Paraná

Direito à cidade

Em contraponto ao discurso oficial, movimentos e comunidades recontam a construção de Curitiba

Curso iniciado neste mês resgata lutas e conflitos ausentes no relato de gestores públicos

Curitiba (PR) |
Curso reúne integrantes de movimentos populares e ocupações urbanas - Foto: Lizely Borges/Terra de Direitos

A história sobre o acesso à moradia, mobilidade urbana, ao saneamento, transporte coletivo e aos demais serviços e direitos essenciais que compõem o grande guarda-chuva do direito à cidade tem sido recontada, em outros termos, por integrantes de movimentos populares, comunidades urbanas e pesquisadores ao relatarem como vivenciam e compreendem a cidade de Curitiba (PR).

A construção coletiva da memória dos processos de ocupação e de luta pela cidade e dos sujeitos que deles participam têm ocorrido no curso "Direito à Cidade, Políticas Públicas e os Objetivos do Desenvolvimento Sustentável". Iniciado em abril, o curso terá um novo encontro neste sábado (30).

Diferente da retórica do poder público de que a competência de arquitetos e urbanistas, como Jaime Lerner (DEM) e o atual prefeito Rafael Greca (DEM), à frente da gestão pública da capital paranaense, alçou a cidade a um lugar de “cidade modelo”, as e os participantes do curso têm a possibilidade de relatar uma história de exclusão e violações pouco presente nos discursos oficiais.

O capítulo da relação mantida entre os urbanistas e as elites econômicas da cidade para imposição de um modelo lucrativo de ocupação espacial permanece oculto, mas está visível ao percorrer a cidade ou mesmo acessar dados como o do déficit habitacional.

De acordo com levantamento realizado pela Fundação João Pinheiro, com base nos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2015, Curitiba possuía um déficit habitacional de 79.949 domicílios naquele ano. Já a Região Metropolitana respondia por um déficit de 76.305 unidades, de maior parte concentrada em área urbana. Com a piora dos índices sociais nos últimos anos, os números possivelmente aumentaram, apontam especialistas.

O conceito de déficit habitacional considera moradias que não estão em condições de serem habitadas pela alta precariedade das construções ou de desgaste físico das estruturas de sustentação, as unidades necessárias para atender a moradores de baixa renda com dificuldade para pagar aluguel e imóveis alugados com excedente de moradores.

“Curitiba é muito boa em se tornar uma cidade mercadoria, uma cidade empresa. Mas ela ainda não consegue ser uma cidade inclusiva, de todos, uma cidade que realmente garanta transporte e moradia digna para a periferia. Todo o processo de desigualdade socioespacial que existe na nossa cidade foi gerada por estes últimos governos, porque a pauta da periferia, a pauta popular não é uma pauta”, destaca o professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR), Leandro Gorsdorf.

Nesta conta, mulheres, população negra, periférica e LGBTQIA+ têm sofrido com maior intensidade a violação do direito à cidade. A integrante do Observatório das Metrópoles, Elisa Siqueira, destaca que o acesso à cidade por estes grupos é desigual, com menor acesso ao equipamento básico.

“Essa desigualdade de acesso, quando não são evidenciadas, os problemas [administrados pelo poder público] que são tratados em relação ao acesso à cidade são problemas que apenas consideram as necessidades da população masculina, branca, heterossexual”, sublinha Elisa.

Mesmo o reconhecimento do transporte coletivo da capital, pilar da propaganda oficial de cidade-modelo, sofre frequentes denúncias de favorecimento do mercado em detrimento de uma tarifa coletiva acessível para a população.

No início de abril, o prefeito Greca remeteu à Câmara Municipal um projeto de lei orçamentária prevendo o remanejamento de R$ 174 milhões da Secretaria Municipal de Planejamento, Finanças e Orçamento para o Fundo de Urbanização de Curitiba. A justificativa é de que a tarifa social gera um ônus às empresas e é preciso que o governo suplemente esse déficit, com repasse de verba às empresas concessionárias.


A atividade contou com a assessoria da professora da UFPR, Olga Firkowski / Foto: Lizely Borges

Uma outra história

Para a professora aposentada do Departamento de Geografia da UFPR, Olga Firkowski, o resgate e a contestação da história oficial permitem trazer holofote para a construção de uma outra história sobre a cidade, a partir de uma perspectiva de quem a vive.

“Ao longo do tempo, a história vai sendo seletiva porque vai sendo contada por alguns grupos que privilegiam a sua visão. Temos nesta história o papel do negro deixado em segundo plano e um papel superlativo do europeu. São histórias convenientes para alguns grupos em alguns momentos e que podem ser desconstruídas e buscar brechas para dizer que não foi bem assim”, enfatiza. Para ela é fundamental que a população busque identificar quais conflitos sociais foram superados, e portanto não são relatados, por visões hegemônicas. 

Durante o primeiro encontro, houve destaque para os obstáculos presentes para que a população opine e participe das decisões sobre destinos da cidade.

"A turma resgatou desafios concretos enfrentados para participação popular, como a participação que o poder público garante somente do ponto de vista formal e não efetivo, com espaços apenas em horário de trabalho ou online, formulários inacessíveis, cortes de falas de lideranças comunitárias, dentre outros. Além disso, foram lembrados exemplos de como o tratamento é diferenciado na tratativa dos governantes com empresas do setor imobiliário, como no caso da revisão da Lei do Zoneamento”, relata a assessora jurídica da Terra de Direitos, Daisy Ribeiro.

O coletivo Mobiliza tem denunciado o caráter pouco democrático da revisão das leis sobre o zoneamento da cidade. As ações populares de enfrentamento ao discurso oficial sofrem a resistência do poder público, aponta o urbanista e integrante do coletivo Mobiliza Curitiba, Alexandre Pedrozo.

“Existe, no campo de quem pensa e decide, de quem tem dinheiro e poder para a cidade, a ideia de uma cidade ideal. Isso vai forjando os discursos. As narrativas colocadas – cidade ecológica, cidade social [slogans usados para apresentar Curitiba] – são narrativas que precisam ser colocadas pelo governo para que ninguém questione. Quando você coloca em xeque isso, dizendo que não tenho água, que a moradia não está resolvida, que o transporte está caro, essa pessoa é colocada de lado. Para o poder público é importante calar essas pessoas”, diz.


Com a assessoria de Alexandre Pedrozo foi resgatado o processo de ocupação da cidade / Foto: Lizely Borges

Construção conjunta de resistências

Ainda que as reflexões sobre o direito à cidade de Curitiba mirem maior atenção para as realidades urbanas, as violências presentes na capital possuem forte semelhança com a violação do direito à terra para o trabalhador do campo.

“Ambos [movimentos urbanos e rurais] buscamos um projeto popular de cidade onde estejam assegurados moradia, terra, emprego digno - direitos humanos previstos na Constituição Federal -, mas que as autoridades não se movimentam para assegurar”, destaca a integrante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), Gisele David.

“A forma mais comum de organização popular na luta por estes direitos é a organização de ocupações, de terrenos ou contra o latifúndio. Além da necessidade emergencial de ter um local para morar e não ficar a mercê e ter o mínimo do mínimo, é também uma pressão social às autoridades para que seja garantido que está constitucionalmente assegurado”, complementa.


Em atividade em campo, participantes puderam ver a expansão da mancha urbana / Foto: Lizely Borges

Edição: Lia Bianchini