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Opinião

Artigo | Destruição

"Desfaz-se, no luto, o tecido emocional da nação, incapaz de entender o cúmulo de insensatez"

Porto Alegre | BdF RS |
Imagem de uma das salas do galpão da Cinemateca Brasileira após o incêndio - Divulgação

“Nós temos que desconstruir muitas coisas, desfazer muitas coisas”, disse em março de 2019, na capital do Império, o presumível psicopata que os brasileiros tinham elegido. A promessa vem sendo cumprida horrenda e rigorosamente. 

Quanto às instituições, pouco a pouco vão sendo desconstruídos os instrumentos principais de todas as políticas públicas nos âmbitos da educação, cultura, meio ambiente, segurança, trabalho etc. 

Além dos danos já temidos, a imprevista pandemia proporcionou ao cérebro doentio a oportunidade macabra de “desfazimento” de centenas de milhares de vidas. Desfaz-se, no luto, o tecido emocional da nação, incapaz de entender o cúmulo de insensatez.

Cada novo ataque, vai demolindo o que resta de um corpo de nação

É nesse contexto que os incêndios do Museu Nacional da Quinta da Boa Vista e da Cinemateca Brasileira se situam. Além da destruição de patrimônios materiais, além do ataque a instituições públicas, é atingida a memória da Nação.

Queima a Memória, queima a História. O incêndio de um dos pavilhões da Cinemateca Brasileira explodiu, na cabeça de todos que conhecem a história e a importância dessa instituição, como a tragédia anunciada, permitida e, de certa forma, preparada. Ao mesmo tempo, iluminou, tétricamente, a ignorância da imensa maioria da população brasileira sobre o que é a Cinemateca, quais suas funções e significados. E as chamas deixam ver, ainda, o quanto os brasileiros deixam de conhecer, entender e valorizar seu próprio passado e sua própria História.

O fogo incinerou uma parte do sonho daqueles que, nos anos quarenta, começaram a pensar o cinema como cultura, como fonte de reflexão sobre a realidade e como fixação imagética dos acontecimentos e das ideias. Paulo Emilio Salles Gomes foi o mentor do movimento, ele que vinha de um exílio europeu, fugindo da ditadura estado-novista e trazia de lá vivências e visões renovadoras. 

Foi uma longa trajetória, desde a criação do primeiro cineclube brasileiro, passando pela filmoteca do Museu de Arte Moderna e a formação do acervo de filmes e outros materiais, que leva à criação, em 1956, da Cinemateca Brasileira. Inicialmente como sociedade civil gerida por seus associados, depois como fundação privada e, finalmente, em 1984, acolhida como instituição pública vinculada ao Ministério da Educação e Cultura. Finalmente era reconhecido seu papel nitidamente público, de acolhimento, recuperação, cuidado e preservação de filmes e outros itens vinculados à expressão audiovisual. Em 2003, passou ao Ministério da Cultura, incorporada à Secretaria do Audiovisual.

A essa altura, já era bem nítida a intenção de ter, como objetivo principal o cuidado e a preservação de materiais audiovisuais. Certamente já tinha sido entendido, também, o que um acervo desse tipo significa para a preservação da memória audiovisual e, mais do que isso, de um meio que preserva a própria memória da vida e da cultura de um povo. E também já ficava notório que essa responsabilidade é um dever do Estado, como gestor e zelador do patrimônio coletivo, material e imaterial.

A precariedade das instalações, em locais inadequados, dispersos e com mudanças eventuais, já tinha propiciado a ocorrência de três incêndios. E uma cinemateca, especialmente com a presença de filmes ainda com nitrato de celulose, altamente inflamáveis, é um local de contínuo e altíssimo risco. Finalmente, em 1992, começa a instalar-se nas edificações de antigo matadouro municipal, em Vila Clementino, devidamente adaptadas por novo projeto arquitetônico. Parte das instalações, inclusive do acervo, situa-se em anexo em Vila Leopoldina (zona oeste de São Paulo) – onde ocorreu o incêndio atual.

