Rio Grande do Sul

Saúde em colapso

Com todo o estado sob bandeira preta, gaúchos enfrentam o pior momento da pandemia

Rio Grande do Sul convive com risco altíssimo de infecção; especialista diz que ainda vai piorar muito antes de melhorar

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Alerta: taxa de ocupação dos leitos de UTI se aproxima de 95% em todo o estado - Flávio Dutra/JU

O Rio Grande do Sul vive seu pior momento desde o início da pandemia, com crescimento exponencial de contágio, aumento do percentual dos óbitos e pico de internações em leitos hospitalares. O governo estadual anuncia que, a partir deste sábado (27), todo o território gaúcho ficará em bandeira preta, ou seja, sob risco altíssimo de contágio. Não há possibilidade de flexibilização e foi definido o fim da cogestão com as prefeituras. Comércios e serviços não essenciais ficarão fechados e os demais setores econômicos atuarão com restrições. 

Especialistas ouvidos pelo Brasil de Fato RS são unânimes em reforçar que não existe nenhuma possibilidade de normalidade diante disso. É preciso que tomar medidas duras, uma vez que não se fiscalizou e não houve nenhum cuidado em monitorar as medidas mais simples e mais efetivas. 

“Ainda vai piorar muito antes de melhorar”

“Uma coisa que acho muito importante avisar: ainda vai piorar muito antes de melhorar”, escreveu em sua rede social a epidemiologista Lucia Campos Pellanda. Reitora da Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre (UFCSPA), ela observa que as pessoas vão dizer que “a bandeira preta não funciona”. Mas repara que a bandeira “funciona para a frente sim, mas os cuidados para evitar o caos de agora teriam que ter sido feitos bem antes”.

Em conversa com o Brasil de Fato RS, a epidemiologista reforçou que certamente é o pior momento da pandemia, tanto em indicadores de internação, de transmissão descontrolada, como na velocidade de aumento de casos. “Desde o início, nunca tivemos uma situação nem parecida no Rio Grande do Sul. E o pior, com as pessoas esgotadas, equipes de saúde exaustas e recursos finitos e um comportamento muito mais perigoso da população”, salienta. 

Ao completar um ano da presença do coronavírus no país, a covid-19 vitimou 251.498 pessoas em todo país até sexta-feira (26) à tarde. São mais de 10 milhões de infectados. No Rio Grande do Sul, o número de vítimas fatais supera 12 mil. Em termos de contaminados, o estado atingiu a cifra de 632 mil. É o quarto estado com maior número de mortes no Brasil, segundo dados do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass).


Reitora da Ufcspa, Lucia Pellanda  Acervo pessoal

Colapso no sistema de saúde 

Às 17h e 20 minutos desta sexta-feira (26) a ocupação dos leitos em Unidade de Tratamento Intensivo (UTI), no estado, estava em 94,7%, sendo 2.589 pacientes em 2.734 leitos de UTI. A taxa de ocupação de leitos ultrapassou sua capacidade, registrando 110.4%. O colapso fez com que os leitos do Sistema Único de Saúde (SUS) ocupados se aproximem dos 90%, estando em 89,2%. . 

“Eu nunca olhei o percentual de leitos ocupados porque é uma variável muito frágil. Sempre olhei números absolutos de pessoas internadas e isso está realmente muito superior”, acentua o professor de Infectologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Alexandre Zavascki. Ele continua: “(No caso dos) leitos você muda o denominador, aumenta um leito que não tem condição e não altera o percentual. Mesmo assim está alto, obviamente, mas não me assusta o percentual. Me assusta o número de doentes, número de doentes em UTI”, comenta.
  
A preocupação do epidemiologista tem razão de ser ao vermos o total de pacientes internados com covid-19 na rede estadual. De acordo com a Secretaria Estadual de Saúde (SES), dos pacientes internados nas UTIS, 54,8%, quer dizer, 1.398 estão lá por conta da doença. Por trás desses números, estão homens, mulheres, pais, mães, avós, filhas, filhos, amigos de alguém. 

