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Do futebol utópico ao futebol científico

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Não precisa ser especialista para perceber que o futebol brasileiro, comparado ao praticado nas principais ligas e torneios europeus, tem um atraso de pelo menos duas gerações. - Foto: Alexandre Vidal / CRF
Falsas soluções surgem e ressurgem para manter o futebol brasileiro distante de um futuro diferente.

Na última quinta (25/02) encerrou-se mais uma edição da série A do campeonato brasileiro ou, nas palavras do estimado jornalista esportivo, Juca Kfouri, o Covidão 2020, com o título conquistado pelo time carioca Clube de Regatas do Flamengo. Muitas questões podem ser debatidas a partir do desenvolvimento e atropelos dessa temporada para além das quatro linhas do campo, como: a relação entre os cartolas e o governo Bolsonaro, as fragilidades dos protocolos sanitários adotados ao longo do ano, a apatia política dos jogadores brasileiros, a desorganização do calendário imposto pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), a qualidade da arbitragem no país, sobretudo, com relação aos usos e abusos do VAR, dentre outras.

Porém, para além de todos esses temas e polêmicas, uma dimensão de fundo fica cada vez mais escancarada. O futebol brasileiro está completamente ultrapassado do ponto de vista histórico, num estágio que poderíamos classificar, parafraseando Friedrich Engels, de futebol utópico. Não é preciso explicar que o comunista inglês não se dedicou ao estudo ou a elaboração de nenhum tratado sobre o esporte em tela, porém, guardadas as devidas proporções e sendo bastante generoso no uso da licença poética, é possível identificarmos pontos de aproximação entre algumas teses fundamentais do texto “Do socialismo utópico ao socialismo científico” com a realidade do futebol nacional.

No interior dos movimentos de trabalhadores em meados do século XIX, eram predominantes ideias e teorias ecléticas que apontavam caminhos para as lutas operárias da época sem o embasamento histórico e científico necessário, e que, obviamente, dificultavam o amadurecimento do proletariado enquanto classe capaz de influir sobre a realidade. Por isso, a urgência de se combater e superar esse socialismo utópico a partir de uma teoria e de uma ação política superior, que incorporasse as determinações históricas em sua totalidade, a análise científica da realidade e o estabelecimento de táticas e estratégias factíveis para o enfrentamento dos desafios conjunturais e estruturais presentes na luta de classes, o que Engels nomeou, didaticamente, de socialismo científico.

Não precisa ser especialista para perceber que o futebol brasileiro, comparado ao praticado nas principais ligas e torneios europeus, tem um atraso de pelo menos duas gerações. O Brasil continua sendo um grande celeiro de craques, mesmo sem uma política séria e consequente de fomento ao esporte em escolas públicas e nas periferias das cidades. As mobilizações estimuladas pelo futebol continuam sendo uma das principais expressões de paixão do povo brasileiro, em particular, da juventude. As diversidades cultural e regional do país, singulares no mundo, são assimiladas de forma criativa pelas torcidas e amantes do futebol, tornando esse esporte o mais democrático e popular.

Mesmo com todo esse potencial, os dirigentes, técnicos e empresários do futebol brasileiro insistem em métodos e atitudes que reproduzem a mediocridade e o arcaísmo. Se nosso futebol continuar sendo conduzido de forma amadora e acéfala, por interesses particulares ou por ignorância, salvo raríssimas exceções, não conseguirá ultrapassar esse estágio utópico, sem planejamento estratégico, refém da cartolagem corrupta, acomodado com partidas indecorosas e esquemas de jogos pré-históricos, mesmo com altíssimos investimentos.

Esse desempenho vergonhoso, com o baixíssimo nível técnico e tático apresentado no brasileirão pela elite do futebol, tem conexão direta com os déficits e crises permanentes na educação brasileira, com a ausência de uma política nacional de ciência e tecnologia sólida e duradoura e, ainda, com o processo de barbarização cultural e ideológica que assistimos no país aprofundados pelo processo acelerado de reprimarização de nossa economia e de milicianização da política.

O futebol científico, insisto, ultrapassa a mera incorporação das tecnologias de ponta, como a neurociência, para melhorar o rendimento e o condicionamento dos atletas, mas estabelece um vínculo orgânico com um projeto educacional que estimule a formação de sujeitos críticos, autônomos e curiosos (talvez futuros jogadores e técnicos), mas também que aproxime as ciências do esporte desenvolvidas nas universidades com o futebol amador e profissional.

Não à toa, importantes clubes brasileiros têm tentado tapar o sol com a peneira, apostando na contração de comissões técnicas estrangeiras, majoritariamente argentinas, que já há algum tempo despertaram para a necessidade dessa transição. Porém, sem uma mudança de rumos mais ampla, soluções como essas apenas amenizarão o problema em alguns times.

Nesse cenário, falsas soluções surgem e ressurgem para manter o futebol brasileiro distante de um futuro diferente. Mecenas, com seus cheques em branco, aparecem com promessas mirabolantes para tirar clubes da lama e da fila por títulos. Quase sempre, após esses casamentos, crises, dívidas e desilusões é o que restam para os torcedores.

Mais recentemente, tem conquistado muito espaço no debate brasileiro, a ideia do Clube Empresa, inclusive com a tramitação de um projeto de lei (PL 5516/2019) de Rodrigo Pacheco (DEM-MG), atual presidente do Senado, que pretende a criação da figura jurídica e organizacional, Sociedade Anônima do Futebol (SAF), em que clubes passariam a ser controlados por investidores, acionistas e especuladores. Essa proposta tem como referência experiências de Portugal, Espanha e Itália que, na verdade, são exemplos fracassados. As possibilidades de falência e a instabilidade do mercado, sem falar dos interesses espúrios de magnatas e lavadores de dinheiro, sobretudo numa economia periférica e dependente, seriam novos dilemas a serem colocados na conta do futebol brasileiro. Além disso, as torcidas teriam um papel ainda mais coadjuvante nas tomadas de decisões e planejamento de seus clubes.


Carol foi denunciada pela procuradoria do STJD por dizer “Fora, Bolsonaro”, ao finalizar uma entrevista ao canal SporTV, após ganhar o bronze em uma partida da etapa de Saquarema (RJ) / Reprodução/ Sportv

As cenas patéticas de importantes personagens do futebol brasileiro batendo selfies e continências ao presidente genocida, enquanto a atleta Carol Solberg, jogadora do vôlei de praia, sofre advertência do Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD), por ter entoando um “Fora Bolsonaro” depois de uma partida, demonstra o quão difícil será sairmos do fundo do poço futebolístico e institucional em que caímos. 

A luta por um projeto de futebol científico, numa perspectiva democrática e plural, em contraponto ao modelo de futebol utópico já enraizado no país, que defende o PL 5516/2019, sob a demagogia da modernização, como a saída para nosso atraso, é urgente. Torcidas, jornalistas esportivos, comentaristas, técnicos, profissionais do esporte e jogadores, comprometidos com a defesa do futebol, enquanto patrimônio e identidade nacional, devem unir forças para resistir aos ataques de velhos e novos personagens que veem o esporte apenas como negócio e privilégio, para em seguida apontar uma saída que, efetivamente, possibilite ao futebol brasileiro desenvolver suas potencialidades.

*Título inspirado no texto “Do socialismo utópico ao socialismo científico”, de Friedrich Engels.

Edição: Francisco Barbosa