Paraná

ENTREVISTA COMPLETA

“A plataformização é a transformação mais radical do trabalho desde a 2ª revolução industrial”

Para a organização sindical é fundamental se reestruturar para ser o mais horizontal possível

Curitiba (PR) |
Ainda está no começo, mas a saúde é muito impactada pela revolução 4.0, por essas novas tecnologias da digitalização. - Editora Brasil 247

*da Clínica Direito do Trabalho da UFPR

Em 2021, a Clínica Direito do Trabalho da UFPR decidiu pesquisar sobre as plataformas digitais de trabalho. O que despertou o seu interesse nesse objeto de pesquisa?

Manzano – Estudo o mercado de trabalho. Sou pesquisador dessa área e considero fundamental a análise das plataformas digitais. Elas transformam o mercado de trabalho de forma muito radical. Eu diria que é a transformação mais radical desde a segunda revolução industrial. É uma grande transformação que precisamos conhecer melhor, cujos efeitos são difíceis de captar por envolver questões difusas, justamente pela forma como está organizada a produção do capitalismo hoje em dia. Eu estou achando muito importante estudar as plataformas e agradeço o convite para participar dessa experiência da Clínica do Trabalho.

A pesquisa está em andamento, mas já é possível ter as primeiras impressões sobre essa modalidade de trabalho virtual?

Sim, em certo sentido estamos conseguindo confirmar hipóteses que considerávamos, mas não existiam dados. A pesquisa está permitindo mostrar que a pandemia teve impacto forte em algumas atividades que resistiam ao trabalho por plataformas digitais, em especial o setor de saúde. As próprias categorias profissionais resistiam em assumir o teletrabalho. A pandemia acabou minando essas resistências. De fato, a nossa pesquisa vai demostrar isso. É uma primeira questão que vale a pena destacar. Vale ressaltar também que as plataformas são muito dinâmicas. A pesquisa não completou seis meses e já pudemos observar transformações ocorrendo. As empresas e os modelos de negócios são muito dinâmicos. Sofrem mutações rápidas porque estão em contexto fluido e competitivo. As plataformas têm que criar constantemente novas formas de organização. Isso dificulta a pesquisa, mas um dado que já se percebe é o dinamismo. Um ambiente de transformações contínuas dos negócios. As empresas vão evoluindo muito rapidamente ao longo do tempo, inclusive mudando de setor e de atividade. Empresa que começa como uma simples marketplace, que põe em contato o vendedor com o consumidor, percebe que a partir do momento que ela reuniu a duas pontas e tem muitos dados, pode fazer muito mais. Aí começa a incluir serviços e termina virando um banco.

Formam-se diferentes atividades e trabalhadores?

As plataformas também surpreendem pela expansão. Estão em todas as atividades. É um verdadeiro novo mundo que surge e a pandemia contribuiu muito para isso. Ela rompeu as barreiras, forçou a aceitação dessas tecnologias. Até para as coisas mais banais, como os trabalhadores chamados de clickworkers, que têm apenas que confirmar conteúdo, ou seja, apertar o enter quando vê uma imagem, em atividades de calibragem de inteligência artificial. Tem muita gente fazendo isso e competindo em escala global. Uma pessoa do interior de Goiás disputando com alguém que está na Índia. Tem desde esse tipo de trabalhador até profissionais com atividades muito sofisticadas que fazem atendimentos online. Está crescendo também a atividade virtual entre bancários, os chamados personal bankers. É muito diverso, é difícil hoje imaginar um setor no qual as plataformas não estão inseridas. E destaco, a pandemia ajudou muito nessa generalização, nessa disseminação.

Qual é a dimensão do trabalho por plataformas digitais no Brasil? É possível quantificar?

