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Entrevista | “Cotas é um dos meios de promoção da igualdade racial”, diz Martír Silva

Governo do Estado do Ceará aprovou, no dia 25, proposta de cotas de 20% para população negra em concurso público.

Brasil de Fato | Juazeiro do Norte (CE) |
"A modalidade de cotas faz parte desse processo de reparação, mas ela em si não é única e nem completa", afirma Martír Silva. - Foto: Governo do Estado do Ceará

No dia em que o Ceará comemora a sua Data Magna, que aboliu a escravidão no estado, no dia 25 de março de 1884, o governador do estado Camilo Santana (PT) sancionou a lei que destina 20% das vagas em concursos públicos estaduais para pessoas negras. A lei é um avanço para a promoção da igualdade racial em todo o estado, garantindo à população negra a conquista de direitos sociais. O Brasil de Fato Ceará conversou com Martír Silva, advogada e coordenadora da Coordenadoria Especial de Políticas Públicas para a Promoção da Igualdade Racial (CEPPIR), que falou sobre a estrutura social da população negra no Brasil e no Ceará e a responsabilidade do estado em garantir os direitos para o reconhecimento da pessoa negra enquanto povo em toda a sua diversidade.  

Brasil de Fato – Qual a importância dessa lei para a promoção da igualdade racial no Ceará?

Martír Silva – A modalidade cotas é um dos meios de promoção da igualdade racial. Ela é criada e acontece quando há um reconhecimento da profunda desigualdade racial decorrente de um longo processo de escravização da pessoa negra e perdura até hoje, e isso faz com que a população negra, os pretos e pardos, sejam minoria nos espaços institucionalizados, inclusive na universidade. Então isso demonstra que essa política é necessária, mesmo que não corrija totalmente a condição da negritude no Brasil, mas contribuiu para a promoção da igualdade, e essa condição só pode ser construída através da promoção do estado que garanta ao povo negro, através de políticas públicas, acesso ao trabalho de qualidade, a educação e saúde integral. 

Brasil de Fato – Como o estado do Ceará pode contribuir com políticas públicas para a promoção da integralidade da pessoa negra em seus direitos fundamentais, como saúde, educação, emprego...?

Martír – O estado brasileiro foi constituído nessa construção patrimonialista que descente dessa elite colonialista e defendeu a edificação das estruturas de poder através da branquitude e o estado brasileiro foi fechado nesse tipo de estrutura. Durante muito tempo foi assim, até que a luta pela democracia e os direitos fundamentais, os direitos personalíssimos, como a liberdade de crença, o reconhecimento étnico e o direito à memória, que é também garantido pela constituição. Tudo isso mudou a postura do estado, sendo acessado por várias pessoas de pensamento democrático e visão mais aberta de estado. A pessoa negra só terá reconhecimento, respeito e direitos em um ambiente político democrático. Sem democracia, nem negros, nem LGBTs, nem pobres, nem desempregados, nem indígenas conseguem avançar em suas agendas políticas, em suas conquistas. 
    
Como é o estado que faz a gestão de pessoas, que planeja o orçamento público, que faz o exercício político das funções desses serviços e benefícios das políticas públicas, ele tem de se munir dessa mentalidade democrática, antirracista, antimachista e anti toda conduta que seja contrária à diversidade e pluralidade do povo brasileiro.  

Brasil de Fato – Qual a origem dessas desigualdades raciais que ainda existem e que colocam a pessoa negra na margem de políticas públicas?

Martír – Veja, existe no Brasil e, consequentemente no Ceará, o racismo estrutural, que atravessa toda a existência das pessoas negras no país, cria também uma base ideológica de negação da pessoa negra para o trabalho. No processo pós-abolição da escravidão, houve a criminalização das pessoas negras e a exclusão delas da possibilidade de trabalho livre de qualidade. Essa marginalização social e econômica precisa ser interrompida através desses mecanismos. Quando o Ceará cria e sanciona essa lei de cotas, por exemplo, há dois movimentos em andamento: um é o acolhimento e recepção de lutas históricas dos movimentos negros que se arrastam por séculos e, na outra via, faz esse reconhecimento da existência, presença e participação efetiva da população negra na história e na formação do povo cearense. 

BdFCE – Essa lei pode servir também como um dos processos de reparação para a população negra?

Martír – A modalidade de cotas faz parte desse processo de reparação, mas ela em si não é única e nem completa. Eu dou razão a alguns setores do movimento negro que consideram que a reparação histórica da população negra deve ser também em outras modalidades, inclusive, a indenizatória, algo que nós nunca tivemos. Após a abolição, a população negra foi literalmente acossada da terra. Ela foi formar as periferias, as moradias de situação de risco, o desemprego... A reparação histórica só pode se dar através de mecanismos que o Brasil, em seu conjunto de poderes e instituições, faça formalmente e integralmente o reconhecimento do povo negro brasileiro, como se teve no período pós-ditadura militar, em que as vítimas de tortura tiveram, através das comissões da verdade, reconhecimento e apoio por parte do estado brasileiro.

É preciso que se criem no Brasil comissões de verdade e de história específicas para tratar dos descendentes dos escravizados que hoje formam essa população negra aqui no país. Garantir cotas de acesso ao serviço público através de concursos e à universidade é importante, mas é também preciso garantir que essa população tenha acesso às condições de vida que a permitam acessar a universidade e o tempo de estudo para ingressar no serviço público através dos concursos.  

Brasil de Fato – Você tocou antes em um ponto importante que é sobre a invisibilidade imposta à população negra. Gostaria que você falasse sobre quais são os passos que se tem na jornada do reconhecimento da existência da pessoa negra aqui no Ceará.

Martír – Passam por uma base fundamental que é o reconhecimento que as relações étnico raciais no Brasil são atravessadas pelo racismo, pela violência, pela exclusão. Nós tiramos essas conclusões pela verificação dos dados que nos mostram nos mapas da violência que, por exemplo, a juventude que mais é assassinada no país é a juventude negra, que está localizada em uma situação de extremo abandono social, tanto pelo poder público como pela sociedade civil em geral. 

É preciso que se criem mecanismos para que se possa compreender que os tratamentos e protocolos de tratamento e funcionamento das instituições seja pautado no reconhecimento das desigualdades dessas relações étnico raciais, mas, ao mesmo tempo, na criação de mecanismos de construção de outras formas de relações raciais. Então, de forma objetiva, os passos são o reconhecimento histórico, o respeito e a valorização do negro e o enfrentamento efetivo do racismo. É preciso uma revisão político social das relações sociais para que negras e negros tenham reconhecimento, não como subgrupo social, mas enquanto povo de fato, com memória e características próprias. 

Brasil de Fato – Quais os obstáculos para que a população negra tenha esse reconhecimento enquanto povo?

Martír – O preconceito, o racismo e a exclusão contribuem de forma muito perversa para a negação do povo negro. Quem é que quer ser descendente de um povo que é chamado de escravo, que é marginalizado, que é atribuído toda conduta negativa e punitiva? Eu vejo que é preciso uma verdadeira revolução, para que haja essa reparação e esse reconhecimento, e isso depende de muitos fatores, mas não é impossível, apesar de termos ainda uma longa caminhada. Antes de nós, da minha geração, muita gente caminhou inclusive do ponto de vista da historiografia nacional, onde também está o nosso povo, por isso também é muito importante a formação educativa na história do povo negro e indígena para que possamos ir cotidianamente superando o racismo.

Edição: Francisco Barbosa