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Qual será a ‘agenda de outubro’ da esquerda no Brasil?

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A energia e as possibilidades em torno da vitória de Lula devem ser aproveitadas para pautar as medidas emergenciais necessárias para enfrentar o que foi implementado no país desde o golpe de 2016 - Giorgia Prates
Sobre a frente ampla, proposta de Alckmin como vice, e os desafios na luta contra Bolsonaro

A questão das alianças em torno da candidatura de Lula, com a atual sinalização de Geraldo Alckmin como vice-presidente, e mesmo a sondagem em torno de Gilberto Kassab (PSD), muitas vezes é colocada pela militância e nos debates nas redes sociais de forma incorreta. Ou incompleta. 

A questão não é em si mesma a figura para o cargo de vice. O primeiro ponto central, como já apontou em artigo recente o professor Armando Boito, é o programa com que se pretende pautar a candidatura de Lula, quais são as medidas necessárias para o país na atual crise e que, consigam, ao mesmo tempo, mobilizar o povo brasileiro e os trabalhadores em torno de mudanças estruturais.

Nesse sentido, outra questão se coloca de forma urgente na conjuntura atual. Um raio de alianças amplo é preciso para derrotar o neofascismo com Bolsonaro na presidência? À resposta positiva deve ser acrescentada nova questão: Como manter essa amplitude sem perder de vista a preocupação das forças populares em conquistar a hegemonia dos trabalhadores e da organização popular no interior dessa frente? O que ocorre no interior de uma aliança que, pelo caráter amplo, tem um eixo e um limite determinado pelo programa, tempo e circunstâncias. Como afirmava a socióloga Martha Harnecker: “A amplitude de uma frente política depende dos objetivos que pretende alcançar”.

É fato que um programa deve ser o eixo condutor de um governo progressista, mas não será aplicado de forma imediata. A conjuntura e a realidade impõe avanços e recuos, acertos e erros, possibilidades e portas fechadas. Na realidade, o que deve ser uma preocupação permanente é a capacidade de educação, conscientização, politização das massas, compreensão do processo, que é a própria luta de classes. 

As experiências de governos populares mais avançadas e revoluções nos países dependentes e da América Latina mostra a necessidade de recorrer às massas populares para a defesa desse processo. Nesse sentido, a esquerda deve observar a situação do governo de Pedro Castillo, eleito em 2021 no Peru, país marcado por décadas de hegemonia neoliberal e alinhamento com o governo dos EUA. Com um programa democrático e popular, capaz de apontar os problemas estruturais no país, mobilizando trabalhadores e camponeses, somente dando sequência a esta mobilização o governo será capaz de enfrentar a pressão da direita, congresso e mídia peruanos. 

A pressão sobre governos progressistas se acentua neste quadrante da História. Afinal, em décadas recentes, vimos o governo dos EUA disposto a golpes de Estado, buscando retomar sua influência na América Latina, e uma crise que se acentua devido à pandemia e à reconfiguração geopolítica com a aliança entre Rússia e China.  

A energia e as possibilidades em torno da vitória de Lula devem ser aproveitadas para pautar as medidas emergenciais necessárias para enfrentar o que foi implementado no país desde o golpe de 2016. 

O fator Lula neste sentido não pode ser colocado na balança de forma desmedida. Nem Lula poderá resolver questões que ultrapassam a atual capacidade de luta dos trabalhadores. Mas tampouco o governo de esquerda é uma entidade neutra e, se quiser trilhar uma via de reformas favoráveis aos trabalhadores, deve contar com a mobilização de massas e recorrer a ela. 

Aliança com setores conservadores e neoliberais?

Desde 2018, colocou-se uma situação nova para a esquerda e as forças populares: No Brasil e em vários países, combater o neofascismo, que apresenta base social de massas, e cujo programa aplicado se equivale às medidas neoliberais. 

Muitos partidos da chamada direita tradicional têm acordo com o governo desde o seu início, em 2019, na aplicação de um projeto de privatizações e retirada de direitos, embora tenham divergido em algum momento nas políticas sanitárias. Com isso, não houve uma oposição consistente rumo ao impeachment – trazendo até aqui, no máximo, movimentos de demarcação em defesa de instituições, como se viu sobretudo no ano de 2020 e 2021.

No Congresso Nacional, o apoio ao governo segue pautado por interesses econômicos corporativos e pela pauta neoliberal, de interesse dos grandes grupos, no marco de nosso sistema político elitista, o que coloca aqui questão chave sobre a fragilidade e os problemas de um processo de frente ampla. 

