Rio Grande do Sul

Dança

Flamenco: para além de gesto, uma perspectiva teórica e poética

A artista, pesquisadora e docente gaúcha Daniele Zill lança, nesta sexta-feira (18), seu livro Gesto Flamenco

Brasil de Fato | Porto Alegre |
"O flamenco sempre vai ser o meu sotaque, que é onde eu consigo manusear a minha expressão da melhor maneira, ou a forma como me faço compreender" - Clara Assenato

“O Gesto Flamenco é um somatório, uma edificação, formada por modulações de tônus e ancestralidade (inventividade e tradição), treinamento corporal e atravessamentos afetivos (técnica e temperamento), especificidades artísticas e processos colaborativos (aparato técnico e processos criativos). São elementos ou estruturas que, apesar do aparente antagonismo, estão fortemente agregadas, formando o que nomeei de corporeidade flamenca, na qual o Gesto Flamenco está apoiado.”

Assim a artista, docente e pesquisadora Daniele Zill descreve seu livro inédito Gesto Flamenco, lançado pela pela Edições FUNARTE, um estudo do gesto na especificidade da linguagem flamenca. Mestra em Artes Cênicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), desde 2013 se dedica à difusão e à pesquisa dessa linguagem artística. A obra é resultado de um estudo profundo, desenvolvido a partir da experiência e da pesquisa. Além disso cria um espaço de registro sobre a história dos 20 anos de atividades do coletivo Del Puerto, de Porto Alegre, do qual Danielle faz parte.  

Movida por compreender o flamenco como fenômeno cultural e situando esta linguagem artística na contemporaneidade, a artista estabelece um recorte através da análise do espetáculo Las Cuatro Esquinas, um dos maiores projetos da história do coletivo Del Puerto desde sua fundação em 1999. Durante os três anos em que esteve em cartaz, a montagem foi premiada com oito troféus do Prêmio Açorianos de Dança 2012 e circulou nacionalmente através do edital Klauss Vianna em 2015.

O lançamento acontece nesta sexta-feira (18), às 17 horas, e contará com um bate-papo entre a autora, Fabiano Carneiro (coordenador de Dança da Funarte) e João Maurício Moreira (gerente da Edições Funarte) no canal da Funarte no Youtube.

A obra pode ser adquirida pelo e-mail da Livraria Mário de Andrade.

O Brasil de Fato RS conversou com Daniele Zill sobre sua trajetória no flamenco. “É um sonho realizado principalmente neste ano pandêmico, cheio de restrições de A a Z, com tantas incongruências que a gente vê aí, com condutas oficiais que a gente preferia que não fossem desse jeito. Gostaríamos de estar mais protegidos e confiando mais na conduta pública. Mediante a isso eu vejo que publicar um livro neste ano e concretizar é realmente significativo”.  

Abaixo, a entrevista completa:

Brasil de Fato RS - Gostaria que tu nos falasse um pouco da tua trajetória, teu encontro com o Flamenco?

Daniele Zill - Minha trajetória nas linguagens artísticas começa bem cedo, com cinco anos, quando eu comecei a estudar música lá em Erechim (RS), na escola municipal de Belas Artes Osvaldo Engel. Nessa escola eu fiz a formação conservatorial em piano clássico, fiz também a formação em história da música, teoria solfejo e harmonia. Acho que essa foi uma grande porta para as linguagens artísticas de modo geral, porque ali eu entrava em contato com muitas outras modalidades. 

Eu me lembro claramente nas atividades de final de ano, nas atividades da escola, que era exclusivamente de Belas Artes, estar envolvida sempre com as demais atividades, com a formulação do programa. Eu adorava estar envolvida com a produção desde aquela época. Começou aí.

Lembro também muito claramente da minha mãe tentado me matricular em uma aula de flamenco lá. Mas a professora. na época, lá pelos anos 80, disse que flamenco não era coisa para criança, veja o quanto ela estava equivocada, mas enfim ela tinha outra opinião. Pelo contrário, na minha opinião qualquer linguagem artística introduzida desde a infância, com a sua potencialidade a criança vai ter sempre uma maneira de observar e ver aquilo diferente da do adulto. Está aí o espetáculo Flamenco Imaginário para contrariar essa regra. 

Com a minha vinda para Porto Alegre pude concretizar essa vontade de me aproximar do flamenco, que acho que foi plantada um pouco pela minha mãe. E aqui, antes do flamenco, tive contato com a dança do ventre, dança contemporânea, e vim a conhecer o flamenco mais de perto e nunca mais me distanciei.   