Essa é uma dificuldade que nós temos e que existirá ainda por  muito tempo. Não é só no Brasil, mas no mundo inteiro. Tem alguns números que circulam até por órgãos internacionais, como a OIT, mas são estimativas, eu diria, muito precárias. Não há base segura para dimensionar esse mercado. Isso porque as pessoas não são registradas como trabalhadores, são simplesmente freelancers, atuam de forma precária, muitas vezes sem passar por uma empresa ou mesmo algum cadastro. Não temos como saber se a pessoa está trabalhando ou não, há quanto tempo está trabalhando, se não está, quantas horas por dia. Quanto ela recebe, como ela recebe. Tem muitas pessoas que trabalham para empresas internacionais, então recebem o pagamento por meio do paypal, em dólar. Também é difícil dizer o que é trabalho ou o que não é. Por exemplo, a indústria da pornografia de vídeos e imagens. A pessoa está vendendo fotos, nudes, como se diz na internet. Isso é um trabalho ou não é? Garante a renda dela? Claro, mas na verdade está vendendo fotografias. Fica tudo muito difícil de captar. Para responder de forma mais objetiva, acho que não dá para cravar um número. Não existe como dizer qual é a dimensão exata desse segmento. A pesquisa sobre plataformas digitais é inovadora e importante no sentido de nos aproximar do dimensionamento a partir das técnicas de metodologia que adotamos. São várias porque é um universo muito diverso e tem técnicas distintas para diferentes setores, distintas realidades. Nós estamos conseguindo nos aproximar bastante. Eu acho que não vamos poder dar um número preciso, mas teremos condições de dizer qual é a amplitude desse setor na atividade econômica e no mercado de trabalho brasileiro. É um enorme desafio.

Quais são as metodologias utilizadas na pesquisa? 

Começando dos normais para os mais inovadores. Os mais normais são os próprios dados dos registros oficiais. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD). O IBGE vai lá na casa das pessoas, faz a entrevista, pergunta o que ela faz e o IBGE nos permite saber, por exemplo, se a pessoa trabalha à distância. Durante a pandemia, teve um módulo especial chamado PNAD Covid, que durou só até novembro de 2020 e contribui para a nossa pesquisa. O IBGE pesquisa se o indivíduo trabalhava como entregador, como os motoboys. Logo, nos serve como caracterização. A PNAD é uma base de dados que serve para resolver algumas questões. Também aplicamos cerca de quinhentos questionários pelo Google Forms a pessoas que trabalham por meio de plataformas digitais. Coletamos informações sobre remuneração, jornada de trabalho, tipo de contrato, entre outros. Essa é uma análise mais qualitativa. 

Por último, estamos utilizando uma técnica metodológica que acredito ser inédita no Brasil, que é a análise de tráfego de web. Existem algumas experiências internacionais e até mais limitadas do que estamos aplicando. São empresas altamente sofisticadas, existem apenas algumas no mundo, que capturam o tráfego da web por meio de algoritmos e uma série de outras análises que eles não revelam. O fato é que permitem estimar quantos trabalhadores estiveram vinculados à plataforma X no mês de abril. Quantos trabalhadores estiveram na plataforma Y no mês de maio. Quantas horas por dia os usuários, como dizem as plataformas, ficam logados. Pode ser trabalhador ou não. Isso é uma dificuldade. Dependendo da plataforma, se ela é só para trabalhadores, nós saberemos. Se é trabalhador e usuário na mesma plataforma, mesmo aplicativo, inviabiliza o levantamento de dados. Existem diversos problemas para conseguir identificar mais precisamente quem é o trabalhador, mas o fato é que estamos adotando de forma inédita essa tecnologia e acredito que vai nos dar oportunidade de avançar como até hoje nunca se fez, pelo menos no Brasil. Justamente porque estamos capturando a integração das pessoas com as plataformas. 

Começamos a pesquisa fazendo um grande levantamento de quais são as principais plataformas no Brasil. Chegamos ao número de mais de 150. A partir daí, trabalhamos com cada uma delas. Tentamos filtrar para conseguir quantificar. Algumas vamos conseguir ter o número exato, 537 trabalhadores no mês de junho, por exemplo. Outras não porque misturam trabalhadores e usuários na mesma plataforma. 

