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Abandono

Artigo | O Estado Paralelo: Abandono e ocupação dos espaços sociais do Centro de Fortaleza

Compartilho com todes a última parte da trilogia de artigos sobre o Centro comercial de Fortaleza

Fortaleza, CE |
Praça do ferreira
Praça do Ferreira - Foto: Camila Garcia

O Centro em dezembro estava pulsando, era o mês natalino de compras e festas, tinha tudo pra uma economia bem aquecida mesmo com as restrições. Não foi à toa que o tradicional Natal de Luz tinha voltado, celebrando à sua 25ª edição - com o hipócrita e medíocre Lema: "A Luz da Esperança em Você", que passou mensagem nenhuma. O espetáculo ficou por conta do Coral formado por crianças e adolescentes, que se apresentavam das sacadas do Hotel Excelsior, na Praça do Ferreira, sempre às 18hs, cantavam para uma massa que chegavam com seus filhos, que assim como o hipócrita lema, ignoravam outras crianças e suas famílias em situação de rua, que sempre estavam sob o “olhar do vigia”, tentando se anestesiar por alguns momentos da vida sofrida com as luzes, cores e os belos cantos natalinos.

Observando os principais espaços e territórios, só vi desperdício, descaso e um futuro caótico se continuarem com essa linha política. Nessa realidade cruel em meio as nossas pupilas dilatadas, nossas cegueiras não enxergam um mundo paralelo se erguendo rápido no falir das lojas com suas placas de aluga-se pela incompetência capitalista que os abraça, inclusive agora. 

Gradualmente abandonado pelas as elites e resistentemente ocupado pelo trabalhador, o velho centro está na UTI respirando oxigênio a conta-gotas, doado graças a Deus pelos que vivem nele. Nesse antagonismo secular, a ocupação, os conflitos e os interesses se estendem da feira da madrugada, até a Favela Baixa Pau, os arredores do Centro Cultural Dragão do Mar, indo do Buraco da Gia, até o lado oeste do centro que vai do Mercado São Sebastião, Cemitério São João Batista, Favela do Oitão Preto, até as galerias do Beco da Poeira transpirando incertezas, medo, insegurança, mas também muita resistência. É na dialética desse mix de sentimentos que o domínio do Estado Paralelo cresce.

Nesses anos de governos progressistas, infelizmente o centro foi ficando mais feio, sujo, sombrio, sinistro e triste. Só não virou uma zona fantasma porque pequenos comerciantes, o lumpesinato e os movimentos sociais ainda insistem em ocupar. Na impregnante redundância, continuo a afirmar que não existe projeto para expansão e valorização da área econômica, turística e cultural do velho centro. Ao contrário disso, a prefeitura comanda com conceitos dos bolsonaristas do CDL (que sonham em ver na administração pública o Capitão Wagner) vem implementando uma política de higienização e truculência, porém, na contra mão das ações do Estado Legal.

Enquanto isso, o Estado Paralelo aparentemente vem garantindo organização, segurança, disciplina e ordenamento de alguns espaços e serviços essenciais. Um novo agente se fixa e se consolida no velho centro. Proibindo assaltos, homicídios e outras ações violentas.

Assim como nas periferias o crime organizado, vem exercendo poder real no cotidiano popular, embora se tratando de um território “desconstruído” e “reconstruído” semanalmente, por conta do horário, o centro comercial de Fortaleza que se estende até as orlas chiques não é mais zona neutra. Impactando diretamente na vida de centenas de pessoas que dependem desses territórios para trabalhar. Pois bem, quero dizer que todos os territórios estão dominados, as principais praças onde aglomera a massa trabalhadora e os excluídos, se têm um “frente” gerenciando. Outros são os espaços sociais que já estão controlados a exemplo dos abrigos do governo e etc.

Nessa evolução das ruas, o mercado varejista de drogas apesar de lucrativo, já não é mais a única fonte. O crime ensaia mecanismos de controle na economia informal popular e de olho na formal. O que posso afirmar é que vários serviços dos mais nobres, até os mais simples, como os de vigias, jogo do bicho, vendedores de cafezinhos, livros usados, lanches, água, bugigangas, até as profissões milenares como cafetinagem e prostituição estão controladas, ou sofrem influência do Estado Paralelo, por exemplo: flanelinhas chegam a pagar diariamente entre 20 a 30 reais aos “frentes” dos territórios para poder trabalhar.

Trabalhadores do sexo de todos os gêneros que dependem do Centro sofrem o impacto dessa nova ordenação, pois ninguém mais pode trabalhar no centro se for de outra área que não seja da facção criminosa presente no território.  Os espaços fechados, antigos cabarés populares como a Boate 90, Espaço 100% Show e a Casa 3010 para citar alguns e os territórios das travestis a noite no entorno do Parque das Crianças, e os espaços dos michês em bares da Av. Duque de Caxias estão monitorados, avisos e regras são nítidos. Ninguém pode vacilar.

Até as políticas públicas foram atingidas, centenas de pessoas entre beneficiários e profissionais estão sendo prejudicados. E o mais triste é que não vemos luz no fim do túnel, ou seja, estamos por conta de nós mesmos. Será que é possível dizer que nesse território geográfico bem delimitado, já está monopolizado e com um processo de cartelização? As autoridades e especialistas em segurança e políticas públicas têm ciência disso? E o povo consegue ver e compreender a dimensão desse abismo? Ou a atual situação política que atropela tudo invisibilizará ainda mais essa pauta? Será que essas questões virão pra agenda eleitoral?

*Assistente Social, militante do MTD e defensor dos direitos humanos e da paz na periferia.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do Brasil de Fato.

Edição: Camila Garcia