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Artigo | A sociedade brasileira e seu lugar

A pandemia pode ser um momento de rompimento e de poder se enxergar como sociedade, com toda sua beleza e alegria

Porto Alegre | BdF RS |
A beleza da expressão brasileira pode ser encontrada nas festas, com sua música, dança e poesia - Foto: Secult-CE

A pandemia pode revelar o lugar da sociedade brasileira?

Desde o século 15, os territórios latino-americanos são invadidos com a expropriação de seus espaços para a extração de recursos naturais bem como para a apropriação dos conhecimentos, com destruição de seus povos e culturas. Impõem-se teorias e modelos econômicos, instituições, leis e regras e, por decorrência, dívidas infindáveis, num processo de dominação sem fim.

E, para dominar, divide-se. Podem-se citar pelo menos quatro pontos de divisões que fundamentam o estado de destruição e desigualdade em que se encontra nosso continente.

Primeiro, a divisão entre humanidade e natureza. Retira-se a natureza como bem comum dos povos dos lugares e separa-se a humanidade do restante da natureza. Segundo, a divisão entre ricos e pobres, pela criação da noção de pobreza, de desenvolvimento e subdesenvolvimento. Passa-se a distinguir o hemisfério entre norte e sul, com países ditos ricos desenvolvidos ao norte e países pobres e subdesenvolvidos ao sul. Terceiro, a divisão entre modernos e atrasados, sendo os modernos os que desenvolvem tecnologias. Por essa, cria-se até a distinção entre primeiro, segundo e terceiro mundo. Os atrasados estão sempre no terceiro mundo. Quarto, a divisão entre os grupos, pela criação de noções de raça, gênero e região, alfabetizados e não alfabetizados, trabalhadores e vagabundos. Com essas noções distinguem-se e, se impõe, uma estrutura de poder local que gerencie esses povos, atrasados e divididos sob o comando de um pensamento linear eurocêntrico e euroestadunidense.

Esse pensamento invadiu as culturas locais por meio dos sistemas de comunicação, tanto escrito como audiovisual. Os argumentos positivistas e lineares adquirem corpo dentro das publicações, da literatura, dos currículos escolares, como em todo o processo de formação notadamente dos quadros dirigentes e das classes médias. Toma corpo também pela divisão do conhecimento, separando corpo e alma. E, entre conhecimento tradicional e o moderno científico. Nessa distinção, esses grupos e povos que possuem conhecimentos tradicionais bem como recursos naturais abundantes, do hemisfério sul passam a ser os sub, os do Terceiro Mundo, os pobres, não desenvolvidos e, também endividados.

No caso brasileiro, os mitos, os discursos e os argumentos dessas divisões alicerçam o processo de dominação e de subjugação. E, na pandemia se constatou a inflação dessas divisões. Porque elas produziram contaminações, doenças, mortes, assassinatos, como desmatamentos, incêndios, invasões pelas big fazendas e as corporações da mineração, atingindo brutalmente os grupos divididos de maneiras totalmente diferentes. Por outro lado, acenderam-se luzes da solidariedade de grupos como os movimentos sociais. O momento pode ser uma oportunidade de quebrar o sentimento de sub e terceiro mundo e se dar conta de que o país é um território. E, que pode ser um momento de rompimento e de poder se enxergar como sociedade.

E, para desanuviar os olhares, a sociedade brasileira precisa assumir um modo de viver com um pensamento que tem seu lugar dentro do universo latino-americano. Limpar os olhos de todos esses resíduos para ver. Para ver a sociedade brasileira como um lugar do bem viver. Ver o território que expressa um lugar privilegiado. E, que estão invisibilizados. A beleza da expressão brasileira pode ser encontrada nas festas, com sua música, dança e poesia. Há um poder de expressão da alegria do viver, que está nos passos, nos sons, nos cantos dos festejos, das rodas, das gafieiras, dos pagodes, do xaxado, do frevo, do samba, do baião, das festas de São João, do boi bumbá, do Círio de Nazaré, das festas do Divino, das congadas, do maracatu, do carimbó, do jongo, do maxixe, da chimarrita, do pau de fitas, e nos carnavais. Exercer a antropofagia tão elaborada pelo movimento modernista.

