Rio Grande do Sul

OPINIÃO

Artigo | Estado, neoliberalismo e lutas sociais na América Latina

Contexto internacional coloca a América Latina como palco de disputas geopolíticas que provocam acirramento de classes

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Após escalada neoliberal no continente, protestos e conquistas como a Convenção Constitucional no Chile são exemplos da rejeição popular às políticas neoliberais - Pedro Ugarte / AFP

Diante das recentes notícias que vêm do nosso continente latino-americana, como a vitória de Luís Arce (MAS-IPSP) na Bolívia, um ano após um violento golpe contra o governo de Evo Morales (MAS-IPSP), e também a aprovação em plebiscito para a convocação de uma Convenção Constitucional no Chile, após massivas manifestações que tomaram o país no ano de 2019, buscamos trazer aqui, brevemente, alguns elementos que contribuem para a compreensão e interpretação da conjuntura regional, a partir da análise da implementação, das modificações e das crises do neoliberalismo na América Latina. O objetivo é refletir criticamente acerca do momento presente, em termos políticos e econômicos, pelo qual atravessa o continente.

Dentre os diversos entendimentos acerca da questão neoliberal, destacamos aquele que entende o neoliberalismo como uma etapa do desenvolvimento capitalista decorrente da crise estrutural da década de 1970. Essa etapa se caracteriza pela proeminência do capital financeiro (fração hegemônica das classes capitalistas) e por um ideário concebido, no pós-1930, em oposição ao bloco socialista, assim como à ideologia referente ao Estado benfeitor e às políticas keynesianas (que vigoraram nos Estados Unidos e na Europa, durante o período da Guerra Fria). Nessa consolidação do ideário neoliberal está presente uma tensão entre dois tipos de liberalismo, aquele que prevê reformas sociais e que defende um ideal de bem comum, e outro partidário da liberdade individual como um fim absoluto (DARDOT; LAVAL, 2016).

Tomando como referência as análises polanyianas sobre a construção de uma “sociedade de mercado”, a ordem neoliberal representa um sistema normativo que expande a sua influência por todo o território global. Dentre os principais instrumentos privilegiados pelo capital financeiro (tradicionalmente representado por bancos e sociedades por ações, mas que coexistem hoje com fundos de pensão, fundos de investimento, grupos industriais, etc.) podem ser mencionados a política macroeconômica visando a estabilidade dos preços e taxas de juros reais elevadas, bem como a abertura das fronteiras comerciais e financeiras, para a livre circulação de mercadorias e capitais, no sistema internacional.

No que diz respeito à periferia capitalista, a América Latina foi, como diz Gérard Duménil, a “primeira vítima” dessa nova ordem, interrompendo toda e qualquer tentativa de desenvolvimento capitalista, que, sob o comando do Estado nacional, levasse à diversificação e complexificação da matriz produtiva dos países latino-americanos, viabilizando uma reconfiguração do seu padrão de inserção externa voltada para o atendimento dos mercados dos países centrais (MARCELINO; AMORIM, 2007). Antes mesmo dos governos Thatcher (1979), na Grã-Bretanha, e Reagan (1980), nos Estados Unidos, uma política econômica ultraliberalizante foi implantada em países como Chile (1973) e Argentina (1976), que sob regimes ditatoriais, serviram como “laboratório” dessa política, acentuando nesses países a queda dramática do poder de compra dos trabalhadores assalariados (em meio a uma contenção autoritária dos conflitos sociais), assim como o grau de inserção subordinada no âmbito externo.

Após as primeiras experiências no Chile e na Argentina (ou, inclusive, no México, em 1982), a partir dos processos de redemocratização dos países do Cone Sul e do “esgotamento” do modelo desenvolvimentista, conforme diagnosticado pelo Fundo Monetário Internacional, a virada continental em direção ao neoliberalismo operou com força nas décadas de 1980 e 1990. A construção do Estado neoliberal, adequado para os fins do grande capital local e internacional, que teve lugar em tempos de Menem (na Argentina), Fujimori (no Peru), Salinas de Gortari (no México), Pérez (na Venezuela), Collor e Cardoso (no Brasil), respondeu às necessidades de implementação das políticas de ajuste estrutural formuladas por Washington, orientadas pela disciplina fiscal, a liberalização do sistema financeiro e do comércio exterior, a eliminação das restrições aos investimentos estrangeiros e a privatização das empresas estatais. Como destacam Dardot e Laval (2016), tais medidas fazem parte de uma racionalidade particular, de um modo de governar, em definitivo, da razão do capitalismo contemporâneo.

