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Coluna

CRÔNICA. Eu não a conheci. Eu a conheci

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Berta Cáceres nas margens do Rio Gualcarque, região oeste de Honduras, onde se posicionou contra projeto transnacional - Goldman Environmental Prize
Ainda pressinto aquela atmosfera em que seu nome corria por toda aquela região

Aquela estrada era um traço cortando montanhas e curvas, um rastilho branco que até parecia que navegávamos por um caminho de sal.

Nenhuma poeira na cara e só a brisa do final de tarde embalava um punhado de sonhos naquela caminhonete cheia onde nos equilibrávamos em longas horas de viagem.

O clima bom, os relatos terríveis, o fim de tarde. Naquele trecho a maioria dos que estavam ali tinham uma espécie de bússola mirando o tempo todo na direção do norte, para alguma vida possível nos Estados Unidos. Alguns já haviam tentado. Alguns já haviam tentado e inclusive se conheciam da fronteira. Alguns foram deportados e tentariam de novo quando a temporada de migração se abrisse. Falávamos de fronteiras marcando nossas mentes ao mesmo tempo em que atravessávamos aquela montanha verde, numa grande angular que nossos olhos ralos talvez nunca mais alcançassem.

Aquele caminho de Honduras era distante de tudo. Estávamos no mesmo carro. Eles iam para o norte, eu começava a descer para o sul, estradas tortuosas e muita coisa ainda para fazer neste continente, mas já com leve ansiedade de retorno às águas do Atlântico, depois de um período vivendo entre México e América Central.

Uma região onde tudo e todos eram pessoas pequenas, eram pessoas gigantescas, músicas corroendo toda aquela estrutura que, no fundo, era de silêncio. O mundo mágico presente, mas como se o truque fosse apresentar sempre a realidade nua, dura e crua, o que não se encobria de jeito nenhum.

Aportamos com a caminhonete em Concepción de Intibucá, fronteira entre Honduras e El Salvador, vulcões adormecidos do outro lado da divisa entre os países.

O nome do departamento daquela vez, mesmo numa terra de tantos contrários, era diretamente proporcional ao que trazíamos em movimento dentro do peito: La Esperanza.

Em pouco tempo fui recebido pela família de Nahum, seus filhos pequenos, sua liderança comunitária, o trabalho no qual eu poderia ter alguma utilidade, capacitando camponeses para a programação da recém-lançada Rádio Guarajambala, nome que hoje soa e se confunde com a poesia da memória.

Conheci os espaços comunitários, as conquistas da comunidade, as histórias, passando sempre pelo nome de Berta Cáceres, militante e liderança entre os indígenas Lenca, nome de referência, do apoio internacional até o reconhecimento entre a maioria dos camponeses hondurenhos por suas lutas contra os megaprojetos de mineração e hidrelétricas a serviço de empresas transnacionais.

Não a conheci no período em que trabalhei em Honduras, logo depois segui viagem. Os anos se passaram, Berta continuava uma notícia marcante nas questões ambientais, na resistência contra um golpe de Estado que se instalou em Honduras no ano de 2009, antecipando uma onda agressiva em nosso continente.

Ainda pressinto aquela atmosfera em que seu nome corria por toda aquela região, por montanhas, rios, estradas minúsculas e coloridas. Um nome que corria e que seguiu correndo, por estradas de poeira, mesmo depois do seu brutal assassinato, em 2016, a mando de soldo, pelas causas que Berta defendia. E que segue, viva ou morta, mas presente, defendendo. Não a conheci. Numa terra que segue tendo fome voraz por justiça. Conheci o essencial de Berta, o que é possível ser deixado para o mundo, sua mensagem de luta, em estradas de poeira e comunidades profundas.

Edição: Lucas Botelho