Rio Grande do Sul

Patrimônio Público

Cais Mauá: patrimônio histórico de Porto Alegre completa 100 anos fechado e em mãos privadas

Observar a situação do cartão postal revela como está a relação da população com uma área cada vez mais valorizada

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"Hoje o Cais está entregue a uma lógica privatista, fazendo com que ele seja degradado para que depois se ofereçam soluções capitaneadas pela iniciativa privada", aponta vereador - Tânia Meinerz

No centro de Porto Alegre localiza-se um importante e reconhecido cartão postal do estado, o Cais Mauá, junto de seus grandes armazéns. Tombado como patrimônio histórico nacional e municipal, o Cais completa seu centenário neste ano. 

Com pouco mais de três quilômetros diante das águas do Guaíba, no centro da capital gaúcha, está localizado numa região cada vez mais cobiçada da cidade. Fechado para livre circulação do público em 2010, a sua área foi concedida para exploração privada. Ao longo dos anos, o Cais oscila entre o abandono e o aumento do interesse comercial. 

Inaugurado em 1921, o Cais conta com 3.240m de extensão e cerca de 187 mil m². As atividades portuárias foram encerradas em 2005. A responsabilidade sobre sua gestão, utilização e preservação é do governo do estado. 

Segundo o que nossa reportagem apurou, essa responsabilidade tem sido compartilhada com as gestões municipais da prefeitura de Porto Alegre.

Concessão para a iniciativa privada fechou o Cais

Em 2010, a empresa Cais Mauá do Brasil ganhou a concessão para explorar o local por 25 anos. Conforme levantado pelos jornalistas Naira Hofmeister, Elmar Bones e Patrícia Marini, em especial do jornal Já, em 2019, a empresa prometia investir R$ 500 milhões para implantar em quatro anos um novo polo empresarial e comercial na área do antigo porto da Capital.

Com os recursos da exploração comercial e imobiliária, seriam pagos os restauros dos bens tombados pelo patrimônio. Sem dar início às obras e depois de várias infrações cometidas pela empresa, o governador Eduardo Leite (PSDB) rescindiu o contrato com a empresa no ano passado. 

Em janeiro deste ano, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e o Governo do Estado do Rio Grande do Sul assinaram contrato para realização de estudos que definirão a nova modelagem de revitalização do Cais Mauá. Atualmente o projeto está nas mãos do Consórcio Revitaliza, responsável pela gerência da obra. 

De acordo com o coordenador do Projeto Revitalização do Cais Mauá, Juliano Greve, a modelagem está na fase inicial, na qual os consultores estão coletando informações e sugestões de diversos grupos da sociedade para identificar a melhor destinação da área. Ainda não foi decidido o que vai funcionar no local. 

Em entrevista à Associação Comercial de Porto Alegre, o secretário extraordinário de Parcerias do RS, Leonardo Busatto, afirmou que o fomento do Cais Mauá se dará pela utilização da população, de empreendedores e pela implementação de atividades da economia criativa nesta grande área da cidade.

Sem comentar o montante do investimento que tem sido feito, disse apenas que estudos estão avaliando e orçando os possíveis montantes de investimentos necessários. 

Já o coordenador da Frente Parlamentar do Cais do Porto, o vereador de Porto Alegre Leonel Radde (PT), comenta não ser contrário às parcerias público-privadas em algum momento atuando junto ao Cais, por ser uma área considerável que necessita de investimentos em infraestrutura. 

Contudo, salienta que jamais essas iniciativas devem impedir o acesso ao espaço e nem retirar o controle público sobre aqueles imóveis. “Hoje o Cais está entregue a uma lógica privatista, fazendo com que ele seja degradado para que depois se ofereçam soluções capitaneadas pela iniciativa privada, que restringe o acesso a um espaço nobre para aqueles que possuem recursos para o acesso a um espaço outrora público”, ressalta o vereador. 

Conforme frisa o parlamentar, a cidade deve ser acessível a todos os indivíduos, que podem usufruir dos seus espaços e dos seus bens naturais e culturais, exatamente o oposto do que vem acontecendo em Porto Alegre.

“Para garantir um Cais para todos, devemos demonstrar que o Cais pertence à população de Porto Alegre e que o poder público deve realizar o fomento para que alternativas culturais e econômicas sejam colocadas em prática naquele espaço, sem excluir o seu acesso”, expõe. 

