Há cerca de um ano, Curitiba estava entre as capitais que recebiam marchas pelo fim da violência e pela garantia dos direitos das mulheres, para marcar o Dia Internacional da Mulher, 8 de março. Aquelas estavam entre as últimas manifestações de rua realizadas com aglomeração e sem uso de máscara, antes da proliferação do novo coronavírus no Brasil.
Em meio ao maior pico de mortes e contaminações pela Covid-19 no Paraná, o coletivo Marmitas da Terra e a Frente Feminista de Curitiba e Região Metropolitana marcaram a semana da Mulher com doações de marmitas e de sangue. Ao todo, 2.200 refeições foram distribuídas nos dias 8 e 10, e pelo menos 30 pessoas se organizaram para a doação de sangue ao longo da semana.
A manifestação trouxe como principal bandeira o direito à vida e à alimentação digna, em um contexto de fim do auxílio emergencial, aumento do desemprego e negligência do governo federal diante da pandemia. De acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgados em setembro de 2020, pelo menos 22,5% das famílias paranaenses viviam em situação de insegurança alimentar, o equivalente a 250 mil pessoas.
As ações em Curitiba integram a Jornada Nacional de Luta das Mulheres Sem Terra, que tem como tema “Mulheres pela vida, semeando a resistência contra a fome e as violências”. Iniciadas no dia 8 de março, as atividades vão até dia 14, data que marca três anos do assassinato da vereadora carioca Marielle Franco - crime que segue impune. No Paraná, as mulheres de dezenas de assentamentos e acampamentos realizam ações de solidariedade e doações de sangue em diversas cidades.
Contra a fome
O aumento da fome é uma realidade percebida a cada nova entrega de refeições preparadas pelo coletivo Marmitas da Terra, criado pelo Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), em maio de 2020. A iniciativa começou com 300 marmitas semanais, e atualmente entrega 1.100 refeições todas às quartas em praças e ocupações de Curitiba e Região.
“A cada nova entrega, percebemos o aumento da necessidade. É muito triste ver as filas longas que se formam nas praças no horário de entrega. São pessoas em situação de rua, entregadores de aplicativos, mulheres com seus filhos”, relata Gisele David, integrante do MST e do Coletivo das Marmitas da Terra, sobre o que vê nos momentos de distribuição nas Praças Tiradentes e Rui Barbosa, centro da capital. “Nosso objetivo é continuar a luta que acontece historicamente no 8 de março, e ao mesmo tempo contribuir solidariamente, e de forma coletiva, com as pessoas que estão precisando”, completou.
As dificuldades enfrentadas por quem está nas ruas são conhecidas de perto por Viviani do Prado, militante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua do Paraná (MNPR-PR). Ela denuncia a ausência de políticas públicas de assistência a estas pessoas: “A maioria do povo que está na rua é trabalhador, é lutador, e que estão em situação de rua não porque querem, mas sim porque os nossos governantes, seja na esfera municipal, estadual, federal, simplesmente deixam de fazer a sua parte, e deixa essa população carente totalmente desassistida”, relata Viviane, que também faz parte do Conselho dos Direitos das Mulheres de Curitiba e Região Metropolitana.
Rosani Moreira, integrante de Marcha Mundial de Mulheres (MMM) e da Frente Feminista, apresenta a iniciativa realizada em conjunto neste 8 de março como uma combinação entre solidariedade e denúncia, diante do momento crítico que o país atravessa. “O povo está passando fome, cada vez mais estão perdendo a condição de moradia. Uma parcela grande dessa população é composta por mulheres, chefes de família, e é mais uma violência do capitalismo que se impõe sobre a vida das pessoas", diz.
As refeições foram entregues nas praças Tiradentes e Rui Barbosa; nos bairros Parolin, Vila Joanita e Tatuquara; para a Casa de Acolhida do Migrante e do Refugiado, com distribuição nos bairros Capão Raso e no Umbará; e na comunidade Nova Esperança, em Campo Magro.
Em defesa do SUS
Para manifestar a defesa do SUS e ajudar na recomposição dos estoques de sangue no estado, grupos de mulheres do MST e apoiadoras realizam doações ao longo dos dias de Jornada.
A Irmã Anete Giordani, coordenadora do Centro Social Divina Misericórdia e conhecida por sua atuação na região do Sabará, está entre as cerca de 30 pessoas que participam da campanha em Curitiba. Ela esteve no Centro de Hematologia e Hemoterapia do Paraná (Hemepar), junto de outras religiosas da congregação Apóstolas do Sagrado Coração de Jesus. “Participe dessa campanha, você estará ajudando a salvar vidas”, garante a religiosa, ao convidar outras pessoas para se somarem à ação.
A direção do Hemepar tem manifestado preocupação com os baixos estoques de sangue ao longo deste período de pandemia. A entidade reforça que todos os protocolos de segurança para o coronavírus são seguidos à risca durante a doação, como o agendamento e recepção de 8 pessoas a cada 30 minutos para evitar aglomeração e utilização de álcool gel 70%. O agendamento para doação pode ser feito pela internet (saúde.pr.gov.br). Podem doar sangue pessoas que tenham entre 16 a 69 anos, que pesem mais de 51 quilos e que estejam bem de saúde.
Pela vida, contra a fome e as violências
A defesa da vida está entre as principais pautas das mulheres Sem Terra, em oposição ao descaso do governo Bolsonaro com o enfrentamento à pandemia, em especial com a falta de vacinas. Ao todo, 270.656 brasileiros já perderam a vida para a doença, até esta quinta-feira (11), o que coloca o país em segundo lugar no número de mortes no mundo, atrás apenas dos Estados Unidos da América.
A denúncia da fome também leva em conta os altos índices de desemprego. Segundo o IBGE, a população economicamente ativa no Brasil é de cerca de 100 milhões de pessoas, destas, 14 milhões estão desempregadas, seis milhões em desalento (deixaram de procurar emprego) e 40 milhões vivem de bico, sem renda fixa e com muitas dificuldades do básico, principalmente alimentação. Somado a isso, o fim do auxílio emergencial, a alta no preço dos alimentos e do gás de cozinha também dificultam a garantia de comida na mesa.
Quando o assunto é violência, a pandemia também virou sinônimo de piora. O Brasil registrou 648 feminicídios no primeiro semestre de 2020, 1,9% a mais que no mesmo período de 2019, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
No total de assassinatos, o crescimento foi de 5% em 2020 na comparação com 2019 - depois de dois anos consecutivos de queda. Foram registradas 43.892 mortes violentas, a maior parte delas de pessoas negras.
Edição: Lia Bianchini