Ceará

Violência

Entrevista | "Porque dentro da periferia só tem uma polícia, a que mata"

Alessandra Felix, do Coletivo Vozes e Edna Carla, do Mães do Curió falaram com o BdF sobre Terrorismo do Estado

Brasil de Fato | Fortaleza (CE) |

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É preciso que se diga aqui e se problematize a socioeducação do estado. - Foto: Lucianna Silveira/Coletivo Nigeria

De 17 a 20 de maio, aconteceu em Fortaleza o 5º Encontro Nacional de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo do Estado. Com a participação de mais de 30 coletivos de todo o país, a ideia do encontro foi debater caminhos para enfrentar a violência cometida pelo Estado e cobrar a responsabilidade dos governos estadual e federal. Alessandra Felix, do Coletivo Vozes e Edna Carla, do Mães do Curió falaram com o Brasil de Fato sobre as várias formas de Terrorismo do Estado. Confira.

Gostaria que vocês explicassem o que é o Terrorismo de Estado?

Alessandra – Minha trajetória toda de militância política começa quando eu passo a conhecer um dos espaços de controle do Estado, o Conselho Tutelar. Após isso, eu fui cumprir medida junto com meu filho, porque nós, as mães, cumprimos essas medidas quando os nossos filhos estão sob a tutela do Estado. Então vivenciei muitas violações de direito. É preciso que se diga aqui e se problematize a socioeducação do estado, porque meu filho nunca foi ressocializado. Ao sair, ele migra para o sistema prisional e quando eu vivencio toda as questões do sistema prisional, que é bem mais difícil do que o socioeducativo, porque no sistema prisional não se há porta do direito para estar indo atrás.

A gente já estava no processo de caminhada de política, fomos ao encontro da Rede Nacional, entendemos o que é o Terrorismo do Estado. Eu vim fazer a leitura que já sofria Terrorismo do Estado desde os processos da socioeducação, mas eu só vim entender isso quando eu chego no espaço do sistema prisional, onde eu enfrento todas as violações de direitos e dignidade da pessoa enquanto sujeito, enquanto ser humano. Eu vim entender que isso é um dos Terrorismos do Estado.

Edna – Olha, o Terrorismo do Estado é o que a gente vive, foi o que a gente relatou a pouco tempo. O Terrorismo do Estado é quando um jovem pobre não pode ingressar na faculdade, é quando o pobre não pode se formar em advocacia, ser juiz, ser doutor. Não pode. Por quê? Porque a necropolítica não dá acesso a pobre. Falta educação desde a infância. Essa criança, não indo para o colégio porque está faltando professor, ou falta merenda, ou mesmo o colégio entra em greve porque não foi pago o dinheiro dos professores, aí o que é que acontece? Aquele menino vai ficando vulnerável, a família tem que trabalhar, porque não pode deixar de trabalhar, porque tem que sustentar os filhos e muitas vezes os filhos ficam um pouco abandonados, não porque os pais queiram, mas porque simplesmente eles têm que trabalhar, porque se eles não botarem comida na mesa vai ficar muito pior, então acontece que os meninos ficam vulneráveis à violência e nisso é que o Terrorismo do Estado continua predominando em toda sociedade.

Então esse terrorismo está na educação, na alimentação, na vida financeira do pobre, ou falta de vida financeira na verdade, na saúde quando é negado um remédio para uma mãe, um remédio de depressão, quando é negado um remédio de pressão alta, de diabetes, tudo isso é terrorismo, porque tudo que te aterroriza é terrorismo, então é isso. O que me aterroriza é justamente o terrorismo.

Na opinião de vocês, por que esse tipo de violência ainda ocorre?

Edna – Esse tipo de violência sempre vai existir, a verdade é essa. Porque na verdade as mortes de pobres, de pessoas periféricas, de jovens negros da periferia são patrimônios para o Estado, é patrimônio para empresas que lucram com a morte, então quem é que vai acabar com seu patrimônio? Ninguém. Ninguém vai querer acabar com seu patrimônio, todo mundo quer manter o seu patrimônio e o patrimônio da empresa da vela, da bala, do revólver, da segurança pública, das empresas de segurança privada é a morte do pobre. Das empresas de caixões, de funerária, de jazidos é a morte do pobre, então isso é um patrimônio. Se acabar com a morte do pobre, com certeza vai fechar muitas empresas, então nunca vai acabar.


O contexto do sistema prisional do Ceará é um contexto extremamente preocupante porque nos parece que só tem portas de entrada e não porta de saída. / Foto: SOP/CE

Como está essa realidade no Estado do Ceará atualmente?

Alessandra – Eu venho de dois espaços. Os espaços de privação de liberdade sempre são muito duros, não é fácil visitar um centro socioeducativo e é muito mais difícil visitar o espaço do sistema prisional, então a realidade que se mostra na vitrine da própria secretaria é uma realidade que é muito distanciada dos enfrentamentos que a gente tem, da dificuldade que é atravessar a cidade com os fardamentos ao qual nós somos impostas a vestir, das dificuldade que é chegar nas portas desses espaços e toda a burocracia que nos faz muitas vezes sequer acessar esses espaços. Da dificuldade que é também, inclusive, de você ter acesso a localização do próprio interno, a localização de onde nosso parente possa estar e isso é uma realidade muito dura, não só para nós, as mulheres daqui de Fortaleza que visitamos o complexo de Aquiraz, mas as que vem de bem longe, então é uma realidade bem difícil.

Hoje a gente tem reivindicado algumas questões, a do próprio fardamento, essa dificuldade do acesso aos processos, essa dificuldade de adentrar os espaços, a dificuldade que a gente enfrenta na revista vexatória e a dificuldade de ser familiar do preso. 

