Pernambuco

SAÚDE MENTAL

Setembro Amarelo: Por que o SUS é peça chave na prevenção ao suicídio

Cenário de desigualdade impulsiona o índice, já que 79% dos suicídios no mundo se concentram em países de baixa renda

Brasil de Fato | Recife (PE) |
“A nova política de saúde mental do século XXI não é de internação em hospitais psiquiátricos, e sim de cuidado no território", alerta especialista - Gabriela Barros

Em um Brasil onde somente 24,9% da população tem acesso a planos privados de saúde, segundo dados do Ministério da Saúde (MS), é impossível falar em prevenção ao suicídio sem discutir a política pública de saúde mental.  O Setembro Amarelo, mês em que o debate se acentua, revela mais uma vez a importância do Sistema Único de Saúde (SUS) e do Estado, desta vez no tratamento de pessoas em sofrimento psíquico.

Assim como todo o SUS, a Política Nacional de Saúde Mental é pautada pelos princípios da universalidade, integralidade e equidade, o que garante que todo mundo que esteja adoecido mentalmente, principalmente a população em vulnerabilidade, tenha o direito de receber atendimento. Para a psicóloga Suzana Livadias, que atua no Hospital de Clínicas da Universidade Federal de Pernambuco, esse tripé é imprescindível no cenário atual. 

Isto porque a especialista aponta a qualidade de vida como um fator importante na prevenção ao suicídio, que não estaria apenas na condição do sujeito. “Às vezes tem a explicação biológica, mas a gente também tem uma realidade que sufoca, oprime, que desestabiliza as pessoas na medida que esse contexto não oferece segurança alimentar, de moradia, segurança laboral, de oferta de trabalho e possibilidade de escolhas. Nós temos 9 milhões de pessoas em total insegurança alimentar e 14 milhões desempregadas. Tudo isso gera um grande impacto, são determinantes sociais da saúde”, afirma. 

Não é à toa que 79% dos suicídios no globo se concentram em países de baixa renda, como alerta a Organização Mundial de Saúde (OMS). Nesta conjuntura, o atendimento universal à saúde se torna fundamental. “É inegável a gente dizer da importância de um serviço público voltado para as necessidades da população. A nossa população tem privações que impede que tenha condições que favoreçam a saúde, que tenham plano de saúde, e outros determinantes que propiciem o não-adoecimento”, fala.


Em 2020, Bolsonaro ameaçou revogar 99 portarias sobre saúde mental editadas entre 1991 e 2014 / Divulgação

Para atender a população vulnerável e com transtornos mentais, o SUS conta com um robusto sistema chamado de Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), oficializado em 2011, que abrange uma série de equipamentos de saúde, como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). Essas unidades são descentralizadas nos municípios e levam o atendimento integral às comunidades como uma forma de manter a pessoa em tratamento inserida no seu território - a territorialidade, outro princípio do SUS.

“Os CAPS são locais de cuidado, que contam com equipe multidisciplinar, e a depender do projeto terapêutico que se constrói para cada um, são realizadas atividades em grupo, reflexões, apropriações do momento de intenso sofrimento, participação dos familiares, e co-responsabilização”, detalha Livadias.

Foi assim que a RAPS conseguiu realizar 547.968 atendimentos e 188.803 internações em 2019, de acordo com dados do MS solicitados pela reportagem. Em 2020, foram 416.033 atendimentos, sendo 165.270 internações. No entanto, a pasta destacou que esses dados ainda são preliminares e estão sujeitos à alteração.

Além dos 2.749 CAPS distribuídos no Brasil, a RAPS conta com 42 mil Unidades Básicas de Saúde (UBS); 144 Consultórios de Rua; 798 Serviços de Residência Terapêuticas; 69 Unidades de Acolhimento (Adulto e Infanto Juvenil); 1.884 leitos em hospitais gerais (Serviço Hospitalar de Referência); 13.098 leitos em hospitais psiquiátricos; e 74 Equipes Multiprofissionais de Atenção Especializada em Saúde Mental. 