O fato é que reunindo esse conjunto de métodos, tanto os dados oficiais do IBGE, quanto os questionários que aplicamos e a análise do tráfego de web, vamos conseguir aproximações sucessivas do núcleo do objeto de pesquisa. Vai dar para cravar “tem tal dimensão?”. Não, mas chegaremos mais perto possível do que já foi feito sobre o tema no Brasil.

E o cruzamento dessas metodologias serve para aprofundar a pesquisa sobre um objeto ainda pouco estudado.

Sem dúvida. O cruzamento ajuda a limpar. Uma pesquisa resolve o problema da outra, ilumina algo que ficou obscuro em outra ou auxilia a diferenciar questões que estavam sobrepostas. Por isso é importante fazer esses cruzamentos. A equipe é composta por vários pesquisadores e cada um se dedica a uma dessas estratégias, mas trabalhamos de forma integrada para justamente conseguir aprofundar a pesquisa. Essa é a ideia. 

A pesquisa já consegue identificar os setores ou as categorias de trabalhadores mais impactadas pelas plataformas digitais?

Existem vários mundos no universo das plataformas digitais de trabalho, mas se você levanta uma primeira camada é possível observar dois mundos. O primeiro é aquele chamado na literatura internacional de location-based. São os que estão localizados em algum lugar, que circulam por um determinado território. Eu gosto de dizer que são aqueles que de alguma maneira usam instrumentos mecânicos ou fazem atividades braçais. Esse é um dos mundos no qual estão os entregadores, que usam as motos, os motoristas de Uber, os caminhões que fazem frete, os pedreiros que fazem serviço por plataforma, eletricistas, que saem de uma casa e vão em outra, os trabalhadores domésticos. Então há o deslocamento mecânico, há equipamentos, há força física.

Outro mundo é o que nós chamamos de web-based. São aqueles que trabalham por plataformas, mas em suas residências, ou seja, são aqueles que para realizar a sua atividade necessariamente utilizam o computador, “por dentro” da web. O cara do Ifood também usa web para localizar a entrega, receber o pagamento, olhar o GPS e ir para o local, mas ele não atua “por dentro” da web. A produção dos web-based é por dentro da internet. 

Uma boa maneira de separar esses dois mundos dentro das plataformas são os símbolos. Os web-based usam símbolos, signos. As palavras, os textos, as imagens. Não usam ferramentas mecânicas.

Esse mundo do location-based cresceu muito na pandemia, principalmente o setor de entrega. Isso está evidente e os números reafirmam. Algumas plataformas desse mundo sofreram na pandemia, como o Uber. Diminuiu muito a demanda para o Uber em um primeiro momento. Nos primeiros seis meses de pandemia perderam clientela, pois as pessoas pararam de circular. Depois voltaram a recuperar e aí o Uber tem até uns efeitos curiosos. Por exemplo, os ricos começaram a pagar Uber para os seus empregados domésticos, seus auxiliares, poderem ir para o trabalho sem trazer riscos, sem passar pelo sistema de transporte público. A partir de outubro e novembro do ano passado, o Uber volta com tudo e em parte por causa desse efeito que ninguém imaginava. A pandemia mudou muito a dinâmica das plataformas.

Nesse mundo do location sem dúvidas os entregadores são o caso mais notável. No outro, o web-based, tem de tudo. Desde do profissional altamente qualificado, como médicos, psicólogos, até os clickworkers. É muito diverso. As pessoas se dedicaram, buscaram muito esse tipo de atividade, mas, a meu ver, o grande destaque são essas categorias que resistiam. Aí eu chamo atenção especialmente dos médicos. Resistiam até por questões corporativas. Em geral, o Conselho Federal de Medicina e o Conselho Federal de Psicologia não queriam ceder ao trabalho por plataformas porque, na verdade, é uma forma de perda de controle. Então havia uma pressão grande para evitar, para proibir ou ao menos dificultar atendimentos à distância. Com a pandemia tiveram que abrir e aí eu acho que isso é irreversível. Claro que na pandemia o crescimento foi alto e já houve uma reversão. Eu já pude observar até nos dados. De abril para cá, essas ocupações já estão diminuindo a sua intensidade de uso de internet. Já estão voltando a atender nos consultórios, mas parte importante deve permanecer utilizando as plataformas. Esse é o destaque nesse mundo dos web-based em termos de atividade. 