Desse encontro brotou uma amizade muito frutífera, muito bonita com a Andrea Del Puerto, que foi a idealizadora do Coletivo Del Puerto. Infelizmente, com a partida dela em 2007, eu recebi essa herança cultural. Eu e mais quatro sócias que na época fazíamos parte da administração desse coletivo assumimos. Atualmente estamos à frente dele eu e a Juliana Prestes, com mais alguns colaboradores: Graziela Silveira, Juliana Kersting, Giovana Capeletti, entre outras pessoas que são colaboradores esporádicos, mas que são muito importantes para essa trajetória também. 

Dentro disso é vida que surgiu, dentro desse flamenco todo. A pesquisa que eu consegui desenvolver dentro do mestrado em Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) foi a primeira pesquisa em Artes Cênicas ligadas ao flamenco. Junto comigo também pesquisou, nesse mesmo ano, em 2015, a Sílvia Canarim, e posteriormente a Juliana Kersting. Então já são três pesquisas específicas, na linguagem flamenca dentro dos PPGs, no Instituto de Artes aqui em Porto Alegre, o que me deixa muito feliz.


"Eu levanto essa bandeira com força. Flamenco é linguagem artística" / Carlos Sillero

BdFRS - O que o flamenco significa para ti? 

Daniele - O flamenco para mim, na prática, é meu trabalho. É de onde pago meus boletos, de onde tiro meu sustento, é minha escolha exclusiva desde 2012, quando eu deixei a carreira de fisioterapeuta que eu levava concomitantemente com a de artista, produtora, enfim tudo que envolve o coletivo Del Puerto, que é docência, produção, criação. 

É a língua que eu falo, é através dessa linguagem artística que eu me comunico, o meu movimento é flamenco, meu sotaque é flamenco. Eu posso frequentar outras linguagens, assim como eu tenho feito há alguns anos, passando pela interpretação, pela performance. Mas o flamenco sempre vai ser o meu sotaque, que é onde eu consigo manusear a minha expressão da melhor maneira, ou a forma como me faço compreender. 

Também é, hoje em dia, uma bandeira que eu carrego por achar que essa é uma linguagem artística e não um localizador regional. Flamenco hoje é praticado no mundo inteiro. Assim como balé há anos atrás foi regional, o balé francês, o balé russo, balé cubano, hoje ele é referido como a escola russa, a escola francesa, a escola cubana, e ele é praticado no mundo inteiro. Claro que existe um longo caminho a ser percorrido, mas ele já é concreto em alguns lugares. Eu tive a oportunidade de levar minha pesquisa para o Festival Internacional de Albuquerque, no estado de Novo México, nos Estados Unidos, ano passado; e lá, na Universidade Federal, onde acontece esse festival, o flamenco é uma disciplina do curso em formação em dança. 

Quem sabe eu esteja abrindo um caminho para ser um acontecimento também aqui no Brasil, como nos EUA, já que aqui também o flamenco é praticado de norte a sul. Prova disso foi presenciada por nós (Companhia Del Puerto), quando em 2015 levamos o espetáculo "As Cuatro esquinas", que é o objeto da pesquisa do livro Gesto Flamenco, para Manaus, por exemplo. Com medo de que não tivesse muita aceitação, ou que não fosse ter uma recepção calorosa do público, tivemos duas sessões lotadas, no teatro Amazonas. Uma das emoções mais intensas da minha vida.

Ou seja, o público quer arte, na medida que você oferece, ela é recebida. Quando se oferece isso a uma criança dentro de um sistema de docência, público ou privada, ela absorve isso, transforma essa informação, não importa para ela de onde vem aquela dança, aquela maneira de interpretar aquela música, ela simplesmente vivência essa experiência. Eu levanto essa bandeira com força. Flamenco é linguagem artística. 

BdFRS - Falando sobre linguagem, há ainda o aspecto social da dança. Como tu vês isso? 

Daniele - Vejo como fundamental o caráter da docência como um viés de cidadania, de empoderamento, e de quanto a formação, seja ela amadora ou profissional em arte, nos concede uma opção de sermos cidadãos pensantes, de termos capacidade de refletir, de opinar o quanto isso qualifica a nossa capacidade de pensar e de ser dentro de uma sociedade. Como diz Caetano, “como é bom tocar um instrumento”, e eu acrescentaria: como é bom a gente poder dançar, como é bom a gente poder ler um bom livro, poesia, poder escutar música. Como é bom poder ter acesso ao teatro, aos clássicos ou às novidades, às performances, enfim. Acho que isso é fundamental para o bem-estar social, o bem-estar de uma maneira ampla. 

