RESISTÊNCIA NEGRA

Samba de coco: a história da família que faz do ritmo a própria natureza do Brasil

Família Calixto abre as portas de sua sede ao Brasil de Fato para contar as origens do coco em Arcoverde (PE)

Brasil de Fato | Recife (PE) | |

Ouça o áudio:

Grupo Coco Raízes de Arcoverde completa 30 anos de existência em 2022 - Divulgação

Em meio à sala repleta de fotografias, criações em madeira, e registros da família, o mestre Assis Calixto viaja no tempo - e em sua ancestralidade - para relembrar o surgimento do samba de coco.

“O coco é uma herança dos escravos. Veio com os navios que traziam pessoas para São Paulo, para Recife, para o Rio e foi se espalhando O pessoal foi trabalhar nos engenhos e à noite eles faziam dança. Agora não tinha nome de coco”, explica.

Ao seu lado, Damião Calixto complementa a história do irmão: a roda de coco, que tinha o nome de Mazuca, surgia como uma dança de trabalho coletiva, feita para pilar o chão de barro das senzalas. 

Assista ao vídeo:

“Todos mexiam no barro para pilar o chão da casa, espalhavam o barro todinho, aí quando era de noite todos iam pisar o barro, para ficar que nem cimento, durinho, bem pisado mesmo. Aí se chamava Mazuca. Hoje é coco. Coco trupé, Coco ciranda. Coco da beira de praia. E vários tipos de coco”, conta Damião.

Os dois mestres estão à frente do Samba Coco Raízes de Arcoverde, um dos símbolos a perpetuar a manifestação popular que surgiu de dentro dos quilombos.

O grupo formado pela família Calixto completa 30 anos de existência em 2022 e é responsável por fazer do pequeno município do sertão pernambuco a "Capital do Samba de Coco".

“Terra do samba de coco. Por que eles botaram o nome? Porque aqui é a terra do coco. Hoje, onde você chegar e disser Arcoverde, as pessoas vão falar: “ah é a terra do samba do coco”, aponta Assis Calixto. 


Assis Calixto no São João de Arcoverde (PE) de 2022 / Pedro Stropasolas

No São João pernambuco, milhares de pessoas visitam Arcoverde para assistir o espetáculo da família que dá ritmo ao coco por força dos tamancos construídos artesanalmente. Desta vez, não foi diferente. A espera foi grande: foram dois anos de espera por conta da pandemia.

“A dança do preto não é muito valorizada. A não ser a capoeira, mas que ainda é mal vista. E, graças a Deus, aqui em Arcoverde, o Lula Calixto no São João, ele fazia todo mundo dançar junto. Branco, preto, o que chegasse ali entrava na dança porque não suportava ver e não dançar também”, conta o mestre Assis, que recebeu o Brasil de Fato na sede da família Calixto, a poucas horas antes da apresentação.

A história do coco

A história do Samba de Coco em Arcoverde (PE) é a história de um resgate. Isto porque, em 1987, quando morre Ivo Lopes, o primeiro coquista da cidade, o ritmo se apaga e quase desaparece do universo cultural do município.

Foi aí que surge o protagonismo de Lula Calixto, irmão de Assis. Em 1992, a partir de uma conversa com Maria Amélia, responsável pela Secretaria de Cultura de Arcoverde no período, Lula resolveu criar o Samba Coco Raízes de Arcoverde, unindo as três famílias coquistas da cidade: Calixto, Lopes e Gomes.

"Ela (Maria) foi em Recife, comprou surdo, triângulo, pandeiro, ganzá, um figurino, e disse agora vocês vão andar, levar a cultura à frente. E foi isso que aconteceu. Em 1996 já começamos a ir as escolas", relembra o mestre Assis.

As famílias passaram a se juntar, dançar em roda, e tocar pandeiros, bombos, chocalhos, maracas, zabumbas, cuícas e responder as toadas do puxador.

“Em 1992, quando ele resgatou, e em 1996, quando ele se reuniu para juntar o coco, ele juntou as três famílias. Então tinha muita gente, mais de 35 pessoas dançando, era muito coquista”, conta Ilma Calixto, sobrinha de Lula e filha do mestre Damião.

Dois meses antes da gravação do primeiro CD, que carrega o mesmo nome do grupo, morre Lula Calixto, em 1999, vítima da Doença de Chagas. 

Pouco depois, as Irmãs Lopes resolvem formar um grupo, e a família Gomes, acabam criando outro. Hoje, são 12 pessoas que formam o Raízes de Arcoverde. E ao todo, 7 grupos de coco na cidade.

