Paraíba

Coluna

A crise hídrica, a questão alimentar e o flagelo da fome

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A pior crise hídrica em 91 anos ameaça a produção de energia e de alimentos e reflete os impactos ambientais do agronegócio - Reprodução
A escassez hídrica afeta a dinâmica produtiva, derivando em inflação e agravando a fome no Brasil

Por Laura Bezerra de Paula Pessoa* e Alexandre Cesar Cunha Leite**

 

A Organização Mundial de Meteorologia (OMM) alertou, por meio do documento Situação dos Serviços Climáticos 2021: Água, que o mundo pode enfrentar, em breve, uma crise hídrica global caso os países não adotem medidas direcionadas a uma gestão consciente e sustentável de seus recursos hídricos. De forma resumida, pode-se dizer que uma crise hídrica se caracteriza por uma situação de desabastecimento (ou a falta) de água para consumo humano. São várias as causas ou agravantes de uma crise hídrica, desde a falta de investimento na manutenção e na criação de uma infraestrutura adequada à reserva e ao abastecimento, períodos de estiagem prolongada (secas), má gestão dos recursos hídricos, passando por problemas associados ao consumo (industrial, nas atividades agropecuárias e no uso consumo doméstico), e, sobretudo, em decorrência de problemas ambientais. 

O Brasil figura entre os casos em que os efeitos da crise hídrica vêm sendo mais intensamente vivenciados. Porém, vale mencionar que a crise atual tem sido noticiada e alertada desde 2014 e as medidas precaucionais tem sido postergadas pelos governos. Hoje, além da crise econômica intensificada pela pandemia do SARS-CoV-2 (Covid-19) e do conturbado cenário político, o Brasil enfrenta a pior crise hídrica dos últimos 91 anos

O Relatório Mundial das Nações Unidas sobre Desenvolvimento dos Recursos Hídricos 2021 indica que a escassez de água tem origem na intensa urbanização, no consumo associado à produção agrícola e nos problemas ambientais. No caso do Brasil, a falta de chuva combinada com as atividades do agronegócio resultaram na atual crise hídrica. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento (ANA), o setor do agronegócio é responsável pelo consumo de 72% dos recursos hídricos do país. Este mesmo setor é também responsável pelo desperdício de cerca de 70% da água em seus processos produtivos, alega a ONG SOS Mata Atlântica. 

E aqui reside um esclarecimento necessário. Sabe-se que todo consumo exacerbado, sem consciência, tende a gerar desperdício e, certamente, é imperativo evitá-lo. Mas é relevante informar adequadamente: o consumo individual não é o vilão da crise hídrica. O consumo das atividades produtivas, especificamente do setor agropecuário, é, de longe, o maior consumidor deste recurso. Mas, ao contrário do que se pode supor, o agronegócio sofre menos com a crise. Os consumidores individuais, os domicílios familiares, estes sim sofrem e na maioria das vezes sofrem de forma cumulativa. Vejamos como isso ocorre.    

Além do consumo desenfreado do recurso água, o agronegócio contribui com problemas ambientais tais como o desmatamento e queimadas como meio de limpar a área a ser cultivada, práticas estas que tendem a intensificar as repercussões ambientais e, consequentemente, a crise hídrica. A constante busca pela alta produtividade desse setor, associada ao crescimento da exportação de produtos agrícolas, promove a expansão das lavouras de soja e milho (por exemplo, mas não exclusivamente) e dos espaços destinados à pecuária, demandando a expansão da fronteira agrícola para regiões como a Amazônia e o Cerrado. Infelizmente, o desmatamento e as queimadas florestais nessas áreas comprometem a formação de chuvas através da evapotranspiração. A pesquisa Effects of land-use change in the Amazon on precipitation are likely underestimated (Efeitos da mudança no uso do solo na Amazônia sobre a precipitação são provavelmente subestimados), liderada pela pesquisadora Mara Baudena, alerta que o desmatamento na Amazônia poderá reduzir a precipitação anual em até 70% nas regiões próximas. 

