Saúde mental

Artigo | Desafios do setembro amarelo frente ao neoliberalismo

Não se pode falar em adoecimento, sofrimento psíquico sem considerar a sociedade que vivemos e suas estruturas

Brasil de Fato | Brasília (DF) |
Debate sobre saúde mental não deve ser tratado a partir de questões individuais, mas sobretudo do modelo socioeconômico em que se está inserido - Paulo Pinto/FotosPublicas

Desde 2003, o mês de setembro ganhou o marco de ser o mês de prevenção ao suicídio e recebeu o Amarelo como cor de referência, com reconhecimento pela Organização Mundial da Saúde (OMS). Em memória ao jovem de 17 anos que restaurou um carro e o pintou de amarelo e infelizmente cometeu suicídio em 1994.

De acordo com relatório da OMS publicado em 2020, os índices de suicídio apontam que em mais de 90% dos casos, havia uma doença mental relacionada. Principalmente entre os jovens, cerca de 96,8% dos casos de suicídio estavam relacionados a transtornos mentais. Destacam situações como desemprego, sensações de vergonha, desonra, desilusões amorosas, além de antecedentes de doenças mentais entre os fatores de risco para o suicídio. Uma grande notícia do referido relatório da OMS é: o suicídio tem prevenção em 90% dos casos. Esse importante ponto será debatido mais adiante.

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Os dados globais apontam também que as maiores taxas se localizam em populações periféricas e de baixa renda mesmo nos países mais ricos. No Brasil não é diferente, as maiores taxas vêm das populações indígena, preta, LGBTQIA+ que são as que mais sofrem as violências estruturantes de nossa realidade, as que historicamente têm as vidas marcadas pela tripla força da colonização que desumaniza, capitaliza a natureza e militariza as vidas. Por aqui, desde 2015 o tema vem sendo lembrado de forma expandida durante todo mês - o Setembro Amarelo.

Uma campanha mobiliza a sociedade e o tema de prevenção ao suicídio ganha força e abertura para o debate. Os assuntos da pauta giram em torno das causas de suicídio, formas de identificar sinais de ideação suicida e ainda como ajudar ou buscar ajuda.

Nota-se que, geralmente, o debate foca na linha da relação particular entre pessoas, e a questão é tratada focando nas motivações internas do sujeito ou no que as pessoas a sua volta podem fazer para ajudar a evitar o rompimento com a vida. Focar a análise do fenômeno do suicídio na dimensão psicológica das pessoas, nos coloca diante do "perigo de uma história única", que como nos adverte Chimamanda: "cria estereótipos e o problema com estereótipos, não é que sejam mentiras são incompletos”. Portanto, terminam por reduzir o foco ao tratar uma questão multifatorial e coletiva de maneira individual, focando apenas na dinâmica psíquica da pessoa.

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Nesse sentido, evidencia-se a ausência de pontos importantes para ampliar o debate. Não se pode falar em uma questão que envolve fatores biológicos, ambientais, psicológicos, entre outros, somente pela ótica motivacional. Não se pode também falar em adoecimento, sofrimento psíquico sem considerar a sociedade que vivemos, sua estruturação, seu modelo socioeconômico e sua determinação na formação da dinâmica interna das pessoas que a compõem.

Não é um dado da natureza que as populações mais violentadas historicamente levantam as maiores taxas de suicídio no Brasil. Estamos falando da base explorada da população e essa contextualização, assim como as intersecções de vulnerabilidades étnica, racial, gênero, classe, etária, dentre outras, não podem ficar de fora do debate levantado pelo Setembro Amarelo.

Falando em prevenção, em termos de saúde pública existem quatro níveis de prevenção em qualquer tema, quais sejam:

1. Criar condições salutares - ações de promoção em saúde desenvolvidas para evitar que alguma doença se instale na saúde individual ou populacional;

2. Detectar uma doença em estágio inicial - ações realizadas para facilitar o diagnóstico precoce, garantir o tratamento para reduzir seus efeitos ou disseminação;

3. Diagnosticar e cuidar da saúde como foco em não ampliar os danos da doença já instalada e,

4. É quando há risco nas ações/intervenções que podem ser realizadas, ou seja o excesso de intervenção pode produzir mais danos.

Nesse sentido, falando da prevenção ao suicídio, os estudos sobre o tema devem estar sempre atualizados, assim como dados epidemiológicos dos sujeitos que tentam ou que consumam o ato suicida, para que as políticas e programas de cuidado com a saúde sejam implementadas de modo a contemplar as demandas das populações específicas.

No entanto, mesmo se as políticas de promoção de saúde alcançassem uma cobertura ampliada nos municípios ainda não seria nem só a política de saúde, nem só essas ações que dariam conta de ampliar ações de proteção e, portanto, de prevenção ao ato suicida.

Considerando o contexto político, socioeconômico, o teto dos gastos públicos, a precarização do auxílio emergencial, a insegurança alimentar e nutricional, o desemprego, a concentração de renda, as humilhações sofridas eventualmente por ser quem é, a fome, a miséria instaurada Brasil a fora, já chegamos na lógica de prevenção, a partir da dimensão secundária ou terciária minimamente.


Diante disso emerge a questão para aprofundar o debate: é possível implementar ações de prevenção em nível primário, quando os fatores de risco são estruturais?

Nesse sentido, se os dados globais mostram, por exemplo, o adoecimento psíquico, em mais de 90% dos casos para o público geral e mais de 96% entre os jovens, com uma correlação direta ao ato de tirar a própria vida, é preciso entender o que gera e produz esse sofrimento psíquico.

Aqui ressalto os estudos urgentes do Laboratório da Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (Latesfip) da USP, do Cerrado e da América Latina, acerca do neoliberalismo "não apenas como modelo socioeconômico, mas também como gestor do sofrimento psíquico", e ainda seu discurso disciplinador atravessado por categorias morais e psicológicas. Nesse sentido, aborda o neoliberalismo também como uma forma de vida, pois molda nossos desejos, codifica identidades, valores e modos de vida.

Questões e fenômenos complexos pedem respostas complexas

A resposta do Estado brasileiro, no entanto, tem sido fraca e permeada de contradições. A despeito da lei 13.819/2019 que institui a Política Nacional de Prevenção ao Suicídio, temos uma precarização das políticas de promoção a saúde mental da população em geral e de tratamento das pessoas já diagnosticadas, o que vai logicamente aumentando danos e não reduzindo. Além do investimento em liberação de armas e agrotóxicos para população em geral, um dado assustador e irresponsável e por que não dizer promotor de genocídio, considerando que o uso de armas assim como pesticidas aparecem como recursos mais utilizados para tentativas e consumação do ato suicida.

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Não se pode desatrelar a prevenção ao suicídio da valorização da vida humana em sua totalidade, sem absolutamente nenhuma exceção, ou será apenas retórica.

Para o Setembro Amarelo no Brasil, a maior inspiração pode vir do Amar-Elo de Emicida, pois “É tudo pra ontem”.

 

*Andreia Crispim é psicóloga social, especialista em políticas públicas, infância, juventude e diversidade.

**Este é um artigo de opinião. A visão do autor não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato DF.

 

Fonte: BdF Distrito Federal

Edição: Flávia Quirino