Seu foco na pesquisa é o setor de saúde. Qual a perspectiva desse segmento com o avanço das plataformas digitais? 

Ainda está no começo, mas a saúde é muito impactada pela revolução 4.0, por essas novas tecnologias da digitalização. A pandemia ainda fez que as coisas que estavam em ensaios, em ritmo de experimento, deslanchassem. Eu usei anteriormente o exemplo do médico que atende à distância, mas há outras atividades. As empresas que fabricam máquinas como tomógrafos, raios-x, ressonância magnética e há muito tempo lucram com isso perceberam, de alguns anos para cá, que talvez seja mais vantajoso explorar os dados desses equipamentos de cada paciente do que efetivamente vender aqueles aparelhos. Já vinha, mas daqui para frente eu acho que essa tendência vai se fazer muito presente na área de saúde. As plataformas digitais estão a serviço disso. Na China, boa parte dos diagnósticos mais simples da vida das pessoas é feito pelo celular. A pessoa tira uma fotografia, mede temperatura e envia as informações, tudo por aplicativo. Eu diria que estamos apenas no começo na área da saúde e são esperadas transformações muito grandes. Também precisamos analisar qual é a posição do Brasil nesse sentido. O país, por conta do Sistema Único de Saúde, é o maior consumidor de produtos de saúde no mundo. Nenhum outro país tem um sistema organizado a nível nacional para 210 milhões de pessoas. A China tem uma população muito maior, mas não possui um sistema nacional centralizado. Cada província cuida do seu jeito. Estados Unidos é imenso, mas não tem sistema público de saúde. O único país que possui essa dimensão é o Brasil graças ao SUS. 

Somos um imenso comprador de insumos de saúde. Na medida que os serviços vão mudando, nós vamos mudar o sistema também. Precisaremos avaliar, é difícil fazer uma prospecção exata, mas ocorrerão transformações significativas nas atividades e no mercado de trabalho do setor. Se antes eu tinha que fazer um exame que fica na clínica da minha cidade, futuramente nem saberemos onde esse procedimento clínico será analisado e registrado. Talvez seja na Ucrânia ou na Índia, não é? É difícil saber, em última instância, onde estará o emprego da pessoa que  analisa o exame.

Para as empresas, vale mais coletar um bilhão de análises de raios-x do fígado de pessoas de diferentes partes do mundo do que apenas vender o aparelho. Com as bases do Big Data e a inteligência artificial, provavelmente vão desenvolver produtos com valor superior ao daquele equipamento.

A mudança que acontecerá na saúde será muito disruptiva. Acho que o Brasil tem que ficar atendo porque é um grande consumidor de saúde – e ainda bem que é, mas tem que aproveitar esse potencial enorme. Basta o governo querer aproveitar esse poder de compra para desenvolver o mercado de trabalho desse setor. É um poder de fogo monumental, mas temos que saber lidar com essa transformação de forma inteligente. Se ficarmos passivos, apenas assistindo, vamos ficar com o osso e a carne com as empresas da Europa, dos EUA, do Japão ou da China.

Em suma, as transformações das novas tecnologias estão criando uma nova divisão internacional do trabalho por setor de atividade, tornando ainda mais distintas as atividades e as ocupações. Uma coisa é ser um país que desenvolve e oferece serviços na área da saúde, outra coisa muito distinta é aperfeiçoar as atividades dos entregadores, embora as duas possam ser muito importantes para a vida das pessoas.

Não vamos sofrer a concorrência da Inglaterra nos APPs de Delivery, o cara tem que entregar a pizza na cidade. Agora, a radiografia pode ser em qualquer lugar. Por fazer um mapa que ajuda a compreender essas dinâmicas e mostrar as diferenças de uma atividade para outra é que a pesquisa é importante. Vamos começar a aprofundar, pois sem esse mapa não é possível tomar qualquer posição com base científica.