Negligência e incompetência do Ministério

Para Zavascki, apesar do atraso, o anúncio da bandeira foi fundamental. “Temos que saudar, porque certamente o governador não teve o apoio de boa parte dos prefeitos, que simplesmente parecem não enxergar o colapso do sistema hospitalar que está acontecendo em praticamente todas as cidades do estado do RS”, salienta.

 “Estamos com uma fila enorme de pessoas esperando e já morrendo antes de chegar na UTI. O impacto de óbitos vai ser realmente muito grande. Em algum momento a gente precisava fazer uma restrição bem mais severa na mobilidade e da interação das pessoas. Vamos ver se vamos conseguir implementar na prática essas medidas anunciadas”, expõe. 

Na avaliação do infectologista e consultor da Sociedade Riograndense de Infectologia (SRGI), Ronaldo Hallal, o RS está vivenciando a anunciada derrocada do sistema de saúde, em que fomos conduzidos pelos governos federal, estadual e municipais. Segundo ele, diversos fatores levaram ao quadro atual, o principal deles, opina, foi a ausência de coordenação nacional no enfrentamento à pandemia.

 “O governo federal não apenas se retirou da coordenação, como passou a dificultar as ações de estados e municípios e incentivar aglomerações e abandono do uso de máscaras, atitudes que contrariam absurdamente boas práticas sanitárias”, aponta. Destacou a negligência e incompetência do Ministério da Saúde, até mesmo na área de logística, culminando na perda de prazo de validade de quase 6 milhões de testes de PCR estocados e não utilizados. 

No estado, a taxa média de positividade do teste de PCR é de 33,3%, ou seja, o vírus foi detectado em uma a cada três pessoas que realizaram o teste. Na opinião de Hallal,  desde o início da pandemia, durante apenas uma semana (outubro de 2020), a positividade de PCR ficou abaixo de 20%. 


Alexandre Zavascki / Reprodução/Twitter

Taxa de positividade de 46% no estado

“Neste mês (fevereiro) chegou a 46%, refletindo grande circulação viral e inaceitável taxa de transmissão ao longo do tempo. Já em Porto Alegre, a positividade acumulada dos testes PCR é de 23%, e chegou a 33% neste fevereiro, ainda que pacientes com poucos sintomas não sejam testados mesmo que busquem a rede de serviços”, frisa.

A Organização Mundial de Saúde (OMS) considera taxas de positividade do PCR inferiores a 10% como critério de controle eficiente da circulação viral para reduzir medidas de isolamento social, como o retorno de atividades escolares, entre outras atividades presenciais. 

“Isso traz consequências para a geração de variantes virais, que podem aumentar sua capacidade de transmissão, a gravidade da doença e reduzir a eficácia da vacinação, adverte. “Portanto, uma das consequências de modelos como o adotado pelo Rio Grande do Sul é sua incapacidade de identificar a expansão da circulação viral”, ressalta, pontuando que o Brasil está entre os países que menos realizam testagem e emprega testes rápidos, inadequados para diagnóstico clínico. “Além disso, não foi implementada política de fortalecimento da Atenção Básica para conter a epidemia”, aponta. 

Na visão do infectologista, o estado não apresentou um plano e uma política vigorosa de enfrentamento da pandemia, escolhendo dar ênfase ao monitoramento da disponibilidade de leitos hospitalares como reflexo indireto da circulação viral, criando o Modelo do Distanciamento Controlado (MDC). “Este modelo utiliza dados da ocupação e capacidade de atendimento no sistema de saúde e, por outro lado, relativiza o número de casos em relação aos leitos hospitalares”, analisa. “A expansão da pandemia - continua - para os grupos populacionais que mais se movimentam e aglomeram como os jovens, manteve a grande circulação viral sem acarretar impacto proporcional na ocupação hospitalar ou na mortalidade no período entre dezembro de 2020 e janeiro de 2021, sem sinalizar à sociedade a expansão da pandemia”.

“Temos quer pagar um preço para evitar a catástrofe” 

Conforme aponta Zavascki, quando a epidemia está em uma velocidade muito alta é essencial reduzir rapidamente essa velocidade. É necessário reduzir a mobilidade das pessoas, o contato entre elas.  

