Temporal. Qual é a tua expectativa em relação aos votos dos ministros? Já há alguns votos conhecidos, como do ministro Edson Fachin e também do ministro Kassio Nunes Marques…
 
Exato, nós tivemos a oportunidade de participar do julgamento, representando a Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, a APIB. E foram dois os elementos que eu chamei a atenção: o primeiro é que demarcação de Terra Indígena é o que nós chamamos de imperativo constitucional. Quer dizer, é um compromisso do Estado brasileiro com os povos originários, de ver reconhecidos os territórios e protegidos. 
 
Portanto, a demarcação de Terra Indígena não pode estar submetida à conveniência política como alguns falam, “não vou demarcar Terra Indígena”, no caso o presidente Jair Bolsonaro. Não, isso não está no seu âmbito de discricionariedade. É um dever constitucional, é uma imposição constitucional, é um compromisso da Carta com os povos originários.
 
A segunda tese que eu levei é a inconstitucionalidade do Marco Temporal. Aquelas pessoas que defendem essa tese, querem aplicar pura e simplesmente um direito civilista, que regula a posse do particular com a sua propriedade, à posse que os indígenas exercem dos seus territórios.
 
E isso para nós está muito claro, que a relação que o indígena tem com o seu território é uma posse regulada pela Constituição, de maneira diferente do direito civil. Quer dizer, a forma como o não indígena se relaciona com o seu terreno, com a sua casa, com o seu apartamento na cidade, é a mesma forma que o indígena se relaciona com o seu território, que é sagrado, é sua Mãe Terra.
 
Portanto, quando se tenta aplicar o Marco Temporal, você desconsidera essa forma como o indígena se relaciona com o seu território. E a Constituição não trabalhou com data certa, como muitos querem colocar. E tão pouco quando a Constituição fala de terra tradicionalmente ocupada, ela não trabalha com requisitos de temporalidade, mas sim com tradicionalidade, que é a forma como cada povo se relaciona com o seu território.
 
Tem a ver com o costume, tem a ver com relação, sentimento de pertença, identidade cultural. E os ministros, a maioria dos magistrados brasileiros, não estão aptos a entender, porque você precisa, na verdade, provocar uma discussão da cultura jurídica no país, que é olhar para as formas como como esses sujeitos coletivos de direito se relacionam com os seus territórios. Assim são os indígenas, assim são os quilombolas e as demais comunidades tradicionais.
 
Se avolumam também os casos de violência contra indígenas. Agora, povos da etnia Guarani Kaiowá convivem com o medo após ataques e mortes no Mato Grosso do Sul, perpetrados em geral por ruralistas da região, que invadiram diversas terras indígenas. Essas regiões elas carecem de fiscalização e é difícil saber se haverá um recuo desses fazendeiros mesmo após a eleição. Há um caminho para cessar essa violência?
 
Eu conheço muito bem o caso de Mato Grosso do Sul, eu sou de Mato Grosso do Sul e desde quando eu me tornei advogado, comecei a trabalhar para os Guarani Kaiowá, para organização indígena Aty Guasu, do povo Kaiowá Guarani e não há outro caminho a não ser a demarcação dos seus Tekoha e implementar políticas públicas de proteção a estes povos.
 
O retrato de Mato Grosso do Sul é um caso clássico de violação de direitos fundamentais de povos indígenas. O que nós temos hoje aqui são mais de 70 acampamentos Guarani Kaiowá espalhados pelo sul do estado aguardando a demarcação de seus territórios e, nessa situação de acampados, eles são vítimas de várias outras violações. 
 
Primeiro, o não acesso ao seu território tradicional, depois a negativa ao direito fundamental e à educação escolar indígena, o não atendimento de qualidade de saúde, o acesso à água potável e a questão de segurança. Está muito bem demonstrado que eles são atacados.
 
No Mato Grosso do Sul existe um processo sistêmico de assassinato de lideranças indígenas. Aqueles que defendem os seus territórios são assassinados, ou são perseguidos, criminalizados. Isso está cabalmente comprovado em várias pesquisas que nós realizamos aqui no Mato Grosso do Sul. É a ausência total do Estado.
 
Nós tivemos, no século passado, a política de interiorização do sul do Mato Grosso. À época, o governo incentivou a vinda de colonos para cá, uma colonização interna, que ignorou totalmente a presença dos povos originários que aqui já estavam. Você vai ter a concessão de títulos privados em cima dos territórios já ocupados pelos povos indígenas e, ao mesmo tempo, a atuação do órgão indigenista oficial - naquele momento era o SPI (Serviço de Proteção aos Índios), agora é a Funai - promovendo o despejo dessas comunidades. Com o único intuito de favorecer a implantação de um projeto agro pastoril na região.
 
