Paraná

RACISMO ESTRUTURAL

Em Londrina, mulher denuncia racismo em unidade da Leroy Merlin

“Eu fiquei com medo de os seguranças irem para cima dele, porque eles estavam todos alvoroçados”

Londrina (PR) |
Um Boletim de Ocorrência também foi registrado contra a Leroy Merlin por injúria racial - Murilo Pajolla

A zeladora Patrícia Alves de Souza, 33 anos, foi uma das milhares de pessoas que se revoltaram com o assassinato de um homem dentro de um supermercado em Porto Alegre em novembro do ano passado. Ela não imaginava que logo se tornaria vítima do mesmo racismo que aterroriza a população negra e periférica brasileira.

Ela vive com o marido e os filhos no Jardim Nova Esperança, um bairro pobre no extremo sul de Londrina. No último dia 31 de dezembro, perto do meio-dia, saíram de carro para comprar material de construção, já que a casa da família estava em reforma. O destino era a Leroy Merlin, localizada ao lado de um shopping center na Zona Leste.

O filho dela, Welington Aparecido de Souza Gallo de 18 anos, não se interessou pelas compras e preferiu ficar sozinho no estacionamento, distraindo-se com o celular. Enquanto a família percorria a loja, a presença do jovem negro em meio à maioria de clientes brancos despertava a atenção de funcionários da segurança. Foi o primeiro de dois episódios de intimidação vividos pela família no mesmo estabelecimento.

Wellington relatou ter sido surpreendido pelos agentes, que tentavam expulsá-lo a gritos sob a alegação de que ele era um morador de rua e estaria cometendo atitudes ilícitas. “Meu filho estava dentro do carro. Eles bateram na janela e tiraram ele. Humilharam ele muito, falavam para ele assim: ‘Vai, vaza, cinco minutos’. Não deixavam a gente explicar em momento nenhum o que estava acontecendo’’, conta Patrícia.

Mesmo com medo, o jovem não obedeceu. “Eu não sou mendigo, eu não estava roubando. Minha mãe está lá dentro”, repetia. Ele telefonou para a família, que o encontrou acuado por cinco seguranças. Patrícia temeu pela integridade física do filho. “Eu fiquei com medo de os seguranças irem para cima dele, porque eles estavam todos alvoroçados.”

A indignação da mãe cresceu ao perceber que os agentes se referiam a Welington com um substantivo usado comumente pelas forças de segurança para designar jovens negros suspeitos de crimes. “Eles chamavam meu filho de ‘elemento’, diziam que eles só iam sair de lá a hora que o ‘elemento’ saísse e que as câmeras mostrassem que ele estava mexendo no carro”.

A essa altura, a discussão atraía a atenção de clientes e funcionários. “Foi muito vergonhoso, estava todo mundo olhando, meu filho muito apavorado. Eu falava para eles que eu não admitia ser tratada daquele jeito. Ele [Welington] se assustou porque a gente está vendo muitos casos disso, seguranças até matando, né? Então ele se apavorou, e saímos de lá”.

A família optou por deixar a loja com o objetivo de preservar o filho e evitar que a confusão se agravasse. Mas antes fez questão de concluir a compra, como um ponto de honra. “Eu estava lá como cliente, assim como os outros”, diz Patrícia. Como a compra era grande, foi impossível levar toda a mercadoria de uma vez. O restante seria retirado dois dias depois, quando Patrícia teria de provar, mais uma vez, que não é uma criminosa.

Nova humilhação

Em 2 de janeiro, a família retornou à Leroy Merlin com o propósito de buscar as compras, que já estavam pagas. Ainda abalado, Welington preferiu ficar em casa. “Aí foi outra humilhação, outra discriminação mesmo”, lamenta Patrícia.

Funcionários da loja teriam insistido que os produtos adquiridos pela família no dia 31 de dezembro haviam sido retirados na mesma data. “Aí eu comecei a ficar nervosa e falei: já não bastava o que vocês fizeram com o meu filho, agora mais essa humilhação? Eu paguei, eu quero meu piso, eu quero sair daqui”, desesperou-se.

De acordo com Patrícia, uma das seguranças que havia abordado Welington dois dias antes passou a acompanhar o atendimento. “Ela [a segurança] perguntou onde a gente tinha parado o carro, que cor era o carro, que roupa a gente estava usando. Eles alegavam a todo momento que a gente tinha pegado a mercadoria”.

A segunda visita à loja durou cerca de 50 minutos. “Todo mundo que ia buscar a mercadoria saía mais rápido. Eu estava com a nota fiscal, apresentei todas as notas. Eles estavam querendo dizer o quê? Que a gente voltou lá para roubar de novo?”

A zeladora afirma que só teve acesso aos produtos após funcionários checarem imagens de câmeras de segurança e atestarem que ela não havia, de fato, retirado a totalidade das compras no dia 31 de dezembro.

A posição da Leroy Merlin

A reportagem procurou a Leroy Merlin e descreveu em detalhes o relato da família. Em uma nota sucinta, a empresa afirmou que a equipe agiu motivada por uma denúncia de um cliente sobre uma “possível ocorrência”, sem informar se Wellington representava alguma ameaça à segurança. Leia o comunicado na íntegra:

“A empresa esclarece que após a denúncia de um cliente, sua equipe de segurança se dirigiu ao estacionamento para verificar uma possível ocorrência. Toda a abordagem foi registrada pelas câmeras de segurança, que estão à disposição das autoridades.
Nossos colaboradores recebem treinamento constante com o intuito de oferecer sempre o melhor atendimento. Gostaríamos de ressaltar ainda que a segurança de nossos clientes é uma prioridade e que coibimos firmemente qualquer forma de desrespeito.”

 

Patrícia, por sua vez, alega que não teve acesso às imagens do circuito interno, que segundo ela provariam a truculência da abordagem.

Os advogados que representam a zeladora, Caio Jardini e Leonardo Bersellini Teixeira, também tentam obter o conteúdo. Segundo Jardini, já foram apresentadas pelo menos sete notificações extrajudiciais.

“Em nenhum momento apresentaram esse conteúdo. É um direito de qualquer vítima ter esclarecido os pontos que ocorreram”, afirma.

Agora, as imagens são requeridas na Justiça, no âmbito de uma ação por danos morais. Um Boletim de Ocorrência também foi registrado contra a Leroy Merlin por injúria racial.

O trauma do racismo

Líder comunitária no bairro onde mora, Patrícia está acostumada a se mobilizar. Orgulhosa da criação dada ao filho, ela observa com tristeza sua mudança de comportamento depois do episódio traumático.

“O que eu ensinei para o meu filho foi jamais mexer nas coisas de ninguém. Ele vende sorvetes para ter o dinheiro próprio. Meu filho não está bem, não sai de casa, não quer ir mais no supermercado, de medo. Ele vai na rua na frente de casa, fica cinco minutos e corre para o quarto. Um adolescente que está começando a vida não tinha que ter sido tratado dessa maneira”, lamenta.

Ao procurar a Justiça e a imprensa, a expectativa é ajudar a colocar um basta nos episódios de racismo.

“A gente tem esperança que a justiça seja feita. Não pode ficar ocorrendo isso tanto no Brasil como no mundo. Vi muitos (casos de racismo) na televisão e fiquei chocada, no entanto isso ainda não havia acontecido com a minha família. Eu acho que teve racismo, preconceito e discriminação.”

Edição: Pedro Carrano