Paraná

SOCIEDADE

CRÔNICA. Você foi embora e a porta seguiu entreaberta

O turbilhão da História nos devastou a todos, resta entender que estamos pisando em um novo momento

Curitiba (PR) |
O turbilhão da História nos devastou a todos, resta entender que estamos pisando em um novo momento - Pedro Carrano

Você foi embora e avisou que ia embora. Eu também avisei, mas não acreditava nas minhas próprias palavras e tampouco nas suas. Talvez como o protagonista da peça Incendiários, avisado de que sua casa seria incendiada, mas insistia em achar que a verdade é algo que pode não acontecer.

Porém, ao mesmo tempo, você ficou, perdura até este exato momento. Ou apenas nossas sombras e fantasmas é que resolveram ficar?

Embora eu não tenha tido coragem de dizer para ficar, migração de pássaros rápidos, pássaros urbanos, que habitam em córregos que já não temos mais nenhum ânimo de acreditar no seu brilho. Você se foi e nós dois nem percebemos. Eu nem percebi e sigo até agora como uma goleira que tivesse levado um gol sem saber de onde vinha o chute.

Ou então um lutador que, ao tentar se desviar, apenas tivesse levado a porrada mais forte. Melhor se eu não houvesse tentado a esquiva e aceitasse a trajetória do soco em linha reta, isso talvez pudesse levar as coisas a doer menos.

Não sei onde você está e conheço exatamente o seu atual endereço, para onde ajudei a carregar as suas coisas, em transe, naquela mudança. Sei quem você é e, neste momento, nossas identidades nos escapam completamente e as memórias apenas atrapalham tudo.

Tudo não passava de um desejo de se livrar logo das amarras, bombeiros apressados em saltar do edifício em chamas, líderes de uma comunidade originária fazendo o ritual de destruição de todas as coisas, criança incomodada pelo brinquedo velho com olhos abertos em pesadelos noturnos, manadas de gente buscando a solidão da pandemia.

O gesto de destruição foi a única ação que no fundo nos coube, diante a indefinição e do não saber como urdir um futuro. Em te perdendo, dolorosamente, passei a me sentir mais humano, precisei ser golpeado para me livrar de todo o ego que servia de cerca com arames bastante farpados e violentos. Recuperei pela violência da dor o que a dor transforma em violência exasperante. Eu te quero e não te quero. Eu te perdi e te conservei. Eu aceitei te perder e corri até o portão para tentar não te perder. Mas fiquei no meio do caminho, sem fala, e o que se foi de você foi a anestesia de uma geração inteira machucada com as mãos em frangalhos. O turbilhão da História nos devastou a todos, resta entender que estamos pisando em um novo momento.

No meio de tantas mortes e indiferença, meu coração quente também caminhou calmo e morto, morno, sem capacidade de reagir contra os matos que tomavam conta de todo o caminho alheios à nossa vontade confusa. E aos tantos muros que de repente cresceram como ervas daninhas.

Edição: Lucas Botelho