É possível sondar sobre como serão as relações de trabalho com o avanço cada vez maior das plataformas digitais?

Nesse sentido eu sou muito pessimista. Se já era difícil regular o trabalho nas condições anteriores, nas quais não existia essa estrutura fluida, agora, por meio das relações digitais de aplicativos fica muito mais complexo. É claro que tem muito o que se pode fazer para proteger o mercado de trabalho. Por exemplo, o que acontece na Europa em relação ao Uber. A Espanha está reconhecendo o vínculo empregatício. As plataformas terão, portanto, responsabilidades não apenas econômicas sobre aquela pessoa, mas terá que se garantir um patamar de remuneração e de direitos.

Temos que lutar ao máximo por garantias e direitos, porém agora fica muito mais difícil do que no passado. Se já vínhamos sofrendo uma série de retrocessos nos últimos anos, faço referência dos anos 90 para cá, período no qual temos assistido a um desmonte gradual da legislação trabalhista no Brasil, o que dizer daqui para frente? A tarefa é muito maior. Então, infelizmente, eu não tenho bons prognósticos a respeito das nossas condições de regulação desse mercado de trabalho.

Por outro lado, temos que buscar cada vez mais novas formas de organizar a sociedade. Nós tínhamos o paradigma de que boa parte dos direitos sociais estavam vinculados à atividade profissional. Vamos ter que migrar para outro modelo. Agora a ação ideal seria garantir que todos tenham direitos, independente do que realizam e como realizam suas atividades profissionais. Direitos sociais para além da saúde e educação públicas, moradia e mobilidade. Cada vez tem menos sentido o direito ao vale-transporte porque só é adequado para o caso dos trabalhadores daquelas poucas empresas que fazem registro em carteira, que funcionam nos velhos moldes. Isso tudo ruiu, mas o indivíduo continua precisando sair de casa para trabalhar porque atua como eletricista de aplicativo e fica rodando a cidade. Ele também precisa de vale-transporte. É apenas um exemplo, mas na minha concepção os direitos sociais e trabalhistas deveriam ser garantidos para todo e qualquer cidadão. Temos que pensar até em direitos novos, como o acesso à internet móvel de qualidade, porque do contrário você exclui trabalhadores do location-based. 

Não estou dizendo que não é importante lutar para avançar onde pudermos com a regulação do trabalho por plataformas, mas digo que temos que tentar romper com esse paradigma e dar um salto à frente. Vamos partir para uma nova lógica, colocar os direitos em outra esfera, que não no trabalho. As férias são outro exemplo. É só quem tem carteira assinada que tem esse direito? Ou será que todo cidadão trabalhador brasileiro deveria ter direito a um mês de descanso, independente se for entregador, clickworker, médico ou qualquer outra função. É isso que a gente quer para a nossa sociedade? Se for isso, temos que lutar para que todos tenham, independente do seu vínculo laboral. Esse seria o salto que precisamos ter coragem de dar. É claro que para dar esse salto temos que ter força política, força enquanto nação. Não é nada trivial, mas do ponto de vista lógico eu acredito que é assim que deveríamos caminhar.  

Na conjuntura brasileira, o que se percebe em relação aos direitos trabalhistas é justamente o contrário. Temos reformas que se caracterizam como antirreformas, retrocessos. Como enfrentar isso nesse cenário? 

Sinto-me como naquela história que contam de uma represa que começou a rachar e o garoto vai lá e coloca o dedo para tampar, mas não param de surgir outras rachaduras e faltam dedos. Eu acho que a barragem do trabalho organizado está rompendo e nos faltam dedos. Não estamos conseguindo tapar todos os buracos que são essas reformas. A bem da verdade, as reformas estão destruindo o trabalho organizado. É diferente da história da barragem, não é a física, não é a gravidade, é a ação do capital que está rompendo essa represa. Nessa analogia, os dedos representam a falta de força da classe trabalhadora, porque ela está em uma condição muito desfavorável no atual momento do capitalismo. Precisamos de muita capacidade de organização, reflexão e força política para lutar por uma nova organização do mundo do trabalho. As reformas foram muito ruins e constituem um programa único. Em 2017, com o Temer, a reforma trabalhista foi um grande desastre. Praticamente enterrou a CLT. Legalizou condições de trabalho muito precárias e a informalidade. Essa reforma vai mostrar a sua cara daqui para frente, quando a economia voltar a se recuperar após a pandemia e as empresas voltarem a contratar. A minha impressão é que os contratos serão feitos nas formas mais precárias que agora a legislação permite. Não apenas com o trabalho intermitente, mas também com a pejotização. As empresas vão banalizar os contratos via Microempreendedor Individual (MEI). 

