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Crônica | E eu toquei de leve naquele ombro

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Eu confesso que apenas consegui deixar a palma da minha mão levemente recostada naquela superfície frágil - Joka Madruga / Gibran Mendes
“Estou visitando um amigo na prisão que talvez que nunca mais veja”. O silêncio foi geral.

Uma das minhas mãos repousou de leve naquele ombro curvado. Ele havia acabado de deixar o cárcere, onde visitou um amigo, ou será um conhecido? Mas daqueles por quem se tem tanto respeito que se alcança a proximidade. A vida, afinal, é perto. Não pode ser longe. Os ombros dele estavam leves. Os ombros dele estavam duríssimos. A gente podia desabar e aquela estrutura se manteria, embora talvez não resistisse ao peso da mão de uma criança.

O peso de décadas em cada lado, enquanto a face de anjo caída buscava se ajustar aos cliques e perguntas da imprensa que nós tentávamos, inutilmente, ordenar. Recordei de Deus falando ao Cristo de José Saramago: “Nem eu posso te dar todas as respostas, e nem você consegue me fazer todas as perguntas”. O que indagar para alguém que voltava a uma cela depois de viver por doze numa espécie de buraco? Eu não conseguiria questionar coisa alguma, ainda bem que estava apenas na condução daquele momento e também daquele silêncio.

Eu não me recordo, mas acho que fazia sol. Acho que também fazia frio. Era um junho, e a foto hoje não dá a entender direito. A temperatura dele era próxima. Ele nunca vai se recordar de mim. Esse cara do passado. Esse cara do futuro. E eu vou pensar para sempre naqueles poucos metros que o acompanhei, do desaforo que escutei quando sugerimos a ele uma mensagem de apoio à luta na Colômbia, o rosto de cansaço e vontade de ir embora, correr para o carro de portas abertas, ou ficar ali com o preso e romper todas as grades. Ele falou pouco. Ele falou tudo. Caiu uma gota de lágrima daquele rosto. “Estou visitando um amigo na prisão que talvez que nunca mais veja”. O silêncio foi geral. O bem estar daquele momento. O mal estar daquele momento. Esse velho nunca desistiu e hoje é considerado exemplo de como se livrar de tudo o que não presta e se agarrar apenas no coração sujo e de barro da vida. Porém, o ombro estava ali, naquele ângulo de inclinação que alguns fantoches e fantasmas deixam a gente. Na hora, naqueles poucos metros, naqueles poucos cliques, naquele encontro confuso de dois idiomas, e gritos, de esperanças, de desesperanças, eu não pensei em nada daquilo.

Eu confesso que apenas consegui deixar a palma da minha mão levemente recostada naquela superfície frágil, naquela superfície metálica, naquele ombro que viveu tudo que um ser humano é capaz de viver. Naquele toque de leve que às vezes só os bichos são capazes. Naquela concentração de sentimentos antes da primavera a que na infância aprendemos a nomear simplesmente de casulo.

Edição: Lucas Botelho