De acordo com o epidemiologista, o lockdown salvou muitas vidas, contudo não é a solução definitiva. “Quem fez medidas de restrição severas por um período determinado, para que pudesse diminuir rapidamente a transmissão dos casos teve benefício em salvar vidas (mas) isso não quer dizer que vai ser a solução. Para ele, a solução reside em outras medidas a médio e longo prazo como ampla testagem, rastreio de contactantes, normas de educação para a população, fiscalização das medidas. “Ou seja, temos que tomar medida brusca porque não se fiscalizou, não teve nenhum cuidado em monitorar as medidas mais simples e mais efetivas. Agora temos que pagar um preço para não termos uma grande catástrofe”, opina.

“Porto Alegre adota políticas negacionistas”

Por sua vez, Hallal aponta que a literatura da saúde mostra que, em situações de colapso ou mesmo antes, o lockdown é a saída mais eficaz e com impacto em curto prazo. Contudo, salienta que seria preciso condições objetivas e materiais para que a população permanecesse isolada por duas semanas, funcionado somente serviços essenciais. “As experiências da Nova Zelândia, China, Itália, Holanda, Espanha ou França deveriam ser utilizadas, mas o compromisso destes governos (municipais, estaduais e federal do  Brasil) não é com a saúde da população”, critica. 

 Para ele, no caso brasileiro, os governos federal, estaduais e municipais seguem atendendo interesses empresariais, embora análises demonstrem que medidas mais restritivas reduzam o impacto econômico da pandemia. “Vivemos a prioridade monetária imediatista que ocasiona a ausência de possibilidades para os grupos desfavorecidos”, complementa, citando como exemplo o caso da capital gaúcha. “Porto Alegre adota políticas negacionistas da ciência, como distribuição de medicamentos ineficazes e incentivando a ampla circulação ao longo do dia em atividades não essenciais. Estas são as razões para que tenhamos chegado ao colapso”, interpreta. 


Ronaldo Hallal / Arquivo Pessoal

“Contribua com sua vida para salvar a economia”

Porto Alegre registra neste momento 97.99% dos leitos de UTI ocupados. Dos 827 pacientes internados em UTIs, 431 estão com covid-19 e 50 com suspeita. Mais 121 com covid-19 confirmada estão nas salas de emergência aguardando UTIs. É o maior índice registrado até o momento.

Mesmo discordando da decisão sobre as bandeiras, o prefeito Sebastião Melo (MDB), disse que fará com que as medidas sejam cumpridas. Contudo, nenhuma medida de restrição ou fechamento de atividade econômica foi anunciada. “Nós vamos seguir trabalhando para abrir leitos e salvar vidas. Mas, não podemos descuidar da falta de renda e emprego, que está sufocando Porto Alegre”, disse. Além disso, Melo fez um vídeo pedindo apoio à população para ajudar no combate a pandemia em prol da economia. “Contribua com sua família, sua cidade, sua vida, para que a gente salve a economia do município de Porto Alegre”, apelou no vídeo postado nas redes sociais. 

Crianças expostas em aulas presenciais sob bandeira preta 

Mesmo com o anúncio da bandeira preta e das restrições impostas, as aulas presenciais da educação infantil e do 1º e 2º ano do ensino fundamental estão mantidas. Especialistas advertem que não existe nenhuma experiência no mundo que mostre o retorno seguro com transmissão descontrolada como estamos. “Em bandeira preta, a situação é gravíssima. Não é momento de retornar. Pelo menos, pelos próximos 14 dias acredito que deveria haver um cuidado especial”, afirma Lucia Pellanda. 

De acordo com Zavascki, é uma irresponsabilidade voltar, e eventualmente expor crianças e professores a uma situação que pode estar sendo mais grave em decorrência de uma disseminação de uma variante do vírus. “Não há nenhum sentido de retorno neste momento. As aulas são importantes. É o momento de retorno que não tem nenhum cabimento”, reforça.

Para Hallal, a volta só deveria ocorrer com taxas de transmissão inferiores a 10% e com redução de outras atividades para promover equilíbrio na circulação de pessoas até que tenhamos cobertura vacinal. “Ainda assim, é preciso que todas as escolas possuam estrutura e recursos para prevenção e que professores e funcionários estejam imunizados”, pondera.

