*do Portal Verdade (Londrina)
Na quarta-feira (06), a Organização das Nações Unidas (ONU) lançou o relatório “O Estado de Segurança Alimentar e Nutrição no Mundo”. A pesquisa demonstra que a fome tem caminhado a passos largos em escala global.
No Brasil, entre 2019 e 2021, 61,3 milhões pessoas (28,9% da população) estavam em situação de insegurança alimentar grave (quando o indivíduo fica sem se alimentar por um ou mais dias) ou moderada (situação em que a pessoa não tem certeza se terá acesso à comida e, portanto, precisa reduzir a quantidade e qualidade dos alimentos). Entre 2014 e 2016, o índice era de 37,5 milhões, ou seja, um salto de mais de 23 milhões de pessoas.
Estudo anterior, divulgado em junho, nomeado “2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil”, indica que a maioria das pessoas em situação de insegurança alimentar no país é formada por mulheres, negros, moradores de zonas rurais e das regiões Norte e Nordeste. A taxa de segurança alimentar entre domicílios habitados por pessoas brancas atinge 53%, porém entre residências compostas por pessoas negras, o número cai para 35%.
A fome é um projeto político?
O Brasil é um dos países que mais exportam alimentos no mundo. Em 2020, a venda para mercados externos cresceu 11,4%, em comparação ao ano anterior, movimentando mais de 38 bilhões de dólares, de acordo com a Associação Brasileira da Indústria de Alimentos (Abia).
“Com a desvalorização do real, é muito mais vantajoso para o agronegócio vender comida do que alimentar o próprio povo brasileiro. O reflexo disso é de que aqui a comida está custando muito caro e estas pessoas estão ganhando muito com a exportação”, aponta Naomi Mayer, cientista social, cozinheira e responsável pelo “Fome de Entender”, projeto que, através de blog, perfil no Instagram e podcast, dissemina informações sobre comida.
Frente a este cenário, ela argumenta que “a fome não é uma questão de falta de comida”. A pesquisadora explica que, embora a pandemia do novo coronavírus tenha acelerado o regresso do Brasil ao mapa da fome, desde 2018, os índices de insegurança alimentar têm aumentado. De acordo com ela, o problema vem de antes e é reflexo da falta de políticas públicas, aumento do desemprego, empobrecimento da maioria da população e crescimento da inflação que atinge, principalmente, o bolso das camadas mais pobres.
Recente levantamento da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) observou que o Brasil tem a quarta maior inflação entre as 20 maiores economias do mundo. No período de maio de 2021 a maio de 2022, a média da inflação dos países mais ricos foi de 8,8% em maio. No Brasil, o índice está acima de 10% desde setembro de 2021.
Agro é fome
Para Mayer, é necessário olharmos para o agronegócio não apenas como um setor que movimenta grandes quantias, mas devemos ver nele uma “força política”. Não à toa, a Frente Parlamentar Agropecuária (FPA), mais conhecida como “Bancada Ruralista” – responsável por defender os interesses de grandes latifundiários e proprietários de terras – conta com mais de 200 deputados federais (do total de 513), representando um dos mais atuantes grupos no Poder Legislativo.
Com isso, segundo a pesquisadora, um dos campos de inserção do agronegócio é a mídia, o que dificulta o compartilhamento de reportagens que denunciem os problemas econômicos e ambientais advindos com o setor.
A principal ideia é a de que o agronegócio significa progresso, modernidade, desenvolvimento econômico e sucesso. Uma das propagandas mais reconhecidas nesta área foi veiculada em 2017 pela Rede Globo, intitulada “Agro: a Indústria/Riqueza do Brasil”, a campanha afirmava: “Agro é pop, Agro é Tech, Agro é tudo”. Mas Mayer sugere um slogan substituto: “Agro é fome, agro é política, agro é destruição”.
Ela cita outros exemplos: invisibilidade das lutas indígenas, criminalização dos movimentos sociais que reivindicam distribuição mais igualitária de terras, falta de discussões sobre a flexibilização do uso de agrotóxicos. “São substâncias cancerígenas, fazem mal para a vida humana e não humana, embora a gente só se preocupe com a nossa, afeta todo o planeta”. Ainda, compreende que os agrotóxicos estão relacionados a um modelo hegemônico de agricultura, impulsionado pelo emprego de sementes transgênicas e responsável por disseminar o entendimento de que apenas deste modo é possível produzir comida.
A estudiosa ressalta que a trajetória do agronegócio no Brasil é marcada pelo uso extensivo de agrotóxicos, porém, sob o governo de Jair Bolsonaro (PL), o número de novas substâncias liberadas tem aumentado significativamente. Levantamento realizado pelo Repórter Brasil identificou que 2020 foi o ano com o maior número de produtos aprovados na história. Até aquele momento, 493 novos pesticidas foram autorizados: em média, dez por semana. Com a chegada de Tereza Cristina, ex-líder da “Bancada Ruralista”, ao Ministério da Agricultura, mais de 967 agrotóxicos ganharam passe livre.
Para ela, é preciso que as pessoas conheçam mais sobre formas alternativas de produção como as desenvolvidas por povos indígenas, quilombolas, campesinos: “é possível produzir comida de verdade, sem agrotóxico. Mas a agricultura familiar que não usa agrotóxico é subjugada. O governo dá muito mais subsídio para a grande agricultura, para quem usa agrotóxico e fica muito difícil para o pequeno produtor e para convencer as pessoas de que é possível produzir comida sem veneno, mas é”, analisa.
Avançamos um pouco desde 1946, quando Josué de Castro argumentou que a fome era um tema “delicado” e que recebia pouca atenção, porém a negligência notada pela falta de políticas públicas, sobretudo, em períodos de crise sanitária como o que atravessamos, ainda persiste.
Outro sociólogo fundamental para a compreensão da fome no Brasil foi Betinho, que alertou que “quem tem fome tem pressa”. E, se há pessoas passando fome, o cenário ultrapassa razões naturais, mas permeia a extrema desigualdade social que impede acessos múltiplos: do pão aos sonhos.
Edição: Pedro Carrano