Em 2016 ocorreu o quarto incêndio

A cada sinistro, perdia-se parte do acervo com danos irrecuperáveis. 

Então, um outro incêndio, institucional, começou a devorar a Cinemateca quando, no governo Temer houve a terceirização completa com a entrega da gestão e do funcionamento a uma organização privada (em 2018). O Estado alienava-se da sua responsabilidade, como se a guarda do acervo e sua colocação a serviço da coletividade não tivessem importância. O processo culminou com o rompimento do contrato, por parte do governo, em 2019, já sob a égide do desmonte das instituições federais encarregadas da política cultural. O Ministério da Cultura foi rebaixado a uma Secretaria subordinada ao Ministério da Cidadania e, pouco depois, ao Ministério do Turismo. 

A Cinemateca Brasileira foi deixada ao abandono, guardada por alguns meses por funcionários da organização descontratada (com salários atrasados), sem recursos para o pagamento de serviços vitais, como a eletricidade. Profissionais do audiovisual e outros segmentos do mundo cultural e da sociedade em geral começaram a se mobilizar em defesa da Cinemateca e alertar para os riscos que ela corria.

Em junho de 2020, o movimento SOS Cinemateca, agrupando antigos funcionários, profissionais da área audiovisual, frequentadores e moradores do bairro, reuniu dezenas de participantes em um ato junto à entidade. Manifesto assinado por 42 entidades de todo o país e 39 entidades internacionais conclamava pela salvação da Cinemateca.

O movimento repercutiu nos meios culturais, especialmente naqueles ligados ao audiovisual. Em Porto Alegre, a Associação dos Amigos da Cinemateca Capitólio, além de manifestação pública, realizou um debate virtual que teve como participantes Carlos Roberto Souza, ex-diretor da Cinemateca Brasileira e Marcus Mello, ex-diretor da Cinemateca Capitólio, tendo como tema “o risco do apagão da memória do audiovisual”. Mais recentemente, novas manifestações e protestos continuaram a ocorrer, chamando a atenção ao perigo que corria a Cinemateca.

A mobilização da cidadania já tinha obtido resultado, com uma ação civil pública do Ministério Público Federal em São Paulo, de julho de 2020, acolhida pela Justiça Federal em maio do ano corrente. No último dia 20 de julho, houve uma audiência, quando foi dado um prazo de 60 dias para que as autoridades federais tomassem as necessárias providências. 

O fogo não esperou. A perda é irrecuperável

Bibliotecas, museus e cinematecas são repositórios inestimáveis da memória das sociedades e dos povos. Mas dentre os três, as cinematecas armazenam uma memória que, ao ser convocada, revive de maneira inédita, a realidade, como movimento, ambiência e, desde os anos trinta, sonoridades. De certa forma, assim como o que marca a passagem da pré-história à História é o registro grafado, podemos dizer que a humanidade passou a uma nova fase com a expansão desse registro para a imagem em movimento com o som correspondente. A História ganha uma nova expressão documental.

O incêndio da Cinemateca Brasileira é a pior e a mais significativa figuração da grande devastação que sofre nosso país. A destruição do passado é criminosamente necessária para impedir a construção de um futuro luminoso. É preciso desfazer, desconstruir, incendiar se for preciso, para preparar um futuro mais e mais sombrio, uma distopia destrutiva do que há de melhor no humano.

Resta esperarmos que o incêndio da Cinemateca, com suas chamas destruidoras, sirva para iluminar, também, o protesto, a indignação e a resistência de quem ainda acredita na derrota das psicopatias, dos destruidores, dos desfazedores, enfim, da barbárie. 

* Presidente da Associação dos Amigos da Cinemateca Capitólio

** Este é um artigo de opinião. A visão dos autores não necessariamente expressa a linha editorial do jornal Brasil de Fato.

Edição: Katia Marko