É preciso o governo assumir a sua responsabilidade, demarcar esses territórios, entregar esses territórios aos seus povos originários. Nós temos casos de grilagem de famílias tradicionais aqui do estado que se apossaram de forma ilegal desses territórios e nós temos pequenos casos também que o governo concedeu esses títulos. E nesses casos, nós defendemos que o governo assuma a sua responsabilidade, o seu erro cometido no passado e retire esses proprietários, seguindo o devido processo.
 
Eloy, você disse que é do Mato Grosso do Sul, é da aldeia Ipegue, dos Terena. Queria que você falasse um pouquinho da sua trajetória. Como foi chegar aos bancos da universidade, o doutorado em Paris…infelizmente, não é uma trajetória tão comum entre indígenas. 
 
Não é. Eu sou da aldeia Ipegue, que fica na região do Pantanal. Os Terena são povos do Pantanal, assim como os Kinikinau, os Kadiwéu. E eu sou nascido e criado na minha aldeia. Eu cursei o ensino fundamental na minha aldeia, na escola indígena Feliciano Pio, que carrega, inclusive, o nome de um cacique fundador dessa comunidade, que vem a ser o avô da minha avó. Somos dessa linhagem, desse tronco originário.
 
Faço parte dessa geração de jovens indígenas que, pelo menos nas duas últimas décadas, tiveram acesso a políticas de ações afirmativas e fomos ocupar também os bancos da universidade. Em determinado momento, houve a opção decisiva da minha mãe, de querer educar seus filhos. Era uma época muito difícil, de ir para a cidade, estudar.
 
E minha mãe toma essa decisão de ir para a cidade trabalhar de doméstica, no único intuito de fazer com que nós continuássemos estudando. Então eu cursei direito, com a política de ações afirmativas. Eu tenho uma outra irmã, Simone, que também cursou direito, fez doutorado no Museu Nacional, no Rio de Janeiro e tenho uma outra irmã que também estudou e hoje, inclusive, está em um espaço político.
 
E continuei estudando. Depois que terminei o curso de direito fui advogar para comunidades indígenas, primeiramente para o Conselho Terena, Aty Guasu Kaiowá Guarani, prestei assessoria jurídica também para o Conselho Indigenista Missionário (CIMI). E a academia sempre foi uma espécie de proteção. 
 
Eu sabia que se eu continuasse estudando, eu teria uma espécie de um manto protetivo. Então, eu continuei fazendo mestrado, aqui mesmo no Mato Grosso do Sul, na Universidade Católica Dom Bosco, sob orientação, inclusive, do professor Antonio Brandi, um importante pesquisador dos Guarani Kaiowá.
 
O doutorado vem mais como uma necessidade. Em determinado momento da minha atuação, eu já estava sofrendo processo de perseguição, ameaça, processo de cassação do meu registro na Ordem dos Advogados do Brasil. Então, eu vi que era um momento de me afastar do estado. Meu carro já tinha sido perseguido. 
 
E essa retirada estratégica foi para fazer o doutorado. Eu vou para o Rio de Janeiro e faço em antropologia, no Museu Nacional. Quando eu estava na metade do doutorado, eu vi que ainda não era hora de voltar para o Mato Grosso do Sul e embalo um outro doutorado. 
 
A academia foi um local de refúgio para mim. Na medida que eu continuei advogando, eu usei essa estratégia de ficar fora fisicamente do estado, mas atuando. Na França, enquanto estava estudando, no ano da pandemia, em 2020, nós fizemos muita coisa. Uma delas foi a ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental) 709, proposta no Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a legitimidade dos povos indígenas de ingressar em juízo diretamente no STF.
 
E tiveram outras determinações importantes, como a priorização dos povos indígenas para a vacinação, a abertura de crédito extraordinário para a saúde indígena, o retorno imediato do Fórum de Presidentes do Condisi (Controle Social da Saúde Indígena). 
 
E levando essas demandas também no âmbito Internacional, como a denúncia da APIB no Tribunal Penal Internacional, que está tramitando hoje. E que é a denúncia que tem mais robustez e pode culminar no processamento do presidente Jair Bolsonaro pelos crimes praticados contra os povos indígenas.
 
Falando sobre a academia ainda, você acha que é um espaço que está apto a receber indígenas e outras pessoas que estavam à margem do mundo acadêmico? 
 
Não, não está. De fato, não está preparado. O ingresso é uma conquista importante, mas ele não é suficiente, é preciso permanência, é preciso abertura, esse diálogo com outros saberes. Então, a presença do indígena dentro da universidade, do quilombola, das pessoas de periferia, quando eles ingressam tendem a fazer essa ruptura, essa fricção com os debates.
 