Espaço voltado para a cultura e lazer se torna cada vez mais comercial

O Caís e seus armazéns, em várias ocasiões, foram palco para eventos culturais. Entre eles a Bienal do Mercosul, a Feira do Livro e o Fórum Social Mundial. 

Conforme aponta o presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil - RS (IABRS), Rafael Pavan dos Passos, o Cais tinha uma vitalidade. Ainda que restrita aos eventos, vinha se consolidando como um espaço para a cultura. 

“De repente surge um projeto que leva esse Cais para a ideia de um grande shopping a céu aberto, que seriam os próprios armazéns, um grande shopping junto ao Gasômetro e as torres comerciais do outro lado, e apenas dois galpões para o uso da cultura”, pontua Rafael. 

O arquiteto afirma também que o Cais de hoje já não atende às questões culturais, que em tese poderiam estar sendo feitas. Para se ter uma ideia, entre os anos de 2005 a 2012, a Feira do Livro de Porto Alegre, devido a sua expansão, ocupou uma parte do Cais. Com o fechamento para a revitalização, nada mais aconteceu. 

Para a advogada e ativista pela causa do patrimônio cultural Jacqueline Custódio, o contrato firmado com o consórcio privado deveria ter garantias que mantivessem e recuperassem os armazéns.

“Nosso cartão postal está de aniversário, é agora um senhor centenário. Teve tempos de glória e, desde os anos 1980, começou seu declínio. Para as atividades portuárias, o tempo acabou; mas não para o deleite da cidade”, aponta. 

Segundo a advogada, foram diversas tentativas de recuperar as atividades populares no Cais, mas elas não se concretizaram. A mais recente dessas tentativas, relata, foi a que esteve sob responsabilidade do consórcio Cais Mauá do Brasil, que fechou o local e contribuiu para o estado lamentável que se encontra.

Na avaliação de Jacqueline, antes do processo de revitalização que fechou o Cais, as pessoas podiam usufruir do local, sentar-se à beira do Guaíba para um chimarrão e desfrutar, sem precisar pagar por isso. 

“No entanto, passaram-se mais de 10 anos e o cenário só piorou. O acesso segue restrito e os armazéns apresentam muitas e importantes avarias. O projeto para ‘retomá-lo’ agora traz a possibilidade de lotear o espaço e vender os lotes à iniciativa privada, com possibilidade de construção de prédios residenciais. Este é o cais que temos hoje”, critica.

Conforme explica o arquiteto Rafael, tanto o projeto da Cais Mauá Brasil, como o projeto atual, mantém a ideia do “Embarcadero”. Segundo Rafael, este é um projeto singelo e questionável em alguns aspectos, sob o ponto de vista da sua relação com o patrimônio. 

“É um Cais ainda que está longe de retornar para a população e a cidade como um espaço cultural, um espaço de lazer. Vejo um projeto que está mais preocupado em maximizar rendimentos privados do que de fato trazer o interesse público e a vocação da cultura e do lazer”, pontua. 


"As belezas do Cais e a proximidade com o Guaíba – acesso que deveria ser público - foram vetadas à população pelo ente privado, fato ocorrido nos últimos 10 anos", afirma Jacqueline / Foto: Tânia Meinerz

Embarcadero não devolve o Caís à população

Em maio deste ano foi inaugurado o Cais Embarcadero, primeira intervenção viabilizada na área de 181 hectares. Está localizado no encontro da Usina do Gasômetro com o Cais Mauá. O lugar reúne 14 restaurantes e, devido à pandemia, tem funcionado com restrições e sob reserva. 

Questionado sobre o Embarcadero, Rafael Passos pontua que é preciso ver como o projeto ficará como um todo. Mas salienta que este modelo provoca sim um afastamento de setores da população. 

“Os mais pobres, por constrangimento muitas vezes [são afastados]. Também, por estarem em um local em que só pode consumir, quando se está lá só para contemplar. Há essa segregação, da capacidade de consumo ser um divisor entre quem vai sentar ali em um banquinho e apreciar a vista e de quem pode sentar no ‘camarote’, digamos assim”, explica Rafael.