Acho também que Porto Alegre é um polo incrível de difusão e ensino da linguagem flamenca. São muitas as escolas aqui, são diversos os artistas importantes que continuam em Porto Alegre, ou que saíram daqui para fazer sucesso no mundo e são conhecidos e reconhecidos. Não quero citar nomes para não esquecer de ninguém e não ser injusta, mas eu sou muito orgulhosa desse local aqui, onde eu consegui desenvolver o meu trabalho em flamenco. 

A importância também que significa a prática da atividade física e lúdica para as alunas e alunos que consomem essa aula semanal, regular, lá dentro do seu cronograma, o quanto isso trouxe saúde para as mulheres, principalmente, que é o nosso carro chefe. E de anos para cá eu vejo um público mais velho que se permitiu a ter acesso a essa dança que é tão potente, que dá recursos tão interessantes, corporais, de descoberta do próprio corpo, com coragem de fazer as aulas e enfrentar qualquer tipo de julgamento. 

Meu namorado, por exemplo, também é praticante de flamenco, por paixão, o que ainda é um bloqueio, acho, para os homens aqui no RS. Infelizmente tem poucos homens praticando, quiçá, por uma tendência mais machista, o que é uma bobagem. 

Enfim, o flamenco é super democrático, cabem todos os tipos de pessoas, de corpos, de idades, o flamenco é para todos. Assim como o livro Gesto Flamenco também é para todos porque não precisa ser uma pessoa aficionada ou envolvida com a prática, aluno ou professor, professora, para ler o livro. É um livro que traz uma linguagem acessível. Ele foi revisado justamente para sair da linguagem acadêmica e ter uma linguagem um pouco mais coloquial, mas não menos formal em relação à pesquisa que foi feita. 

Eu costumo dividir em três partes. Uma primeira que é a respeito do memorial, um resgate da Del Puerto, da história da Del Puerto, pouco antes da Del Puerto, trazendo informações desses profissionais que falei anteriormente, que fizeram o flamenco em Porto Alegre. Uma segunda parte que fala da história do flamenco no mundo, política, história, paixão, cultura, linguagem. Um pouco da minha opinião em relação a isso. E a terceira parte que fala sobre o gesto flamenco. Na especificidade é um assunto bem pesquisado na área das artes cênicas, na área da fisiologia do movimento, isso caiu como uma luva junto à minha formação como fisioterapeuta. Porque eu fiz uma análise de todo o espetáculo, gesto por gesto, movimento por movimento, encontrei algumas repetições, algumas cristalizações. Somado com os vieses teóricos que eu usei para me apoiar, cheguei a algumas conclusões. 

É um sonho realizado principalmente neste ano pandêmico, cheio de restrições de A a Z, com tantas incongruências que a gente vê ai, com condutas oficiais que a gente preferia que não fossem desse jeito. Gostaríamos de estar mais protegidos e confiando mais na conduta pública. Mediante a isso eu vejo que publicar um livro neste ano e concretizar é realmente significativo.  


Lançamento acontece nesta sexta-feira (18), às 17h / Divulgação

Sobre a autora: 

Daniele Zill é artista e pesquisadora, multicolaboradora do coletivo Del Puerto desde 1999, data de sua fundação pela bailarina Andrea Del Puerto. Desde 2013 a artista também se dedica à difusão e à pesquisa de linguagem flamenca no meio acadêmico. Soma-se ao flamenco a sua formação em música e a graduação em fisioterapia, experiências que foram fundamentais para a realização da pesquisa intitulada "Corpo Del Puerto: investigação do gesto flamenco no espetáculo Las Cuatro Esquinas". A pesquisa foi desenvolvida no Mestrado do Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas da UFRGS (IA/DAD), entre os anos de 2015 e 2017, e o manuscrito de caráter inédito recebeu a nota máxima e recomendações de publicação pela banca examinadora, que agora a autora publica no livro Gesto Flamenco.

O Coletivo Del Puerto foi fundado em 1999 e desde então realiza um intenso e continuado trabalho de pesquisa técnica, expressiva e histórico-cultural que envolve a linguagem Flamenca. A companhia já circulou por todo o país com suas montagens, recebeu prêmios e indicações, entre eles troféus Açorianos de Dança em 2008, 2012, 2014 e 2016, o Prêmio Funarte Klauss Vianna 2013 (circulação de espetáculos), o Prêmio de Pesquisa em Artes Cênicas do Teatro de Arena em 2015 e o Prêmio FAC Pró-Cultura RS 2017 #juntospelacultura. Atualmente, a Companhia está em circulação com o espetáculo para crianças “Flamenco Imaginário”, ganhador em várias categorias dos prêmios Tibicuera de Teatro e Açorianos de Dança no ano de 2016.

* Com informações da Assessoria de Imprensa


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Edição: Marcelo Ferreira