Paraná

Militarização

Artigo | A educação militar é mais perigosa do que parece

Quanto mais militarizada uma instituição, mais ela será conivente com a violência

Curitiba (PR) |
No ano de 2020, o Ministério da Educação selecionou 54 escolas, dos estados interessados, para receber o projeto piloto das escolas cívico-militares. - Foto: Gean Lima

Em 1943, a Itália se rendeu aos aliados na segunda guerra mundial. O regime nazista alemão sangrou até 1945. Um desmoronar que já começava a ficar claro dois anos antes, mas que pela insistência de Hitler seria postergado até que a realidade de Berlim sendo dominada pela União Soviética não pudesse mais ser negada. Stalin, Churchill e Roosevelt/Truman já haviam se encontrado e negociado bastante o que aconteceria com o mundo quando a guerra acabasse. Restava um dos grandes do Eixo aceitar sua rendição: o Japão.

Nos é ensinado que a segunda guerra mundial se iniciou em 1939, quando Hitler criou um factoide para invadir a Polônia. Porém, o Japão invadira a China em 1937 e a busca por recursos e a sua guerra de expansão fizeram do Japão o grande poderio militar do pacífico. Diferentemente da Alemanha, o Japão não planejava lutar até o último homem, mas postergou a rendição para tentar negociar melhores condições. De certa forma, deu certo. O Japão foi o país do Eixo que menos teve, proporcionalmente, perpetradores de crimes de guerra responsabilizados. E, obviamente, tal situação não deixaria de ter consequências. Até hoje é tema tabu para grande parte do governo japonês a questão dos crimes de guerra. Desde o massacre de Nanjing até as mulheres de conforto são temas tratados como exageros ou como “não foram tantas vítimas assim”. Como se fosse necessário alcançar um número X de vítimas para que um crime de guerra se torne relevante, para que haja responsabilização, para que se encontre os motivos do acontecimento para que ele jamais se repita.

O principal objetivo do estudo sobre os crimes do império japonês durante a segunda guerra mundial é tentar encontrar os fatores que permitiram que um nível absurdo de violência ganhasse espaço. A questão não é genética, mas social. E é preciso entender quais fatores fizeram com que ações horrendas fossem perpetradas isoladas e coletivamente. Um texto como este não poderá lidar com todas as faces do problema, por isso, procurei focar na questão do militarismo.

Um dos mecanismos de controle da violência é a relação social dos indivíduos. As relações não impedem todas as violências, mas a aceitação ou rejeição de uma violência faz com que ela se perpetue ou perca força. Posso usar como exemplo a violência física contra crianças perpetrada por pais no intuito de educar seus filhos. Tal violência não acabou, mas aos meus 31 anos de idade já consigo perceber como tais ações se reduziram por não serem mais socialmente aceitas pela maioria. Não faz muito tempo que dar uma bela surra em uma criança na frente de uma plateia não era algo condenável. Em algumas situações era o contrário, ganhava-se pontos sociais com a atitude violenta. “É um pai rígido, os filhos serão boas pessoas”. E a violência doméstica que tinha como bordão “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”.

A educação militar é adestradora. E aqui não faço nenhum exagero ou troca de palavras. Chamamos a educação militar de adestramento dentro das instituições militares. A educação não é compatível com o militarismo, já que a educação parte do questionar e o militarismo parte do obedecer sem questionar. Questionar dentro de um sistema militar leva a punições regulamentares e punições sociais. Aquele que questiona é visto como perigoso, traidor, insubordinado. Para que se pegue uma pessoa e a transforme em um militar é necessário um processo. Existe método na formação militar. A humilhação, a redução das conexões com a sociedade e com a família não são acidentes, mas processos necessários.

A proibição de se relacionar através dos mais variados capitais sociais leva o militar a se focar em alcançar os melhores resultados dentro daquelas áreas que lhe são permitidas sem punições. A castração do militar acontece por todos os lados, mas não pode alcançar a vontade de se sobressair, de vibrar. Já que isso levaria à morte da pessoa que não tem como expressar seus vetores de desejo. Logo, a instituição militar pode castrar todas as atitudes que sejam menos da ação contra o inimigo, mas nunca o mais. E o subordinado não tem outra forma de demonstrar o seu valor que não seja fazer mais daquilo que lhe é permitido fazer. Quanto mais militarizada uma instituição, mais ela será conivente com a violência de seus membros e mais os próprios membros serão coniventes com as violências praticadas por seus membros.

Foi o que aconteceu com o exército Alemão nazista na Polônia e nos campos de concentração. Foi o que aconteceu com o exército japonês durante a invasão a China e ilhas do pacífico. Foi o que aconteceu com o exército americano no Vietnã. Foi o que aconteceu quando a MINUSTAH, coordenada pelo exército brasileiro, cuidava do Haiti. Estupros, execuções, torturas estão entre as ações perpetradas por grupos militarizados que se colocam como combatentes superiores contra uma “raça” inferior de humanos. Em que a violência se torna uma forma de se valorizar num sistema hierarquizado e que proíbe outras manifestações do ser.

O assunto é complexo e não poderei atacar todos os pontos, mas toda essa introdução objetivava chegar à militarização das forças policiais do Brasil e ao exército brasileiro. Sistemas militares já são um problema em si, porém quanto mais fechado em ideologias de superioridade e de repressão do ser, mais a violência aflora.

Não se engane acreditando que apenas a polícias militares são militarizadas no Brasil, PRF, PF e polícia civil não só são militarizadas como vêm aumentando seu perfil militar nos últimos anos. Isso inevitavelmente leva as corporações a não só perpetrar violência, até mesmo desnudada do anonimato, como também a esconder seus atos através de boletins, autos de resistência a prisão e notas à imprensa que tentam moldar o fato a uma situação em que a violência seria justificada, mas que não aconteceu. O exército, por sua vez, age, primeiramente, como reduto do pensamento militarizado e, posteriormente, como vetor de violência que não tem mais para onde ir e envolve-se na política como forma de se mostrar ao social com apenas aquilo que lhes hierarquiza fora dos postos e graduações: a violência.

Edição: Lia Bianchini