O médico psiquiatra Gustavo Arribas, assessor técnico da Gerência de Atenção à Saude Mental de Pernambuco, explica que essa lógica de cuidado segue um novo entendimento sobre saúde mental.

“A nova política de saúde mental do século XXI não é de internação em hospitais psiquiátricos, e sim de cuidado no território onde a pessoa vive, porque vários estudos de autores, como Murphy, são categóricos em apresentar que a melhor intervenção em saúde mental é a intervenção no território em que a pessoa vive. Não só aumenta a aceitação do paciente do cuidado, como também diminui a sobrecarga financeira e a sobrecarga do adoecimento dos familiares e cuidadores”, diz.

Essa concepção se firmou como política nacional em 2001, com homologação da Lei da Reforma Psiquiátrica (10.216), que dispôs sobre os direitos de portadores de transtornos mentais e remodelou o sistema de atendimento a esse público. Desde então, a Política Nacional de Saúde Mental do MS vem sendo pautada de acordo com diretrizes que garantam a cidadania dos indivíduos em tratamento, voltadas para a desinstitucionalização dos pacientes e a multidisciplinaridade nos atendimentos. 

A proposta se contrapõe à anterior lógica vigente de asilamento dos pacientes, isolados em hospitais psiquiátricos de longa permanência e manicômios, os distanciando dos vínculos sociais. Mesmo 20 anos depois, o país ainda está em transição. Pernambuco, por exemplo, fechou em 2019 o Hospital Colônia Vicente Gomes de Matos, no município de Barreiros, e está neste momento no processo de encerramento do Hospital Colônia Alcides Codeceira, em Igarassu, conta Arribas. O último hospital psiquiátrico do Estado é o Hospital Ulysses Pernambucano (HUP), no Recife.

O avanço foi uma conquista da luta antimanicomial, mas, em dezembro de 2020, o funcionamento da RAPS foi posto em xeque pelo Governo Bolsonaro, que ameaçou revogar 99 portarias sobre saúde mental editadas entre 1991 e 2014. O “revogaço” extinguiria serviços como as equipes de Consultório na Rua, o Serviço Residencial Terapêutico e a comissão de acompanhamento do Programa de Volta para Casa. O caso foi exposto pelo jornalista Guilherme Amado, da Época, que apontou que uma planilha com as portarias havia sido elaborada pela então coordenadora de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Maria Dilma Alves Teodoro.

Com a repercussão da notícia, Teodoro pediu demissão e a pauta não avançou. No entanto, esta não é a única postura do Governo Federal que vai de encontro à nova política sobre saúde mental. Enquanto ameaça o desmonte do RAPS, Bolsonaro aumenta o investimento nas comunidades terapêuticas. O repasse de verba a são empresas privadas que internam pessoas com dependência química - muitas vezes por longa permanência - passou de R$ 153,7 milhões em 2019 para R$ 300 milhões em 2020.


Manifestantes em protesto no Rio de Janeiro (RJ) contra a permanência de instituições manicomiais, em maio de 2018 / Fernando Frazão/Agência Brasil

Gustavo Aribas critica a medida: “Todo cuidado em saúde mental deve se basear no tripé: participação do paciente, participação social e participação multiprofissional. Nas comunidades terapêuticas, não tem essa participação: não se garante a vontade do paciente, muitas vezes a família não tem acesso ao paciente, e muitas vezes não tem equipe multiprofissional.”

Todo ano, cerca de 800 mil pessoas tiram a própria vida no mundo. No Brasil, 12.895 pessoas morreram por suicídio em 2020, revela o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2021. Se você está em sofrimento psíquico, procure ajuda profissional. O CAPS é um serviço de portas abertas, ou seja, qualquer um pode procurar uma unidade e ser acolhido no mesmo dia. No site da Secretaria Estadual de Saúde (SES) de Pernambuco, é possível encontrar a lista completa de serviços da RAPS em cada município.

 

Edição: Vanessa Gonzaga