Há o poder da criação na poesia, nos sons tirados dos diversos instrumentos, no baião, no samba, no frevo, no samba rock, como na transformação das dores em versos e prosas, em cantos e em danças. A riqueza da expressão está presente também nas representações. Coloca-se novos significados ao criar. Os sabores da culinária ao longo do território, transformando recursos naturais, frutas, legumes, folhas, raízes, em outros aromas e cores, conforme lugar e estação. Na transformação, a criação e os segredos, desde o pudim de tapioca, a paçoca, o curau, a tapioca, a canjica, o pé de moleque, o pão de queijo. E, também os doces de buriti, de coco, de macaxeira, de jambu, de jaca, de graviola, de pitomba, de pitanga, de jambo, de cajá, de seriguela de acerola, de goiaba, de jerimum, açaí, de tamarindo, de pitomba, de cupuaçu, de castanhas, de pequi, únicas em cada lugar. Essa criação também se nota nas moquecas variadas, de peixes, legumes, vegetais diversos, nos pratos com carne de sol, no pato no tucupi, no tacacá, no feijão tropeiro, no arroz carreteiro, no acarajé, no abará, nos bobós, no caruru, no xinxim de galinha, no barreado, no cuxá, na buchada de bode, no mocotó, no sarapatel, no baião de dois, na dobradinha, na caldeirada de tucunaré.

Os grupos e povos tradicionais produzem seus modos de viver embalados pela diversidade das riquezas naturais usufruindo das paisagens, das florestas, das matas, Atlântica, Cerrado, caatingas como das do Rio Negro, do Jalapão, do Delta do Parnaíba, das chapadas ou de Maraú. Seguem os ciclos da vida e a celebram. O modo de viver segue o movimento da natureza, no caminhar, no olhar e absorver o que ela traz a cada momento com os olhos limpos. O conhecimento como ser vivente se mescla ao dos demais seres. Ver a natureza que brota pelos espaços e modos de viver dos grupos e povos que dão conta do conhecimento dos seres viventes, das plantas, das matas, dos rios, que afirmam diariamente a produção de suas culturas conforme tecem as formas de suas sobrevivências.

Abrir a discussão do processo contínuo de dominação e colocar luzes sobre as estratégias desenvolvidas, que foram a de colonização do pensamento, como isso vem sendo expostos por alguns pensadores há algumas décadas, tais como Acosta de Samper (1869), Furtado (1959/1970), Casanova (1969), Martelarte (1970); Castillo (1970), Galeano (1970/78), Ianni (1976), Fernandes (1973/1981), Quijano (1988), dentre outros.

Referências

Acosta de Samper, S. Novelas y cuadros de la vida sudamericana, 1869

Casanova, P. G. Sociologia de la explotacion. Mexico: Siglo XXI, 1969.

Fernandes, F. (1973/1981). Capitalismo dependente e classes sociais na America Latina. São Paulo: Zahar.

Furtado, C. (1970/1996). O mito do desenvolvimento econômico. Rio de Janeiro: Paz e Terra.

Galeano, E. (1970/1978/2014). As veias abertas da America Latina. Porto Alegre: L&PM/ São Paulo: Paz e Terra.

Ianni, O.  (1976), Imperialismo e cultura. São Paulo: Brasiliense.

Martelarte, A.; Castillo, C.; Castillo, L. (1970). La ideologia de la dominação en una sociedad dependiente. Buenos Aires: Signos.

Quijano, A. (1988). Modernidad, identidade y utopia em America Latina. Lima: Sociedad y politica.

* Socióloga

 


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Edição: Katia Marko