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CRÔNICA. As redes sociais, a realidade, e a pergunta do professor Nigro

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Mas também, ao lado disso, devemos ter a capacidade de estar presentes nas lutas reais do povo brasileiro, nas greves, nos protestos, na solidariedade, nos trabalhos ombro a ombro nas periferias - Giorgia Prates
Talvez nos falte a percepção e a valorização daquilo que torna a vida mais presencial, mais concreta

Alguns professores nem suspeitam como, com pequenas frases e gestos, podem deixar marcas gravadas em nossa memória. Não apenas como uma lembrança geral, mas na recordação de determinada cena ou comentário.

Foi o que aconteceu comigo, em pleno ensino médio, quando José Nigro, professor de Biologia, que tinha o hábito de nos orientar a todo momento, deixava de lado o conteúdo da apostila e transformava sua aula numa exposição de conselhos. E dos bons. Não me lembro em qual contexto, porém não esqueço do dia quando ele falou:

- O problema é nunca fazer as coisas no momento que devem ser feitas. Vocês estão aqui na sala de aula pensando na balada. E, na balada, às vezes estão preocupados e não aproveitam, pensando na aula e nas provas. Nunca estão presentes no momento.

Embora a frase tenha sido dita em contexto anterior às redes sociais, aos aplicativos de bate-papo, e às formas de comunicação que temos hoje, com tantas possibilidades, me parece que recordar daquele professor (que inclusive carregava humanismo e dor em sua triste figura, por ter perdido uma filha adolescente de forma trágica, vítima de meningite) expressa o desafio que vivemos nos dias de hoje: o de estar presente.

Isso se escancara no final do ano, quando estamos com amigos, porém conversamos com outras pessoas ao mesmo tempo no celular, quando estamos com os filhos, mas damos o péssimo exemplo da falta de atenção com eles – e acabamos incentivando com que façam o mesmo. Quando não paramos um pouco, em nosso bairro, para escutar os relatos dos moradores, carregados de “narrativas”, uma palavra da moda, mas pouco valorizada na prática. Quando temos determinado plano de estudos ou leitura, mas somos a todo momento interrompidos por outros conteúdos que nós mesmos nos impusemos. Eu mesmo confesso que deveria, neste exato instante, reservar tempo para o descanso no recesso, mas me coloquei para escrever esta última crônica do ano.

No trabalho, sobretudo, hoje as novas tecnologias elevam a jornada, ao mesmo tempo em que aumentam a produtividade, e eliminam os “tempos mortos”, extrapolando a atividade para dentro de nossas casas, sem limites de local e horário.

É óbvio: as possibilidades de comunicação com as novas ferramentas são amplas e imprescindíveis. Acredito inclusive que as megacorporações, caso do Facebook, entre outras empresas, já começam a passar pela crítica devido à sua concentração, interferência na política de vários países e controle privado de dados da população.

Entretanto, talvez nos falte a percepção e a valorização daquilo que torna a vida mais presencial, mais concreta: quando praticamos uma ação de solidariedade com o próximo, quando fazemos um trabalho numa horta, cozinha ou padaria comunitária, como nunca havíamos feito antes; quando reservamos um tempo para as atividades das crianças, quando fazemos um mutirão coletivo de trabalho, quando estudamos, criamos ou trabalhamos com arte, quando nos organizamos para transformar a realidade. São momentos em que estamos presentes.

Um balanço sobre o difícil ano de 2021 mostra que fizemos o possível para resistir contra o governo que nos empurra para fora do melhor de nós mesmos, um governo que a todo momento busca eliminar a empatia e o sentido humano e coletivo – como vemos neste momento a indiferença de Bolsonaro e sua falta de presença no drama das famílias vítimas do desequilíbrio ambiental no estado da Bahia.

Em 2022, as disputas políticas terão como arena importante as plataformas nas redes sociais para derrotar este governo de morte. Mas também, ao lado disso, devemos ter a capacidade de estar presentes nas lutas reais do povo brasileiro, nas greves, nos protestos, na solidariedade, nos trabalhos ombro a ombro nas periferias; nas conversas de casa em casa. Na capacidade de resistência com nossos corpos. Termino a última crônica deste ano lembrando do poeta Ferreira Gullar, que falava em “formar uma muralha com nossos corpos de sonho e margaridas”.

Edição: Frédi Vasconcelos