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Reexistências Negras. De quais mulheres negras nós estamos falando?

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"Continue chutando as portas, não percam a esperança de que uma hora, essa estrutura pode cair ” - Giorgia Prates
Mulher negra, mãe e ativista pelos direitos humanos, Heliana parece observar a vida com uma lupa

A provocação vem em sotaque carioca, voz grave e timbre inconfundível revelando a inquietude de Heliana Hemetério, aguçada pela juventude dos seus 70 anos. Mulher negra, mãe, avó, historiadora e ativista pelos direitos humanos, Heliana parece observar a vida com uma lupa, sem contaminar-se com as formalidades impostas à sua geração.

É de personalidade expansiva, fala alto, com naturalidade, explana fatos gesticulando e foge de tabus: transita entre temas complexos considerando interseccionalidades. Demonstra talento em simplificar o debate sem esvaziá-lo e estes são alguns, entre os tantos questionamentos que faz a si e aos movimentos sociais à sua volta: Em quais periferias estamos pisando? Qual a prática que embasa o seu discurso antirracista? E o feminismo branco, está celebrando o julho das pretas? 

É previsível que provoque um incômodo, especialmente aos grupos que se entendem como aliados. Entretanto, são indagações embasadas nas vivências de uma mulher negra com mestiçagem portuguesa e histórico de racismo em sua própria família. Heliana relembra que sua avó materna viveu “amancebada com um português”. Ele até juntou-se, mas não transferiu para uma mulher preta o seu sobrenome a fim de evitar pistas deste episódio.

Diante disto, reciprocamente, também rejeita o “Neves” e apresenta-se como “Hemetério”, um protesto em respeito à honra de quem lhe deixou sobrenome, conhecimento e melanina como herança familiar. Explico: este pensamento crítico e teoricamente embasado não é um acaso. Se, por um lado, em sua família perpetua uma cicatriz sobre a solidão afetiva de uma matriarca, por outro, há uma significante referência na árvore genealógica: Hemetério José dos Santos, educador, escritor e ativista contra o racismo no Brasil. Essa é a origem de seu sobrenome peculiar, criado antes mesmo da abolição por ele, bisavô de Heliana, a fim de deixar a sonoridade mais robusta, pois como descendente de escravizados “José dos Santos” lhe parecia um tanto “comum”.

O racismo não faz recorte de classes

“Esse lugar de preto que não é pobre foi complicado”, a frase ecoa enquanto Heliana tira os óculos e observa as lentes, sempre  em direção à luz. O gesto mais se assemelha a um intervalo para a próxima reflexão e, de fato, é. “O racismo não acaba quando você conquista o dinheiro”, completa. Na sequência, revela que é natural da Tijuca, bairro nobre do Rio de Janeiro. Embora negra, reconhece que teve privilégios: estudou nos melhores colégios cariocas, é historiadora pela UFRJ, tem duas especializações, foi funcionária pública federal por longos anos no IBGE, viajou, conheceu diferentes Brasis e, ainda assim, também foi apresentada ao racismo. Aprendeu a decodificá-lo.

Enquanto esteve no IBGE, atuou em organizações da sociedade civil organizada, fez parte do Conselho de Comunidade Penal e conheceu a jornada de encarceramento de mulheres negras, pobres, com baixo nível de escolaridade e imersas em um submundo de carências que ativam o gatilho do afeto, uma  armadilha para aquelas  que “caem”, utilizando o réu primário para proteger os companheiros.