O governo neofascista, por sua vez, buscou manter sua base coesa ao longo desses anos, atacando instituições. Sobretudo no primeiro semestre de 2020, apresentando conflitos no que se refere à condução da pandemia, contra governadores, parte do Congresso, gerando rusgas sobretudo com o Judiciário e com o Supremo Tribunal Federal.

Ao longo do ano de 2021, os atos nacionais atingem um patamar importante, mas o governo não se desgasta o suficiente para sua queda – o que ainda demanda uma avaliação séria sobre os limites do envolvimento de maior parte das massas populares, em um momento defensivo.

Por um lado, o desgaste do bolsonarismo encontrou seu maior patamar em 2021, em um momento em que trabalhadores e as massas populares enfrentam péssimas condições de vida, trabalho e alimentação, tendo como exemplo os 70% dos acordos salariais que estiveram abaixo da inflação (Dieese) e a ameaça crescente do subemprego, do desemprego e da fome. 

Por outro lado, a burguesia brasileira, em suas diferentes frações, segue alinhada ao programa neoliberal executado até aqui pelo governo, e que já envolveu a venda de setores da Petrobras, da Eletrobras e o encaminhamento da privatização dos Correios (ainda não levada a cabo). Uma passada rápida pelo site das principais entidades patronais (Fiesp, CNI, Abimaq, Firjan, Fiep, Febraban, entre outras) revela um profundo silêncio e ausência de críticas ao atual governo. 

Ainda no primeiro semestre de 2021, a importante recuperação dos direitos políticos de Lula abriu maior possibilidade da esquerda polarizar com o neofascismo, buscando alterar a centralidade da contradição que se dava até então entre o governo neofascista e a chamada tradicional.

Mobilizar a classe trabalhadora

É justamente aí que entra o papel das forças populares em pressionar pela pauta das necessidades econômicas e das demandas por reformas estruturais que devem ser implementadas. É preciso o posicionamento firme sobre o fato de que não nos interessa uma chegada ao governo sem mobilização, sem ferramentas que contribuam para a organização popular. 

Em um momento de polarização política, que empurra Lula para a disputa com a extrema-direita, é preciso nos centrarmos no que é necessário para derrotar o bolsonarismo. O que as massas, em alguma medida, esperam: transformações econômicas, políticas que façam a diferença em sua qualidade de vida. E que, nesse sentido, também as convoquem a visualizar quem são os inimigos que lhes retiram esses direitos.

Os fatos recentes, caso do atual debate em torno da revogação da reforma trabalhista e a pressão de analistas da mídia burguesa exigindo críticas ao processo bolivariano na Venezuela são sinais de que há margem para pautar um importante debate programático, econômico e político na sociedade.

Agenda de Outubro?

Em 2006, o governo de Evo Morales, em conjuntura de ascenso das lutas de massas na Bolívia, foi guiado pela chamada Agenda de Outubro, resultado de grandes lutas populares desde o início dos anos 2000 naquele país. 

No Brasil, em um ambiente certamente mais difícil e de defensiva dos trabalhadores, no entanto, cabe a pergunta: Qual será a agenda de outubro que guiará a candidatura Lula? As forças populares devem estar convocadas a incidir de forma detalhada neste debate, o que é mais central do que uma preocupação de construção de Frente Ampla sem a preocupação programática.

Devemos aproveitar todo o desgaste relativo às diferenças entre as frações de classe burguesas. No entanto, como Florestan Fernandes nos deixa nítido, não há projeto de país possível e tarefas democráticas levadas a cabo pela burguesia brasileira. 

A realidade brasileira, com a experiência de três anos de um governo neofascista, corrupto, responsável por milhares de mortes, despejos forçados e pela fome, revela o desafio de se combater um governo que tem em disputas pontuais com conservadoras um item de coesão – ao mesmo tempo em que comunga com elas no debate econômico neoliberal. É preciso aliar o combate contra o neofascismo e o programa antineoliberal.

É preciso apresentar um programa e debatê-lo com os trabalhadores, uma pauta concreta, democrática e popular, que aproveite este momento de grande aprovação de urna nas pesquisas e necessidade de transformar isso em lutas, mobilização e organização popular.

Afinal, como afirma o jornalista Breno Altman, em suas redes sociais, “O PT será pressionado por setores da burguesia para renunciar ao seu núcleo programático: revogação do teto de gastos, da reforma trabalhista e da independência do Banco Central, entre outras medidas. O partido deveria negociar esses pontos para garantir alianças à direita?”

 



 

Edição: Lia Bianchini