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Análise | Maria Ressa e o prêmio Nobel: a luta contra fake news é a luta pela democracia

Ressa não é a única, mas visivelmente é a figura mais vocal resistindo às fake news e ataques contra mídia

Brasil de Fato | São Paulo (SP) |
Jornalista Maria Ressa foi condecorada com o Nobel da Paz em 2021; prêmio também foi concedido ao russo Dmitry Muratov - Rappler News / AFP

No dia 29 de março 2019, a jornalista Maria Ressa foi presa pela segunda vez em dois meses. Seguindo a acusação oficial, sua empresa de mídia digital, Rappler, tinha donos estrangeiros – violação das leis das Filipinas. Mas todo mundo soube que a causa verdadeira era porque seu grupo, tinham o coragem de criticar Presidente Rodrigo Duterte, responsabilizá-lo pelos quase 30.000 mortes na assim chamado “guerra contra drogas”, investigar acusações de corrupção no seu governo, e divulgar como o governo estava utilizando uma maquinaria de trolls, bots e fake news no internet. A prisão, e os anos de ameaças de assédios que vieram antes, foram feitos para injetar medo a todos que falavam coisas que o governo Duterte achou inconvenientes.

Fake news, e seu efeito destrutivo e polarizador na política e sociedade, não é limitado aos “tiozinhos do Zap” que enfrentemos no Brasil. É uma ferramenta que a onda atual de líderes autoritários – e aqueles aspirando a ser autoritários – no mundo inteiro é usada para manipular cidadãos e erodir democracias. Divisões oficiais de censura que eram integrais às ditaduras do passado – igual na ditadura filipina como a do Brasil – não são mais a maneira preferida para controlar percepções e implantar medo e ódio. Hoje em dia, governos torcem leis aparentemente benignas para acossar mídia não favorável enquanto seus trolls atacam e afogam jornalismo legítimo, ciência, e as vozes da oposição. Ressa e Rappler estão enfrentando mais de dez processos judiciais, que incluem evasão de impostos e calúnia eletrônica. As áreas de comentários dos seus artigos estão cheio de bots e fanáticos insistindo que qualquer crítica contra Duterte é mentira e ameaçando Ressa e outros com estupro e assassinato.

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O jornalismo é essencial para a demoracia, afirma o Cômite do Prêmio Nobel / Reprodução/ nobelprize.org

Antes do governo Duterte, Ressa não tinha uma reputação de ser especialmente progressista. Ela era a chefe de CNN em Manila e Jakarta e escreveu para The Wall Street Journal. Em 2012, ela fundou Rappler com outras jornalistas veteranas: Glenda Gloria, Chay Hofileña, e Lilibeth Frondoso. O propósito era estabelecer uma empresa de mídia adequada para lidar com as mudanças de tecnologia e comunicação eletrônica. Enquanto as outras fundadores viveram o regime militar nas Filipinas (1972-1981), Ressa cresceu nos Estados Unidos desde 10 anos de idade e não tinha uma relação particularmente forte com os movimentos democráticos ou da esquerda. Desde seu começo, Rappler publicou vários artigos e op-eds ambos criticando e elogiando ações do governo e outras personalidades públicas. O importante era independência editorial e investigações profundas.

Essa obrigação com independência e investigação profunda colocou Rappler em conflito direto com o governo Duterte (2016-presente). A campanha do então candidato foi a primeira que aproveitou massivamente de um movimento nas redes sociais que espalharam mentiras e ódio, particularmente contra o então presidente Benigno Aquino e seu partido. Muita da infraestrutura para esse movimento foi construída pela família do ditador Marcos, que desde pelo menos os anos 2000 investiu em vídeos, memes, blogs, e outras ferramentas para borrar o legado de corrupção, torturas, e assassinatos que ocorreram durante a ditadura e, em vez disso, apresentá-la como a “época de ouro” das Filipinas. Ao mesmo tempo, apresentou o período pós-Marcos, representado pela família Aquino (a mãe do Benigno era a primeira presidente depois da ditadura), como um fracasso grandíssimo. A narrativa deles nem tentou discutir os valores da democracia contra ditadura. Ao contrário, apresentou a luta pela democracia como se fosse uma briga pessoal entre duas famílias e seus tribos.

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A campanha e eventualmente presidência de Rodrigo Duterte aproveitou bastante desse “tribalismo”. Quem não era da tribo Duterte era inimigo, não só dele, mas da nação filipina. A pedra fundamental da política pública do Duterte é a assim chamado “guerra contra as drogas” que matou cerca de 30.000 pessoas, a grande maioria pobres, não armados, e sem acusações formais. Quando jornalistas e sociedade civil criticaram isso, o governo nos chamou de inimigos do estado, protetores de narcotráfico, e entraves ao desenvolvimento do país. Quando investigações jornalísticas descobriam milhões de dólares perdidos por corrupção de Duterte e seus aliados, esses jornalistas são chamados agentes de algum conluio comunista-internacional para derrubar Duterte e a soberania das Filipinas. A ameaça da violência continua real e presente.

Ressa e Rappler não são os únicos que criticam o governo Duterte e nem são os únicos a ser perseguidos. O jornal The Daily Inquirer mantinha uma lista de vítimas confirmadas da “guerra contra as drogas”. Também publicou a capa famosa destacando a foto de uma mulher abraçando seu marido morto, como a Virgem Maria abraçando Jesus na Pietá de Michelangelo. A foto resultou num documentário no New York Times sobre as atrocidades de direitos humanos no governo Duterte. Duterte ameaçou processar os donos do Inquirer por fraude de impostos, e em 2017 os donos venderam o jornal para um aliado dele. Em 2020, aliados de Duterte na câmara recusaram renovar a franquia de ABS-CBN, fechando a maior empresa de mídia e produção jornalística no país.

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Ressa não é a única, mas é visivelmente a figura mais vocal e eficaz resistindo às fake news e ataques contra mídia livre nacionalmente e internacionalmente. Ela ativamente defende verificação de fatos independente nas plataformas grandes das redes. Pesquisa feito pelo site Rappler expôs como redes de blogs, páginas de Facebook, e contas no Facebook e Twitter são organizados para distribuir fake news e contribuiu para a desativação de milhares de contas, páginas, e web sites. Até agora, o Rappler não desistiu nem ficou menos intenso nas suas críticas e investigações.

A luta da Maria Ressa é importante para todos que querem um mundo onde governos abusivos não podem ameaçar ou acossar seus críticos até o silêncio e onde a realidade significa mais do que uma massa informe que pode ser distorcida e manipulada. Mas, esse mundo precisa de uma coalizão que atravesse fronteiras para responsabilizar governos e gigantes da tecnologia. Precisa um movimento até mais poderoso do que a onda de mini-fascistas que se alimenta com ódio – um movimento que apoie e proteja a mídia independente e verdades objetivas. Precisamos aguentar a barra, #HoldTheLine.

*Cecilia Lero nasceu nas Filipinas, é cientista política pela Universidade de Notre Dame e pós-doutoranda no Centro de Estudos da Metrópole da Universidade de São Paulo (USP).

**Este é um artigo de opinião. A visão da autora não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Vivian Virissimo