Precisa se dizer que somos mulheres em sua maioria, e muitas vezes somos marginalizadas, culpabilizadas pelos erros dos nossos familiares que se encontram nesses espaços. É daí eu trago esse olhar da dificuldade que é ser familiar. O contexto do sistema prisional do Ceará é um contexto extremamente preocupante porque nos parece que só tem portas de entrada e não porta de saída. É preciso que se fale mais em estruturas que, quando essas pessoas saiam não possam retornar para esses espaços e que deem mais oportunidades para essas pessoas.

Edna – A violência eu comecei a analisar de 2015 para cá, até antes eu não avaliava. Eu achava que acontecia violência por causa do crime mesmo. Isso é uma visão minha como é a visão de muitas pessoas ainda. Mas infelizmente, quando a polícia matou meu filho, que eu desejava que meu filho servisse o Exército Brasileiro, eu perdi o meu filho na mão do estado, da polícia que a gente paga, então eu percebi que essa violência não diminui, ela só aumenta. Por que que ela não diminui? Porque ninguém tem pretensão de acabar com a violência, porque se o estado quisesse, se o país quisesse acabar com a violência, teriam métodos muito mais fáceis do que eles estarem investindo em polícia. Izolda contratou agora nesse final de mês mais de dois mil policiais. Gente, nós não precisamos de policiais, precisamos de UPAs com atendimento digno para os familiares pobres, precisamos de Cucas, de espaços onde as pessoas joguem bola, ter um lazer, então nós precisamos disso e não de polícia.

Quais alternativas estão sendo pensadas para diminuir, ou acabar com esse tipo de violência?

Edna – A gente está pedindo que o estado crie mecanismo que possa diminuir a violência. Só que acontece que a gente pensa, a gente propõe, a gente faz reuniões, audiências públicas, a gente faz manifestações e pede que tenha uma segurança com responsabilidade, que não tenha mais uma polícia ostensiva dentro da periferia, porque dentro da periferia só tem uma polícia, a que mata, um grupo de extermínio que mata a população pobre, negra e periférica, só que acontece que o estado não oferece isso.

Estamos lutando contra o nosso próprio algoz porque eles obedecem, não aceitam... Sabe por que eles não aceitam? Porque isso não é interessante para ele, simplesmente isso, o Estado não se interessa da segurança de um pobre, o Estado não se interessa da saúde de um pobre, o Estado não se interessa de proteger o pobre, ele se interessa de matar.

A gente tenta, a gente procura que o Ministério Público agilize os casos, acelere os casos que não foram julgados, que nem o caso do Curió que vai fazer sete anos e não foi julgado, a gente procura políticas públicas. Eu acho que o que a gente pode fazer é dentro das escolas, aumentar uma matéria que tinha que existir, matéria de políticas públicas dentro da escola.


A gente luta por dignidade de uma vida melhor. / Foto: Lucianna Silveira/Coletivo Nigeria

Quais as principais pautas levantadas por esses coletivos?

Edna – As principais pautas levantadas no Coletivo Curió e das Mães da Periferia, primeiro de tudo é em favor a vida, é manter a periferia viva, segundo é ter a justiça pelos nossos, terceiro um núcleo de atendimento psicossocial para as mães que sofrem depressão pós morte dos seus filhos, ou aliás, pós assassinato dos seus filhos, que o Estado mata. Então a gente luta por dignidade de uma vida melhor.

Nós do movimento Mães do Curió, Mães da Periferia fazemos projetos para fornecer cesta básica, para fornecer remédio, para fornecer gás quando nós podemos, para fornecer um kit de beleza no Dia das Mães porque o Estado nega. Nega o direito à saúde mental, nega o direito de uma mãe ser consultada, ter um psicólogo, a gente luta por isso. Por quê? porque entendemos que a luta não é só por memória e justiça, a luta tem que ser muito além da memória e justiça, a memória e justiça é a pauta, mas dentro da pauta a gente desempenha vários trabalhos que é a garantia da vida, que é a garantia da alimentação, que a garantia do remédio se precisar, que a garantia de um dia de lazer, de uma terapia ocupacional, seja do que for, a gente tem que garantir e isso.

Alessandra – Das alternativas apresentadas a nós, elas são muito distantes, porque o Coletivo Vozes existe desde 2013. Desde 2013 a gente problematiza as questões que vivenciamos na socioeducação e no sistema prisional. Nele foi uma caminhada bem mais dura porque exaustivamente fizemos inúmeras denúncias, inúmeras problematizações, porque não é só uma denúncia pela denúncia, é uma questão mesmo de perseguição.

Muitas vezes, quando a gente vai problematizar as situações do próprio sistema, somos retalhadas por isso, quem está lá dentro sofre algum tipo de sanção, de castigo, porque o familiar está aqui problematizando, e é preciso que se problematize porque as coisas não podem acontecer do jeito que as unidades tiram suas normas que não sejam portarias.

Então assim, existiu um relatório do Mecanismo Nacional de Combate à Tortura que veio aqui e produziu um relatório imenso de como estava a situação do sistema prisional cearense, esse relatório não foi à frente, foi engavetado e aí exaustivamente os familiares junto com a sociedade civil denunciavam, problematizavam as questões de torturas e violações de direitos. É apresentado uma coisa, mas na realidade a gente vivência outra, então nós apontamos algumas questões, então houve uma missão de toda a sociedade civil organizada junto com quem pauta Direitos Humanos para a vinda do CNJ, e o CNJ veio em uma missão com mais de 11 juízes, e os juízes produziram um relatório que vai falar por si, o que nós há muitas bocas falávamos e agonizávamos nas nossas problematizações e denúncias.

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Edição: Camila Garcia