Rio Grande do Sul

EDUCAÇÃO POPULAR

Artigo | O dia em que Paulo Freire baixou no terreiro em Porto Alegre

Paulo Freire virou encantado exatamente 25 anos atrás: um quarto de século, em 2 de maio de 1997, mas segue vivo

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Recorte de ilustração que integra a exposição de cartazes “Esperançar, 100 anos de Paulo Freire” - Imagem: Túlio Carapiá e Clara Cerqueira

Sim, isso mesmo. E não foi apenas uma vez, foram muitas, incontáveis vezes. De diferentes formas ele se manifestou. Algumas vezes brevemente, outras mais perenes. Através de seu avatar físico ou em diferentes cavalos, metamorfoseado, seu espírito se manifestou, a dizer e testemunhar: “é preciso pronunciar a sua palavra”.

Ele baixou aqui em 1963, com o Ministro da Educação do governo Jango Goulart, Júlio Sambaqui, para junto com Ernani Maria Fiori, como coordenador do Plano Nacional de Alfabetização, organizar o Instituto de Educação Popular, com mais de 600 Círculos de Cultura no RS. Voltou em março de 1964, às vésperas do golpe civil-militar, para uma concorrida palestra voltada a educadores sobre o método de alfabetização que o fez conhecido em todo o Brasil.

A partir de 1984, depois de seu retorno do exílio, algumas vezes se manifestou na Capital e em eventos para educadores nas maiores cidades do interior do estado. Dez anos depois, em 1994 veio especialmente para receber o título de Doutor Honoris Causa, outorgado a ele pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 1995, no Ginásio Tesourinha, a convite da Secretaria Municipal de Educação, falou para mais de duzentos educadores/as e três mil educandas e educandos da Educação de Jovens e Adultos (EJA), além de outros órgãos da administração municipal e o público em geral. Já adoentado, dois anos depois, partiu para outra dimensão, por certo, a semear novas utopias.

Encantamento e esperança no devir

Paulo Freire virou encantado exatamente 25 anos atrás: um quarto de século, em 2 de maio de 1997. Parece ontem, tamanho é o justo reconhecimento em relação à sua biografia e obra, a inspirar em todo o mundo práticas educativas libertas de lógicas opressivas, alienadoras e redutoras da condição humana, vocacionada ontológica e historicamente a “ser mais”.

No ano de 2021 celebrou-se o centenário de seu nascimento com inúmeras homenagens, atividades formativas, encontros e publicações, que em nosso meio se inseriram Campanha Latino-Americana e Caribenha em Defesa do Legado de Paulo Freire, organizada pelo Conselho de Educação Popular da América Latina e Caribe (CEAAL). Portanto, sob a égide de um resgate do pensamento freireano nos marcos da história da educação popular e das lutas contra-hegemônicas.

Sua obra e experiências como educador, gestor, assessor em políticas educacionais em governos progressistas além-fronteiras, constituem um daqueles esteios indispensáveis para levantar uma edificação. Fundamentos e métodos estão ali presentes, em uma teoria do conhecimento encharcada por um humanismo transcendente e politizado.

Dar passagem à Freire

E preciso dar passagem à Freire para reequilibrar nossa energia ancestral. Para nos reconectarmos com os fundamentos e princípios vitais-utópicos e seguirmos nossa jornada como educadores/as críticos, com os pés no chão, mãos na terra e a cabeça no universo.

Sob um contexto adverso e uma correlação de forças desfavorável, na qual a coalisão ultraconservadora ocupa os espaços de poder institucional, com um governante genocida, obscurantista e de caráter fascista, lembremos o essencial, presente na Pedagogia da Autonomia: “O mundo não é, o mundo está sendo... Não sou apenas objeto da História mas seu sujeito igualmente. No mundo da História, da cultura, da política, constato não para me adaptar mas para mudar”. (FREIRE, 1998, p. 85,86)

Em Freire podemos beber, tal fonte que sacia a sede do viajante, de uma educação biofílica, voltada à geração de vida e consciência que se faz práxis, da amorosidade ética que anda junto com a justa ira, a estimular lutas contra injustiças, contra o epistemicídio, a favor do diálogo educativo que trança saberes, vivências e vidas em comunidades de aprendizagens. Podemos em Freire buscar o alimento para revitalizar e reconstruir uma educação democrática e crítica em direção à emancipação humana. Mas é preciso, em primeiro lugar, disposição para sintonizar com essa energia, e dar passagem a Freire, para com ele aprender

Ancestralidade insurgente

Antepassados em uma percepção primeira, genealógica, implica em uma referência a quem veio antes, antecede nossa geração, que passou. Ancestralidade desde uma concepção mais ampla, no qual se destaca a formulação do filósofo Eduardo Oliveira, é aquela que se constitui como uma categoria analítica para compreender uma epistemologia que interpreta seu próprio sistema de significados a partir dos sujeitos, de seus territórios e de seus signos culturais e identitários. É, portanto, uma categoria de relação, que não se aparta da alteridade e da dimensão ética.

Há ancestralidades insurgentes que é preciso se reconectar e evocar: ameríndias, africanas, afro-brasileiras, em especial. Elas têm a potência de mobilizar as energias que dão sentido à própria existência e sustenta múltiplas formas de resistência e afirmação da vida durante séculos de colonialismo, escravização, exploração, dominação e tentativas de invisibilização. Freire está nesse panteão, como um dos expoentes da Filosofia da Libertação, operando ao lado de tantas outras/os que tombaram, griots da filosofia africana, caboclas e xamãs desde tempos imemoráveis.

Onde Paulo Freire se apresentará novamente?

Depende de nós, da sintonia, do ambiente, da grandeza da causa.

Em Porto Alegre ele baixou e tem vindo com frequência no Projeto PoAncestral – muito além de 250, extraordinária experiência de diálogo e produção de conhecimento entre educadoras/es da rede básica e suas organizações de classe (ATEMPA e CPHIS), ativistas e lideranças de movimentos sociais e pesquisadoras/es acadêmicas/os. Se manifestou recentemente no Fórum Social das Resistências, acontecido de 26 a 30 de abril passado, em Porto Alegre. Ele certamente estará, com alegria contagiante, no Fórum de Estudos: Leituras de Paulo Freire, que acontecerá em Santa Cruz do Sul, na UNISC, de 19 a 21 de maio próximo.

Em cada sala de aula, na qual uma educadora, um educando, instaurare um diálogo efetivo que parta da investigação e leitura crítica da realidade existente e construa conhecimentos pertinentes e significativos a partir dela. E projete as ações necessárias e possíveis para interferir na mudança do estágio inicial. Lá estará o espírito freireano se manifestando, a revitalizar os saberes ancestrais rebeldes e insurgentes, em uma comunidade na qual o pertencimento é partejador de novos mundos.

* Marco Mello é professor de História e Filosofia da Rede Municipal de Ensino de Porto Alegre

* Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Marcelo Ferreira