Paraná

Resistência

Artigo | “Travesti boa, é travesti morta, principalmente preta!”

A vida de uma travesti negra no Brasil é a que tem o menor valor

Curitiba (PR) |
Dados do Grupo Gay da Bahia confirmam que o risco de uma travesti ou mulher trans ser assassinada é 14 vezes maior em relação a homens gays
Dados do Grupo Gay da Bahia confirmam que o risco de uma travesti ou mulher trans ser assassinada é 14 vezes maior em relação a homens gays - Corbin Smith

O jargão repetido incansavelmente por Jair Bolsonaro - antes, durante e depois das eleições presidenciais em 2018 - “bandido bom é bandido morto”, seria, para boa parte da população brasileira, um salvo conduto para perseguir, excluir, discriminar e matar.

O conceito de bandido utilizado por Bolsonaro e suas apoiadoras e seus apoiadores não está associado, necessariamente, a uma pessoa que tenha, de fato, cometido algum crime.

Tanto o pertencimento racial negro, quanto a orientação sexual gay e lésbica e a identidade de gênero travesti e transexual, colocam um número significativo de pessoas na condição de potencialmente perigosas, criminosas e inferiores, por romperem com um padrão universal de humanidade imposto pela cisgeneridade branca heterossexual.

Os termos “viado” e “macaco”, utilizados insistentemente na maioria dos ataques homo-transfóbicos e racistas que circulam, via diversos meios, principalmente pela internet, não apenas procuram desumanizar suas vítimas, mas informar que fazer viver ou deixar morrer, como alertou Michel Foucault (2005), é uma questão de consentimento, assim como ir e vir e/ou fazer uso dos espaços públicos.

É sem dúvida uma herança perversa do racismo cientifico e da Antropologia Criminal de Césare Lombroso (1835 – 1909), uma das vertentes do determinismo racial que afirmava que era possível identificar um criminoso antes que cometesse o crime. Não por acaso, explica Maria Aparecida Silva Bento, 2002, que “o biótipo do criminoso nato de Lombroso era o biótipo do negro, eram os negros que estavam, sob o rótulo de criminosos, presos nas casas de detenções, submetidos à mensuração”.

Em relação aos homossexuais, Lombroso afirmava que representavam “um estágio de desenvolvimento mais baixo do que o da heterossexualidade [...] e defendia a proposta de que os homossexuais deveriam ser restringidos a asilos, devido ao perigo que representavam para a sociedade” (LOMBROSO apud Pilar Rodriguez BELMONTE, 2009, p. 34).

Assim, ao longo dos anos de 2019, 2020 e 2021, as teorias de Lombroso foram atualizadas em inúmeras ações policiais e decisões judiciais, perseguindo, prendendo e condenando pessoas negras inocentes, cis e trans. Por outro lado, pessoas negras vítimas de crimes de racismo sequer conseguiram fazer boletim de ocorrência e, quando conseguiram, foram desacreditadas pela justiça.

Se a categoria “negro” é ainda no Brasil indicativa de uma propensão ao crime, sua intersecção com o status da travestilidade e transexualidade funciona como marcadora de perigo, perversão e amoralidade, potencializando, não apenas a vigilância, mas ações coercitivas sobre os corpos.

A suposta degenerescência moral de travestis e mulheres transexuais negras e a suposta impossibilidade do convívio em sociedade por não “decifrar” os códigos de conduta social que lhes são apresentados e a necessidade de proteger a sociedade de práticas sexuais e identidades de gênero que não obedeçam a ordem estabelecida do que é moralmente correto e aceitável, justificariam a política de morte que produz seu extermínio.

O direito de decidir que vidas valem mais e que vidas devem ser eliminadas, se materializam nos dados estatísticos produzidos pelos movimentos sociais. Os dados obtidos pelo Grupo Gay da Bahia confirmam que o risco de uma travesti ou mulher trans ser assassinada é 14 vezes maior em relação a homens gays.

A vida de uma travesti negra no Brasil, porém, é a que tem o menor valor. É a mais curta do planeta, tendo em média, de acordo com Mariah Rafaela Silva, mulher trans, negra, favelada, doutoranda em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), uma expectativa de vida entre 27 e 28 anos.

Mesmo em tempos de pandemia em função do coronavírus, inúmeras travestis e mulheres transexuais foram vítimas de violências, o que resultou, em 2020, em 175 assassinatos.

Os dados coletados pela ANTRA [Associação Nacional de Travestis e Transexuais] revelam que a maioria das vítimas, 56%, tinha entre 15 e 29 anos e que em 47% dos crimes, golpes e/ou tiros atingiram principalmente partes específicas do corpo, como rosto/cabeça, seios e órgão genital.

Confirmando que o racismo potencializa a violência que incide sobre travestis e mulheres transexuais, 78% das vítimas eram negras.

Ainda que o racismo e a transfobia se mostrem de fato como possibilidades concretas de extermínio, a política de morte que espreita a cada esquina não é novidade na vida de pessoas negras, travestis e mulheres transexuais.

A novidade, desde 2018, é a maneira escancarada com que as mortes de pessoas negras, de travestis e mulheres transexuais são anunciadas e celebradas.

Do outro lado, porém, as trincheiras são reforçadas, as estratégias de resistências reformuladas, ainda que numa disputa de forças desiguais, para dar concretude ao slogan “Vidas Negras Importam”.

Vidas negras travestis!
Vidas negras trans!
Vidas negras!

Referências

BELMONTE, Pilar Rodriguez. História da homossexualidade: ciência e contra-ciência no Rio de Janeiro (1970-2000). Tese (Doutorado em História das Ciências) – Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2009.

BENTO, Maria Aparecida Silva. Branqueamento e branquitude no Brasil. In: CARONE, Iray; BENTO, Maria Aparecida Silva (Orgs.). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil. Petrópolis: Vozes, 2002, p. 25-58.

FOCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no College de France (1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005.

VIEIRA, Fernanda Dantas. A caça aos homossexuais e às travestis na ditadura militar. Pragmatismo Político. (2015). Disponível em: <https://www.pragmatismopolitico.com.br/2015/04/a-caca-aos-homossexuais-e-travestis-na-ditadura-militar.html>. Acesso 08 ago. 2018.

*Megg Rayara Gomes de Oliveira é travesti preta, doutora em educação, professora na graduação e na pós-graduação no Setor de Educação na Universidade Federal do Paraná (UFPR).

**O título foi extraído do artigo “Racismo e homo-transfobia como política de morte do governo”, publicado na Revista Cult em maio de 2021.

***Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Lia Bianchini