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Crônica | Ele me deu as mãos e eu já não tinha mãos para dar

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"tanta coisa nos distanciava, tanta coisa nos aproximava, a mão dele firme de quem aguenta até duas toneladas nas costas". Foto: - Giorgia Prates
Mas não nos conhecemos. Ninguém se conhece, ainda mais neste momento de distâncias

Parei o carro. Estava no bairro. Desci para entregar as caixas e latas que sempre reservo para o carrinho de Fernando. Às vezes a gente se cruza por alguma dessas vielas extensas que mais parecem tripas, pontuadas de cães, de gatos, de crianças, de vida, de movimentos desordenados de gentes.

Muitas vezes a gente nem se fala, a cabeça baixa vergada sob a grade do carrinho. Outras um dos dois acena. Outras a minha pressa em tarefas de militância e do jornal. Outras os olhares não se reconhecem mesmo.

Nos apresentamos na real numa treta, quando nós liberamos para ele alguns componentes de carros e placas de metal jogados no mato alto da associação de moradores e descobrimos mais tarde que a lataria era do dono de um caminhão estacionado ali, que pagava irregularmente aluguel para a sede da associação se manter.

Mas essa é outra história. O foda foi que, no dia seguinte, em plena Páscoa, o cara, dono do caminhão, chegou bufando, xingando, ameaçando dar porrada em nossas caras e chamar a polícia por roubo. Ninguém entendia nada enquanto a gente simplesmente distribuía doces para a piazada, clima de festa, todo mundo meio lambuzado, com as sacolas rasgadas de doces e de alegrias momentâneas, e o maluco ali ameaçando chamar a polícia contra a gente, e os moradores não muito interessados naquela treta monstra, apenas nas balas que voavam e nos caramelos que se derretiam como sapos e moscas em festa à beira de um rio calmo.

Por sorte, Fernando havia vendido o material para a esposa de um primo do caminhoneiro, a duas quadras longe da associação, e tudo ficou em casa, tudo certo, tudo tranquilo, fomos lá com ele para explicar o mal entendido com o dono do depósito. Ficamos amigos. Mantivemos nossas honras de que ninguém roubou nada de ninguém. Acho que ficamos amigos. Mas não nos conhecemos. Ninguém se conhece, ainda mais neste momento de distâncias. E ao mesmo tempo é como se agora, desprovidos de tanta coisa, a gente conhecesse tudo o que é essencial.

O que eu queria contar mesmo, de verdade, é que ontem o encontrei por coincidência, parei tudo o que eu tinha em mente e em movimento, estacionei em local proibido, não coloquei o casaco em meio à chuva fina no para-brisa, acenei para Fernando, ele veio na minha direção, deixou o carrinho já perto de outro depósito, entendeu que eu continha novamente alguns materiais e, inesperadamente, me ofereceu a mão, logo me ofereceu um abraço, e sem esperar para ver a forma como eu cumprimento neste momento de distâncias, apertou a minha mão com a força marcada pelo trabalho, os cortes, os calos, as marcas, as sujeiras, os lixos, as caminhadas, tudo estava ali me segurando, todos os mantos da crosta terrestre até a gente tentar chegar nalgum magma, e eu não segurava a mão de outra pessoa há mais de um ano e meio, e eu não sabia se um dia voltaria a segurar, e eu já não sabia se por baixo de minha máscara e de minhas duas mãos que flutuavam como ilhas solitárias no oceano ainda havia alguma coisa que pudesse oferecer a outro ser humano, tanta coisa nos distanciava, tanta coisa nos aproximava, a mão dele firme de quem aguenta até duas toneladas nas costas, a mão fraca de quem talvez não suportasse a humilhação se tivesse sido acusado de roubo, a minha mão vacilante, o momento de dois homens que não abraçavam, que não conviviam, que não conversavam, mas que nalgum momento apertaram as mãos, e não havia nenhuma essência a ser investigada, éramos tão somente isso, dois caras que se cumprimentaram, éramos apenas dois caras num dia de garoa gélida, éramos apenas dois caras de histórias opostas que se miram e consideram suas diferenças, éramos apenas dois caras cindidos pela sociedade atual, sem ter ou saber o que dizer um ao outro, éramos apenas dois caras e as condições, se um dia vierem, num dia futuro, depois disso tudo, para sermos apenas dois caras iguais, sem o peso das opressões. Sem o peso inclusive de sermos dois homens. Em um mundo de tantos braços, sem braços para dar ou sem ter braços onde agarrar.

Éramos dois caras nos dando as mãos e sem saber se já tínhamos qualquer tipo de mãos para dar ou oferecer.

 

 

Edição: Lucas Botelho