Este cenário, conhecido por Heliana, é o que fez da penitenciária brasileira feminina a quarta maior em lotação do mundo, segundo o Departamento Penitenciário Nacional (2000/2016). Em seu trabalho, construiu vínculos em comunidades e entendeu, além da teoria, como se constroem as relações no corpo a corpo de mulheres que dividem “uma parede e meia” enquanto vizinhas na “perifa”: a criação dos filhos é mais coletivizada, “a mãe de um amigo vira a tia do outro” e esses laços, na maioria das vezes se mantém, mesmo quando um vira traficante e o outro “doutor”. Heliana reconhece a importante atuação das organizações da sociedade civil (oscs) e reflete sobre o papel desempenhado pela igreja nas regiões suburbanas.  Neste ponto, embora contrariada, destaca que, se o Estado não entra para garantir direitos, são as instituições religiosas que passam a determinar o comportamento individual e, consequentemente, passam a refletir na percepção coletiva das mulheres negras alcançadas por essas estruturas. “Pense numa mulher negra que rala o dia todo fora de casa e que os filhos têm além da escola, a igreja como referência. Como dizer a ela que essa instituição, que oferece esse tipo de ‘sossego’ também a silencia?".

Em Curitiba, cidade que reside atualmente, Heliana não hesita em promover conversas com mulheres negras vítimas da violência, em todas as facetas -  assim como promoveu no Rio de Janeiro. Entra em ocupações, vilas e comunidades sem estranhamento e não atua sozinha: na capital do Paraná, criou um círculo pessoal de referências negras e feministas que atuam na ponta e sobre isso enfatiza: "minhas referências são sempre mulheres com chão, com caminhada e ação. Não há mais tempo só para teoria”. 

E de qual mulher negra Heliana Hemetério está falando? Sobre isso, responde tratando a pergunta como previsível: a mulher negra idosa, lésbica, de candomblé, mas também a mulher negra da igreja evangélica. Aquela da “perifa” que a Lei Maria da Penha não está dando conta de proteger e a cota não está conseguindo alcançar. A mulher negra encarcerada, a egressa do sistema prisional, dona de casa. Rostos, nomes e histórias que, assim como Heliana, não se percebem em símbolos feministas como Frida Kahlo e Simone Beauvoir e tampouco em datas que vem tendo limites e sofrendo críticas no que se refere à representatividade, como acontece com o 8 de março: é daí que vem a relevância do dia 25 de julho, data que celebra a luta das mulheres negras latino-americanas e caribenhas, além de rememorar a vida de Tereza de Benguela, líder quilombola e símbolo da resistência contra a escravização. O dia 25 é parte de um leque de ações construídas por diversos movimentos de mulheres pretas, em diferentes regiões, que fazem de Julho um mês importante para o debate feminista com recorte étnico-racial e Heliana está entre as pioneiras na elaboração do Julho das Pretas no Paraná, ação iniciada pela Rede de Mulheres Negras no estado (RMNP). 

Na Rede, também coordena o “LBT NEGRAS” e debate direitos para Lésbicas, bissexuais e transsexuais, mas não disfarça a frustração ao relatar a resistência dos movimentos em aceitar que as demandas deste grupo também sejam entendidas como necessidades de mulheres negras, o que ela bem caracteriza como “sutilezas da lesbofobia: tão grave quanto o próprio racismo”. 

Ao defender que o julho das Pretas também é das negras que estão fora de um padrão cis, Heliana enaltece a diversidade que está desafiando a estrutura patriarcal e capitalista na contemporaneidade “Eu também nunca pensei em travesti lésbica ou homens trans grávidos. Fica confuso? Para uma sociedade construída de forma heteronormativa, fica! Entretanto, existem e são pessoas com direitos”. Ela revela que reconheceu-se como lésbica muito após iniciar relacionamentos homoafetivos. Casada por duas vezes e adepta de relações heteronormativas, viu-se apaixonada por alguém do mesmo gênero. Experimentou a paixão e chegou a acreditar que, ao terminar aquela relação, ‘voltaria a ser hétero’. Claro, este cenário não aconteceu. É, também, deste contexto que vem a sua afirmação “Por aí está cheio de mulheres transando com outras mulheres às escondidas. Para mim, isso foi apenas prática sexual,  me entender como lésbica é que me deu identidade política”. A vitalidade com que organiza seu raciocínio (e ainda divide a atenção com outras tarefas) denuncia o prazer que tem em degustar a vida, mesmo quando está a criticá-la. Os cabelos brancos em um black com corte moderno compõem a pele marrom, em um corpo de 1 metro e 68 de altura, ornado por colares, pulseiras, esmalte e batom: é a demonstração da autoestima na sua relação com o envelhecimento.