Porque a gente chega ali levando toda uma bagagem cultural, uma trajetória, saberes baseados na nossa forma de ver e entender o mundo, e nem sempre a academia está aberta, ela tem sua caixinha de cientificidade. Para ela, científico é só aquilo, os outros estudos não são científicos. 
 
É preciso sim, que a academia esteja aberta a esses outros saberes, mas isso vai depender muito de nós, pesquisadores indígenas, negros, que vamos chegar ali trazendo esses outros saberes. E defendendo também a robustez desse outro conhecimento.
 
Determinados trabalhos que eu faço sempre foram considerados não acadêmicos, mas trabalhos políticos. E eu sempre defendi que não, esse trabalho é acadêmico, mas é também político porque nós precisamos ter lado, questionarmos essa imparcialidade da academia. Nós estamos produzindo um conhecimento científico para isso.
 
E a pandemia veio e demonstrou a importância disso, e isso foi fundamental. A gente tem demonstrado que nós somos dali e pelo fato de nós estarmos ali, nós temos mais condições de avaliar, a pesquisa, os procedimentos.
 
Você acredita que, passada a eleição e, obviamente, caso eleito uma liderança progressista, seja possível pautar o tema de uma reforma da Funai? É uma instituição que já tinha dificuldades na representação dos povos originários e que agora foi completamente esfacelada.
 
Isso é uma missão fundamental. Para se falar, hoje, em respeito aos direitos dos povos indígenas, é preciso uma reforma, inclusive no Marco Legal. O Estatuto do Índio atual é de 1973, ele carrega ainda as marcas do autoritarismo, da tutela, do racismo, da colonialidade. E mesmo com a Carta de 1988, não foi revogado.
 
Nós temos, no Congresso Nacional, o novo Estatuto dos Povos, que está tramitando desde a década de 1990, salvo engano. Nós temos aí uma mora legislativa em relação aos povos indígenas e isso se aplica também à Funai que, sob o rótulo de nova Funai, tem adotado práticas que já foram banidas há 100 anos atrás. 
 
Quando o presidente Jair Bolsonaro, em 2019, anuncia a nova Funai, transferindo ela para um ministério (da Justiça) e as competências para demarcação de terras indígenas para outro, quem estuda a política indigenista brasileira sabe que foi o retorno ao SPI de 1910. Não tem nada de novo, na verdade. Então, é preciso sim ter uma reformulação da Funai.
 
O que eu defendo também na minha tese de doutorado é a existência de um campo específico do direito público, projetado para defender os interesses dos povos indígenas. Portanto, a Funai não poderia atuar contra os interesses indígenas. Ela foi projetada, desenhada para defender os povos tradicionais e não poderia, jamais, como tem feito agora, atuar na contramão desses interesses.
 
Nessas eleições, uma série de candidatos indígenas tentarão ingressar em cargos legislativos. Como é que você vê essas candidaturas? Essa é uma chance real de mudar a cara do legislativo nacional?
 
Com certeza. A APIB, juntamente com suas organizações de base, lançaram o projeto Aldear a Política, que é um marco do movimento indígena, inclusive porque durante muito tempo existiu esse certo estranhamento do próprio movimento indígena. Chegava o período eleitoral, nós não nos envolvíamos com partidos. A gente ficava, inclusive omisso, não tínhamos lado e deixávamos os caciques e as organizações decidirem. E cada um ia para um lado, o que bem lhe conviesse.
 
Claro que os povos indígenas fazem política há muito tempo, defendendo o território, cobrando políticas públicas, fazendo atos em Brasília. Isso é política, mas não se fazia política partidária, E nós entendemos que isso é fundamental. A candidatura da Sônia Guajajara em 2018, na chapa do Guilherme Boulos [à presidência, pelo PSOL], trouxe essa dimensão da importância.
 
E também a eleição da deputada Joênia Wapichana (Rede-RR), primeira deputada federal mulher indígena, o quanto ela foi importante nesses últimos anos. É por isso que o Aldear a Política vem nesse sentido, de levar essa discussão para dentro dos territórios, falando da importância da participação política partidária, elegendo indígenas. 
 
Mas o projeto tem uma outra dimensão, que é a dimensão pedagógica. Quando a gente entra nos territórios e fala: “ó, nós temos que eleger indígenas”, nós estamos falando que temos que parar de votar em ruralista. Porque, nesse período, muitos deputados ruralistas ingressam nas comunidades indígenas e são muito bem votados. Depois eles chegam em Brasília e votam contra a gente.
 
É um processo de conscientização, de dizer: “olha, parente, esse fulano que você está votando, que você está apoiando, ele vai te apunhalar lá atrás, porque ele vai pautar os PLs ruralistas”.

Edição: Rodrigo Durão Coelho