“Hoje cada um tem seu grupo, mas a ligação não deixa de ser a mesma. Nós estamos sempre juntos na luta, sempre dividindo palco com o outro”, conta Ilma, que começou no coco aos 18 anos de idade.

Até o momento, o grupo Samba Coco Raízes do Arcoverde já gravou três CDs, aliando ao coco, ritmos como samba e os folguedos de roda. 

O coco trupé

No município, o coco de Trupe é quem ganha o destaque. Ele é guiado pelas batidas rápidas dos pés com os tamancos no chão. A dança é complementada por outros instrumentos: triângulo, pandeiro, surdo e o ganzá. 

“O que chama mais atenção é quando está fazendo o trupé, que é aquele movimento bem ligeiro. Ali é o trupé. Foi Lula Calixto que criou, um tamanco que ele fez pra levar para as escolas. Porque ele achava que dançando nas escolas, mostrando a dança, de sapato ninguém ia ouvir bem. Aí ele pegou uma tábua, cortou e fez um tipo de um tamanco, Cortou uma calça jeans, botou as correia e foi daí que nasceu o tamanco no coco”, lembra Assis. 


Os tamancos produzidos artesanalmente para a dança do coco / Pedro Stropasolas

“Eu trabalho com madeira de pinho, a gente compra tábua bruta, serra, lixa. Depois que lixa prega o couro. É muito fácil a fabricação, porque ele criou de uma maneira de ser uma percussão”, completa. 

Dai Calixto é quem está à frente da dança nas apresentações. Ela começou a dançar com os tamancos aos seis anos de idade, acompanhando o tio Lula Calixto em suas apresentações nas escolas.

“Ele sempre ensinou a gente a dançar. No começo era só parcela e o trupé e tripé cortado hoje a gente criou outros passos, que foi pergunta e resposta, cavalo manco tem gongue e assim a gente foi dando continuidade”. 

Assim como no passado, com Lula, o grupo continua a ter boa parte de suas obras voltadas às crianças de Arcoverde, compondo cantigas infantis e ensinando nas unidades escolares.


Trabalho nas escolas é um legado de Lula Calixto, formador do grupo / Divulgação

O trabalho é liderado por Assis, que recebeu em 2019, o título de Patrimônio Vivo do Estado de Pernambuco por conta da atuação nas escolas. Em 2021, o mestre lançou Cavalinho de Barro, um CD inteiramente voltado para a infância.

“Nos cantos que eu chego hoje a criançada já começa a cantar minha música. É muito bom pra mim isso. É um reforço muito grande pra mim dar continuidade nessa luta não só pra criança como para adulto, em todo canto né? E hoje eu sou bem apoiado pelas escolas. Tem escola que faz a festa com o coco e encomenda os tamancos para as crianças de cinco, seis anos. Faço trinta, quarenta pares de tamancos só para crianças. É muita alegria porque eles estão gostando da cultura”, conta o mestre com orgulho. 

Alto do Cruzeiro

Atualmente, a luta da família Calixto é para manter a sede no bairro alto do Cruzeiro, palco dos ensaios, encontros e oficinas de coco, e onde está a memória afetiva de Lula Calixto.

Cenário de clipes, como o da ilustre canção Andrelina, e palco de muitas apresentações culturais, foi lá que nasceu o grupo na década de 1990.

Ao lado das primas, Dai Calixto e Damares Calixto, Ilma Calixto é quem organiza a luta da família, além de produzir e organizar a agenda.

“Esse São João que existe aqui no Alto do Cruzeiro fomos nós, foi a nossa família. Foi o coco que começou. Então tudo tem uma história, a gente começou com um bingo, que era com a Iran, era na frente do coco. Iran tinha um barzinho no quintal de casa, no quintal da sede e a gente sempre todo mundo junto, toda família junto. A gente passava chapéu, fazia bingo de bode para pagar as atrações. Começou assim, em uma tendazinha em frente ao bar da gente”, pontua a cantora e produtora.

O desejo dela é por mais respeito e carinho com a cultura popular. “A nossa voz precisa ser escutada porque se escutarem as coisas fluem mais”, reforça. 

O Alto do Cruzeiro fica a 2 km do centro do município e é tido como o berço do surgimento e da valorização da cultura popular em Arcoverde. Também é conhecido pelas referências em músicas do Cordel do Fogo Encantado, banda que surgiu sob influência dos mestres de coco da família Calixto.

“Nós precisamos mais do poder, né? Vamos dizer assim. Que o poder olhe mais para nós, para a nossa cultura. Os grupos culturais são a própria natureza do nosso Brasil. Eles foram plantados junto do nascimento do Brasil”, finaliza Assis Calixto.











 

Edição: Vivian Virissimo