Infelizmente esse é o cenário futuro do ponto de vista do dinamismo do mercado de trabalho brasileiro. Quando voltar a se recuperar, será com o padrão reforma trabalhista de 2017 e pela primeira vez, pois entre 2017 e 2020 houve um período de estagnação. As empresas que tinham uma lógica de funcionamento de décadas não passaram por grandes transformações imediatas em relação à situação contratual de seus empregados. Agora não. As empresas fecharam, tiveram que recomeçar do zero, ficaram muito tempo com as atividades suspensas. É com o recomeço que a reforma trabalhista de Temer vai mostrar as suas garras.  

Será um momento que vai exigir muita luta, organização e reflexão dos trabalhadores, além de muitos instrumentos de análise.

Com relação à crise de representatividade das entidades sindicais nesse contexto de trabalho por plataformas digitais, alguns especialistas apontam que um caminho possível para a organização dos trabalhadores é a formação de ligas, sem divisão entre categorias, tal qual ocorreu no Brasil no período pré-década de 30. Você concorda com essa hipótese? 

Concordo. Nós teremos que ir para uma estrutura sindical muito diferente. Precisaremos ter coragem, mas está nos faltando. Quando você está apanhando, o sentido é se encolher e cada vez mais tentar proteger o que resta. Devemos partir para o ataque no sentido de ousar. Eu acho que essa é uma das questões fundamentais, como se dará a organização dos trabalhadores. É muito mais nessa lógica de uma representação horizontal, ou seja, não é por setor, por categoria, somos muito fragmentados e aí cada um cuida do seu, mas isso não faz mais sentido, porque, como eu disse, essas atividades de plataformas são difíceis até de dizer em que setor elas estão. Você não sabe se o trabalhador é entregador de comida ou se é um fretista, porque ao mesmo tempo ele entrega peças para grandes empresas, também faz compras no supermercado. O que é isso, que tipo de atividade é essa? É muito difícil definir. Então você vai representar quem? Que tipo de profissional? Para a organização sindical é fundamental se reestruturar para ser o mais horizontal possível. Muito bem lembrada essa experiência pré-30. Os sindicatos devem utilizar as plataformas para criar vínculos com os trabalhadores. Como é que você se aproxima desse trabalhador? Não se encontra mais ele na porta da fábrica. Você não tem mais a ficha dele. Então também temos que ser inovadores no sentido de atrair. A liga dos trabalhadores vai ser uma plataforma, um aplicativo. Se em 1930 era uma liga, com características anarquistas, agora será um aplicativo. E como juntar essa turma? Vamos ter que quebrar a cabeça. Mas eu acho que temos que sair das cordas, da defensiva.

Sobre o pesquisador

Possui graduação em Ciências Econômicas, mestrado em Economia Social e do Trabalho e doutorado em Desenvolvimento Econômico, todos pela Unicamp. Atualmente é coordenador e professor do programa de pós-graduação da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais e é pós-doutorado do Centro de Estudos Sindicais de Economia do Trabalho do Instituto de Economia da Unicamp. Tem vasta experiência na área de Economia, atuando principalmente com os temas economia brasileira, mercado de trabalho, informalidade, desigualdade e políticas públicas. Faz parte do Grupo de Pesquisa sobre Plataformas Digitais de Trabalho da Clínica Direito do Trabalho da UFPR.

Edição: Pedro Carrano