De acordo com o Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS), a escassez de água (principalmente derivada das chuvas) compromete a capacidade atual de geração de energia a partir de hidrelétricas. Consequentemente, para garantir o abastecimento energético, torna-se necessário acionar as usinas termelétricas, as quais, entre outros problemas, causam a elevação das tarifas de energia. Vale mencionar que o custo da energia deve ser compreendido como um preço básico da economia, afetando, em um movimento em cadeia, os demais preços, alcançando, entre outros, os alimentos. No caso brasileiro, o Banco Central prevê que o crescimento do preço da energia, juntamente com outros itens que pressionam os custos de produção, como os combustíveis, tende a intensificar a pressão inflacionária, atingindo mais duramente os preços dos alimentos. 

A inflação, especialmente no caso da população de baixa renda, significa corroer o poder de compra da renda destas pessoas, impossibilitando o custeio de suas necessidades básicas, entre elas, a mais cruel, a aquisição da alimentação. Não bastasse o custo dos alimentos ser afetado pelo câmbio e pelo preço dos combustíveis, a crise hídrica soma-se a estes fatores, distanciando o/a brasileiro/a do acesso adequado do alimento. Logo, a permanecer este cenário, tudo nos leva a crer em uma piora sensível na condição da população mais vulnerável, aumentando, assim, os já elevados indicadores relacionados à fome. Vale lembrar que, em 2020, a pesquisa empreendida pela Rede PENSSAN contabilizava 19 milhões de brasileiros/as em situação de insegurança alimentar.

Como mencionado mais acima, a inflação não é alimentada exclusivamente pela crise hídrica. Assim como a escassez hídrica afeta a dinâmica produtiva derivando em inflação, a produção de alimentos no país também tem sido afetada. Em análise do Produto Interno Bruto (PIB) do 2° semestre de 2021, o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) mostrou que o PIB do agronegócio recuou em -2,8%. No entanto, o fato a ser sublinhado aqui é que, novamente, os mais afetados pela crise não são os grandes produtores do agronegócio. 

Ao contrário, são os pequenos produtores os mais duramente afetados. Estes têm sofrido com a queda da qualidade das pastagens e prejuízos no desenvolvimento dos frutos cultivados. Os grãos desenvolvem-se pouco e perdem preço de venda. Pequenos agricultores, a base da agricultura familiar, sofrem, consequentemente, com o endividamento, sem perspectiva de alavancar seus próximos plantios com os ganhos da produção atual. No caso da pecuária, pequenos produtores são afetados pelo preço das rações e pelo custo produtivo, dado o aumento do preço da energia e do desabastecimento de água. A irrigação é insuficiente, isso quando há abastecimento.   

Ao levarmos em consideração a ação conjunta destes tais fatores, observa-se que os produtores se veem obrigados a elevar ainda mais os preços dos produtos alimentícios, dificultando o acesso de milhares de brasileiros a uma alimentação nutritiva e de qualidade. Diante do cenário descrito aqui, na presença da fome que castiga parcela da população brasileira, e ainda vivendo as repercussões da pandemia e os desdobramentos da crise hídrica, é possível que o número de pessoas em situação de vulnerabilidade, famintas, se torne ainda maior. 

Mais do que nunca, é indispensável a atuação do governo não só propondo uma melhor gestão dos recursos hídricos (sem prejudicar as camadas mais frágeis da população), mas adotando políticas públicas voltadas à proteção ambiental, ao uso de energias renováveis e repensando novas estratégias para a produção agrícola menos danosa. Para tanto, é imprescindível o diálogo com a sociedade civil, ONGs, iniciativa privada, pequenos produtores e o fomento a novas pesquisas que possam municiar os tomadores de decisão com conhecimentos científicos que auxiliem em melhores escolhas e decisões que podem minorar os efeitos da crise vigente.

 

* Graduanda em Relações Internacionais na Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), membra do SACIAR (@_saciar).
** Professor da Universidade Estadual da Paraíba (UEPB), pesquisador do FOMERI e idealizador do SACIAR (@_saciar).
 

Edição: Maria Franco