Dia 13 de maio de 1888 é a data em que os livros didáticos celebram a ação da Princesa Imperial Regente que, em um ato de cristandade, sancionou a Lei nº 3353 de 1888, popularmente conhecida como Lei Áurea, marcando o fim da escravização de negros e negras no país. Contudo, comemorar a liberdade do povo negro reverenciando a família real portuguesa, principal responsável pelo longo regime escravocrata no Brasil, é uma ofensa a nossa ancestralidade.
É tão absurda a versão de que a escravização teve em si a proposta cristã de converter os africanos à fé do Deus verdadeiro quanto a lorota histórica de que a abolição foi assinada em um ato de bondade pela princesa, enquanto era interina no trono, na ausência de seu pai.
Lembremos aqui que foi através da bula papal “Dum Diversas”, emitida em 18 de junho de 1452 pelo Papa Nicolau V e dirigida ao rei Afonso V, de Portugal, que os portugueses foram autorizados a conquistar territórios não cristianizados e consignar à escravatura perpétua os sarracenos e pagãos que capturassem.
Tem algo de errado que não está certo neste conto apócrifo. A não ser que apostemos na incoerência divina, que ora orienta o papa a autorizar a escravização para conversão, ora orienta regentes a abolir a mesma escravização sem o objetivo concluído.
A luta por nossa liberdade não começa no Brasil com a culpa cristã de abolicionistas brancos que convencem a generosa princesa. Houve batalhas. Derramamos sangue em diversas revoltas invisibilizadas pela História, organizamos sabotagens em plantações, ciladas a escravocratas e fugas em massa de senzalas. Fomos vanguarda na organização de espaços coletivos de resistência, os quilombos. A inabilidade imperial em encerrar os levantes negros, somada à pressão do Velho Continente pelo avanço do capitalismo e a necessidade da ampliação de mercado consumidor para a Europa, fecham os reais motivos da assinatura da Lei Aurea.
E depois disso o que mudou? Esses abolicionistas brancos e a tal princesa, os que contaram sua versão para o registro histórico, após a abolição, não tiveram a preocupação de garantir aos negros e negras meios para sua sobrevivência. Fomos marginalizados na organização estrutural das cidades, nossa cultura e religiosidade criminalizadas. Impedidos de exercer cidadania, visto que não tínhamos direito ao acesso a políticas públicas.
Não conseguimos ainda superar as marcas das desigualdades e do racismo que a adoção do regime escravocrata gravou em nossa sociedade. Os reflexos da situação do povo negro na pandemia escancaram essa situação.
Segundo os boletins epidemiológicos do Ministério da saúde, morrem 40% mais negros que brancos pelo novo coronavírus no Brasil. Segundo o levantamento realizado pela Agência Pública, para cada pessoa negra que recebeu uma dose da vacina contra o Covid-19, duas pessoas brancas são vacinadas por aqui, ou seja, temos o dobro de pessoas brancas vacinadas, mesmo sendo a população negra a maior e a que mais morre. Necropolítica exposta em estatística.
Segundo o IBGE, no ano de 2020, a taxa de desocupação de pretos foi 58% superior à de brancos. Chegamos ao ponto em que, com a alta nos preços de alimentos e o preço do botijão de gás chegando a R$ 100, muitas famílias precisam escolher entre comprar a comida ou cozinhá-la.
Lembram do mapa da fome? Aquele publicado pela ONU sobre a situação global de carência alimentar? Um país entra nele quando a subalimentação afeta 5% ou mais de sua população. A projeção que apresenta Daniel Balaban, representante no Brasil do Programa Mundial de Alimentos das Nações Unidas (WFP) e diretor do Centro de Excelência contra a Fome, mostra o Brasil próximo dos 9,5% da população em situação de subalimentação.
Somos quem mais morre na pandemia. Os menos protegidos pelas políticas públicas. Os que mais sofrem com o desemprego e a fome. Um genocídio da população negra está em curso como resultado do racismo estrutural. Que abolição é essa que mantém nosso povo escravo da fome, do desemprego e da morte?
Não comemoramos 13 de maio. Não reconhecemos Isabel como princesa. Muito menos Bolsonaro como presidente.
*Juliana Mittelbach é feminista negra, enfermeira no Complexo Hospital de Clínicas UFPR, Mestranda em Saúde Coletiva – UFPR e Vice-presidente do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial.
Edição: Frédi Vasconcelos