Paraná

Coluna

Crônica. A última quinta-feira

Imagem de perfil do Colunistaesd
Esperou um pouco mais a água do café ferver, fumaceando mais que o normal, naquele começo de dia ainda escuro e úmido de neblinas. - Pedro Carrano
Comparou o seu papel no mundo com o próprio material em papel que deixava de ser impresso

Geraldo amarrou os cadarços devagar naquela madrugada. Segurou a ansiedade pra sair de casa e continuou um tempinho com o joelho no chão, enquanto amarrava e desatava os nós do tênis.

Esperou um pouco mais a água do café ferver, fumegando mais que o normal, naquele começo de dia ainda escuro e úmido de neblinas. Maria, esposa de Geraldo, dormia no cômodo ao lado da cozinha. Nem mesmo a cadela Mikasa tinha se dignado a levantar do sofá carcomido pela vida.

Geraldo saboreou aquele café seco, sem pão nem nada, só a sensação quente na boca. Olhou pro quintal e se deteve na pilha de jornais pegando mofo. Alguns serviam pra limpar os cocôs dos cachorros. Mas também era uma forma confusa de conservar a memória, os dias intensos que passaram e que foram registrados nas capas do jornal.

Agora era mais uma quinta-feira, não podia ser outro dia da semana, pensou no conto de Cortázar. A última quinta-feira, daria um bom título de conto se ele fosse escritor. Adorava ouvir histórias, causos, prosas de boteco. Geraldo nunca esqueceria quando passou horas e horas, nos anos 80, no restaurante Bife Sujo, escutando as histórias do sindicalismo de ninguém menos que o Lula. Putz, nunca vou esquecer.

O pretexto pra chegar perto do homem e ser acolhido num abraço e ouvi-lo à noite inteira era a mesma desculpa de Geraldo pra tudo na vida: entregar o jornal do sindicato. Passaram os anos, as equipes, campanhas presidenciais e pelo salário, ele já havia até desistido de colecionar cada material, de tanta vida e de tanto mofo que Geraldo e sua esposa acumularam nessas décadas.

O jornal e o trabalho de tantos como ele serão lembrados em alguma apostila de colégio como aquela da filha mais nova? O Lula vai recordar dele ou do jornal em algum discurso? A velocidade do ônibus ajudava a acelerar a roleta giratória da memória e dos balanços desse quase final de vida.

No centro de Curitiba, a banca fica ao lado do ponto de ônibus, oferecendo café e guloseimas. Aquilo que fazia com fervor, o Geraldo do jornalzinho, começava a emagrecer em cada banca, lembrando que ele de certa forma definhava também. Passava por vários jovens na rua. Assim como Camila, sua filha, todos com os olhinhos grudados na tela enquanto caminhavam. Ainda cabe lugar pra mim nesse mundo? Ele questionou no amargo do horário adiantado. Comparou o seu papel no mundo com o próprio material em papel que deixava de ser impresso.

Chegou na banca no coração do calçadão, a equipe de hoje bem reduzida e pequena. Meireles, responsável pela banca, não teve coragem de olhá-lo de forma direta. Ninguém conversou muito. O movimento de pessoas na calçada da rua Quinze já estava intenso.

Geraldo colocou a pilha de jornais no antebraço esquerdo, acima da camada de papelão, gesto que impedia um pouco manchar a camiseta de tinta. Sentiu o cheiro conhecido da edição.

Ajeitou de novo o maço, deu uma olhada na chamada de capa. Postou-se no canto da esquina onde julgava que sempre atraía um certo público.

Aquela, realmente, seria a última quinta-feira.

 

 

 

Edição: Lia Bianchini