“Não tem como ignorar o vírus, ele não vai embora sozinho”

Segundo o Comitê de Dados, o índice de isolamento no RS registrou, no dia 19 de fevereiro, o menor índice desde o início da pandemia. No início da pandemia, em 2020, o Rio Grande do Sul chegou a ter uma média semanal de isolamento de quase 60%. Agora, porém, despencou para 28,8%, justamente quanto seria necessário alcançar 70% de isolamento. 

Indagada se o prenúncio e o início da vacinação teriam contribuído para esse relaxamento, Lucia Pellanda, avalia que os dois momentos podem ter transmitido uma sensação de "agora a pandemia vai acabar", somada à exaustão das pessoas. “É um momento muito crítico, e é importante focar nas soluções, precisamos de uma campanha muito intensiva de comunicação com participação de todos os setores para engajar a população. Para a epidemiologista, parte das pessoas não entendeu ainda o quanto a situação é crítica e que uma tragédia de grandes proporções vai acontecer se não houver uma mudança de comportamento. “Não existe nenhuma possibilidade de normalidade diante disso, não  tem como ignorar o vírus. Ele não vai embora sozinho”, afirma. 

 Zavascki também destaca o fator comunicação, bastante falho na pandemia. “O governo federal nunca fez nada. Mas mesmo nos governos estaduais e prefeituras, ninguém nunca investiu na comunicação para explicar que realmente a vacina vai diminuir muito a doença. Enquanto for aplicada e tiver vírus circulando vai continuar tendo risco porque não são vacinas 100% eficazes”, sublinha. 

“Tem que mostrar os hospitais já que os números não chocam mais”

Sobre como convencer a população sobre a gravidade do momento, o epidemiologista desabafa não saber mais o que fazer. “Talvez fosse importante esse trabalho de mostrar as unidades de saúde, o que a imprensa vem fazendo, mostrar a realidade. As pessoas só vem os números e os números não chocam mais. Não alertam, não despertam, não apresentam para a pessoa o real problema. Tem que mostrar os hospitais, as unidades de pronto atendimento”, propõe. 

Hallal chama a atenção para a atitude tomada pelos governos que transferem a responsabilidade pela prevenção para a população, mesmo sem fornecer insumos ou uma política de comunicação adequada e capilarizada. “Transferem às pessoas a culpa pela transmissão. É preciso oferecer possibilidades de lazer em isolamento, o que não existe. Conflitos desta ordem ocorriam antes da pandemia, como por exemplo de jovens da periferia aglomerando-se na Cidade Baixa, em Porto Alegre. Vivem, entre outras coisas, o preço do abandono destas comunidades”, critica. “Além disso, parte dos governantes incentivam aglomerações sem máscaras e outra parte aceita a carga ao sistema e as mortes, como naturais, minimizando a pandemia”, pontua. 

“O grande maestro do desconcerto é o presidente do Brasil” 

No entender de Zavascki, a responsabilidade é dos governantes, mas ressalva também o papel da sociedade como um todo. “ Obviamente o grande responsável, o grande maestro deste desconcerto é o presidente do Brasil. Mas a gente tem que pensar em visão de sociedade. Não houve grandes movimentos da população no sentido de cobrar os seus governantes das medidas, houve uma certa adaptação ao negacionismo. E uma pequena parcela, tentando heroicamente resistir e se cuidando, mas sem muita força no poder decisório”, comenta.  

Na avaliação de Hallal, são pessoas e grupos que estimulam aglomerações, desestimulam uso de máscaras e promovem tratamentos ineficazes. Assim como os governos que toleram a grande circulação viral e as mortes, que não oferecem recursos às pessoas, “priorizando aspectos políticos, econômicos e eleitorais que nos conduziram ao colapso”.


:: Clique aqui para receber notícias do Brasil de Fato RS no seu Whatsapp ::

SEJA UM AMIGO DO BRASIL DE FATO RS

Você já percebeu que o Brasil de Fato RS disponibiliza todas as notícias gratuitamente? Não cobramos nenhum tipo de assinatura de nossos leitores, pois compreendemos que a democratização dos meios de comunicação é fundamental para uma sociedade mais justa.

Precisamos do seu apoio para seguir adiante com o debate de ideias, clique aqui e contribua.

Edição: Ayrton Centeno