Outro olhar e prática para a terceira idade

Heliana divide sua vida e suas lutas com sua companheira, também integrante da RMNP, com quem reside em Curitiba. É desconstruída, fala sobre sua relação e sua sexualidade sem tabus e em tom de alerta, chama a atenção para a desumanização dos desejos e necessidades de pessoas da terceira idade, fruto de um imaginário social de que vovós e vovôs não transam mais. “Eu sei que sou uma velha diferente, mas eu não sou a única que transa nesta idade. Vejam o HIV, só aumenta entre os idosos. Os velhinhos tomam viagra e todo mundo vai transar sem se prevenir. Não ignorem”.

No Brasil, o número de pessoas com mais de 60 anos portadoras de HIV está aumentando. Em 2007/2008, por exemplo, eram 212 casos e, em 2019, esse número chegou a 963 — representando um aumento de 354,25% segundo os dados do Boletim Epidemiológico sobre HIV/Aids. Os números estagnaram, mas para especialistas não há redução ou maior conscientização entre idosos para as práticas sexuais, e sim um cenário de subnotificação. Heliana aborda a questão com humor, mas não deixa de evidenciar a importância de discutir o tema, entendendo como uma pauta de saúde pública e que neste recorte também está a população negra idosa, pois tem menos acesso à informação.

Sarcástica, sorri ao falar sobre os “fins previsíveis” para a terceira idade, sempre relacionados à hospital para tratar doenças ou igrejas para buscar redenções, ela, por sua vez, se recusa a aderir essa energia e se autodeclara crítica à “fé paciente” e a ideia de “vida após a morte”, temas discutidos nesta fase da vida. Justifica afirmando que há uma repulsa de tudo que foge à regra por grande parte das religiões e um silenciamento dos grupos injustiçados a partir da ideia de que todo sofrimento faz parte de um “Plano divino”, além de recusar a ideia, também contrapõe “o único plano que Deus tinha que dar ao povo era um Plano de saúde, digno, por favor”.

Para Heliana, esses espaços - em grande medida - tendem a reproduzir a fé europeia, embranquecendo tudo o que vem após eles. “As lésbicas? Os gays? os pretos? vão para que lugar? Desse jeito, vou morrer contrariadíssima. Vamos ter que chegar lá [no céu]  e promover uma marcha da diversidade!" Em gargalhadas, revela estar feliz com jovens negras e lésbicas que ressignificam a palavra “sapatão”. Percebe que a juventude está empoderada e com o discurso na ponta da língua para embasar a prática e se defender politicamente diante de suas complexas vivências cotidianas.

 Ao olhar para o futuro, vê mulheres negras prontas para a luta por igualdade e aptas a questionar os brancos: “Vidas negras importam” para quem? Quais ações práticas embasam o discurso antirracista desse slogan de camisetas que vocês estão usando? Com uma metáfora, Heliana defende que a população branca permite que negros sigam até a página 30, mas para ela, já passou da hora de deixar que escrevam o livro inteiro. “Continue chutando as portas, não percam a esperança de que uma hora, essa estrutura pode cair ”. 

Quem é?

Heliana Hemetério dos Santos é historiadora pós-graduada pela UFRJ, tem especialização em Gênero, Raça e Sexualidade com foco na violência racista e homofóbica. É conselheira nacional de saúde, vice-presidenta da Associação Brasileira de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Travestis (ABGLT), integrante da Rede de Mulheres Negras do Paraná, do Coletivo de Lésbicas Negras.

Edição: Giorgia Prates e Pedro Carrano