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CRÔNICA. Entrega pra você

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Algumas casas eram conhecidas, outras não. A rua margeava o intestino delgado do rio, pessoas sentadas na calma ansiosa de domingo, rodeadas pelos amigos, pela cerveja - Giorgia Prates
O final daquela rua continuava desconhecido

O final daquela rua era desconhecido, embora Marcia já tivesse passado por lá pra dar o recado da associação de moradores, de casa em casa, palma por palma, cachorro por cachorro, silêncio por silêncio, desconfiança por desconfiança, receio por receio.

Rua de terrão na rima inevitável do bolsão. Daquela vez era domingo e ela estava atrás de Marileide, trabalhadora carrinheira que morava há pouco tempo no tal de depósito. Depósito? De vidas? É certo que faltava comida e, dias antes, quando se encontraram na rua, Marileide contou da dificuldade da nova casa que era, ao mesmo tempo, o quarto apertado do local de moradia.

Então, com algumas marmitas de domingo no carro, doadas pelo padre Pascoal, Marcia resolveu ir atrás de Marileide, que provavelmente vivia no final, ou no início, quem sabe, daquela rua sem fim de terrão e números desencontrados.

Algumas casas eram conhecidas, outras não. A rua margeava o intestino delgado do rio. Pessoas sentadas na calma ansiosa de domingo, rodeadas pelos amigos, pela cerveja, por alguns restos de pipas no vento favorável do descanso.

Marcia acenava para alguns, trocava uma ideia rápida com outros, alguma cobrança, algum parente, alguma necessidade de ajuda, algum acesso inútil a um benefício do governo, e naquele mês já não teria entrega de cestas básicas na associação.

Passou por mais alguns cães distraídos, observou de relance o detalhe de cada casa, algumas bem feitas, com cuidado, pensou, outras há décadas no improviso. Até que chegou num descampado, um amontoado de sacos de lixo gigantes com material reciclável ao lado de um barracão.

Marileide não estava por lá.

Ninguém sabia dela naquele dia. Afinal, era domingo, momento possível para qualquer direção e decisão na vida. As marmitas eram poucas, mas as pessoas e os braços multiplicaram, juntaram-se em volta do Celta. Todos agradeceram e deram um jeito de dividir aquela carne temperada inédita. Fazia sol no nome daquele lugar que, não à toa, era chamado de vila Formosa. Agradecimentos rápidos, alguns conhecidos em comum, festa também de cães no entorno, algumas histórias breves e, com o canto do olho, Marcia encontrou o que não buscava naquele final de rua de terra que desembocava junto com o rio.

João estava próximo de uma árvore, na roda com colegas em situação de rua, ali tão perto da biqueira onde tinha se instalado há meses e não voltado mais. Ele talvez deve ter olhado pra Marcia com o cantinho do olho, com a sensação ambígua de querer ser visto e, ao mesmo tempo, não ter coragem de se aproximar. Marcia, por sua vez, tinha medo das acusações de sempre, de ajudar com a associação tantas Marileides enquanto evitava ver João atravessando as ruas da quebrada como se fosse um fantasma.

Convidaram Marcia pra sentar perto da sombra da árvore onde estava João, mas seu corpo já estava direcionado pra fora dali. Sem mais mãos, sem mais assunto, sem mais panfletos da próxima luta contra despejos forçados, sem mais jornal, ela queria se despedir dos moradores daquela quebrada, reforçar o lembrete da cozinha comunitária de quinta-feira, dar marcha ré com o carro.

O final daquela rua continuava desconhecido. O caminho de volta continuava o mais seguro.

Edição: Lucas Botelho