Ele afirma ainda que esse tipo de modelo de construção contribui para um projeto de cidade que exclui e amplia as diferenças sociais. Ao contrário do que seria uma praça pública, por exemplo, que acaba trazendo alguma ideia de igualdade.

A advogada Jacqueline argumenta em sentido parecido, falando em um processo de “gourmetização”. A expressão é usada quando se tem um movimento de exclusão de pessoas mais pobres de determinado lugar.

A ativista afirma que a inauguração do Cais Embarcadero é uma mostra de vontade política de “gourmetizar” o Cais. 

“Depois de anos de abandono sob responsabilidade do governo do estado, um grupo de empresários dividiu o Armazém A7, aquele depósito mais próximo à Usina do Gasômetro. Sem licitação, que é obrigatória, bares, restaurantes e lojas ocuparam parte do Cais, tornando-se local de alto consumo e guardado por seguranças, que, muitas vezes, impedem a entrada de pessoas que não tenham reserva em um dos estabelecimentos”, relata a advogada.

A principal qualidade da região do Cais, que é a proximidade com o Guaíba, acaba ficando restrita aos frequentadores dos restaurantes e bares. 

Como contraponto, parte comunidade cultural e moradores do Centro Histórico trabalham uma proposta de ocupação, incluindo a economia criativa e solidária, com vistas à sustentabilidade econômica e de acesso universal, preservando o patrimônio e a paisagem cultural.

O que a região precisa para ser devolvida à população?

Para o arquiteto Rafael, o importante seria garantir a integração da cidade e que se possa equilibrar os interesses privados com o público, numa ideia de um espaço democrático que favoreça a presença das camadas populares, a maioria da população. Ele afirma que, infelizmente, tem observado justamente o oposto. 

“Essas administrações têm servido menos como um poder capaz de mediar conflitos e buscar equilíbrios e mais como uma advocacia dos interesses de uma concentração de renda cada vez maior”, explica Rafael.

Para o presidente do IABRS, a gestão do Cais contribui para uma desigualdade no proveito do espaço da cidade.

A advogada Jacqueline também clama por uma ocupação mais igualitária da região. Para ela, o Cais é um bem afetivo da população. "Além de ser um dos mais destacados cartões postais do estado, o Cais traz em si um caráter sentimental, no qual memória e imaginário constroem laços." 

“O cais é um bem público e ponto difusor de cultura, referência nacional e internacional de um equipamento sustentável tanto econômica quanto ambientalmente”, afirma Jacqueline. 

Concluindo seu depoimento à nossa reportagem, ela ainda lembra que o usufruto dessas características da região fazem parte do chamado “direito à cidade”. Ou seja, o direito da população participar dos espaços e das decisões sobre ela. 

"Para garantir esse direito, deveria ser garantida pelo poder público a participação direta e efetiva nas decisões acerca deste importante espaço público, bem como o acesso universal e democrático a todos os cidadãos, porto-alegrenses ou não", finaliza.

Cais e Gasomêtro sofrem na disputa pela Orla

Na Audiência Pública: Empreendimentos imobiliários no entorno do Beira Rio, realizada em 17 de agosto, O Brasil de Fato questionou o vereador Radde sobre os destinos da Usina do Gasômetro. Além do problema relativo à possível perda do prédio com a privatização da Eletrobras, a população também sofre com o abandono do local.

Segundo o vereador, o Gasômetro representa igualmente mais um capítulo na disputa pela Orla de Porto Alegre, contra a sua privatização total. 

“Assim como os Armazéns [do Cais], que foram sendo degradados, o Gasômetro passa pelo mesmo processo, pois isso permite com que soluções do grande empresariado sejam digeridas com naturalidade pela população que anseia por novos espaços de convívio, porém, recebe como contrapartida uma exclusão quase absoluta de acesso caso não possua recursos financeiros”, afirma Radde.

Cortejo em defesa do Cais 

No dia 4 de setembro, o Coletivo Cais Cultural Já! promoverá um cortejo com apresentações artísticas e diretrizes de revitalização do Cais do Porto. Ele sairá às 15h do Mercado Público.

A situação do Gasômetro, sua relação com a Orla nessa disputa pela cidade e sua ocupação pela maioria da população será tratada na próxima matéria deste especial de 100 anos do Cais do Porto.


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Edição: Marcelo Ferreira