A política neoliberal veio a aprofundar a dependência e a vulnerabilidade externa da região, e culminou em graves crises cambiais e financeiras, promovendo (a despeito de Estados democráticos de direito que se apresentavam como o árbitro social garantidor do bem comum) a concentração da riqueza, serviços públicos de baixa qualidade, o aumento da desigualdade e o crescimento da pobreza. Ficavam, assim, claramente retratadas a aparência universalista do Estado capitalista e o caráter formal da sua democracia que não faziam mais que dissimular e ocultar os interesses e os conflitos de classes das sociedades latino-americanas.

Como consequência dos impactos regressivos do período, a partir do início do século XXI, a reação das classes populares contra os efeitos da política neoliberal materializou-se na eleição de líderes políticos de esquerda e centro-esquerda, a chamada “onda rosa”, que se espalhou pela América Latina: Chávez (na Venezuela), Morales (na Bolívia), Kirchner (na Argentina), Vázquez (no Uruguai), Correa (no Equador), Bachelet (no Chile), Lugo (no Paraguai) e Lula (no Brasil), com exceção do México, Colômbia e Peru, que se mantiveram com governos liberais-conservadores.

Os novos mandatários expressaram mudanças na correlação de forças no interior dos seus Estados, mudanças essas que junto aos novos governos possibilitaram o processamento de demandas e reivindicações populares por melhores condições de vida (CORTÉS; TZEIMAN, 2017). Apesar da diversidade de experiências históricas dos vários países, podemos afirmar que os novos governos buscaram, sob a implementação de diversas agendas nacionais e sociais de desenvolvimento inclusivo, margens para a reforma da ordem neoliberal, sem confrontá-la. Contudo, é possível afirmar que a atuação dos governos populares e progressistas encontraram grandes dificuldades nessa tarefa e enfrentaram limites para a transformação da ordem neoliberal. Em alguns casos buscaram acomodar os conflitos e as contradições de classes – afinal, não devemos perder de vista que as bases materiais desses novos governos e de suas burocracias dependiam da acumulação capitalista nos respectivos países, sob a hegemonia do capital financeiro.

Após a crise econômico-financeira de 2008, essa mudança na correlação de forças sociais expressa pela “onda rosa”, cedeu, segundo Osorio (2020), perante uma “guerra de desgaste” por parte dos setores dominantes, que explorou as próprias contradições desses governos e pelo esgotamento do seu modelo político-econômico de sustentação. Tal guerra culminou num quadro político marcado por fatos como a destituição dos mandatários de Honduras (2009), Paraguai (2012), Brasil (2016) e Bolívia (2019), a crise na Venezuela, e as vitórias eleitorais de Macri, na Argentina (2015), de Moreno, no Equador (2017), de Piñera, no Chile (2018), de Bolsonaro, no Brasil (2019) e de Lacalle Pou (2020), no Uruguai. O ideário neoliberal retomou vigor, principalmente no que diz respeito à necessidade de novas medidas de “ajuste” e de reformas estruturais liberalizantes, e o resultado está à vista: maior abertura econômica e financeira (com a consequente vulnerabilidade externa), maior concentração de renda, aumento da pobreza, desemprego, precarização do trabalho e dos serviços públicos básicos, etc.

Por outro lado, a vitória de López Obrador, no México (2018), de Fernández, na Argentina (2019), e, recentemente, de Arce, na Bolívia (2020), assim como a capacidade de resistência do governo bolivariano na Venezuela, frente às ofensivas políticas e às sanções econômicas impostas pelos Estados Unidos e seus aliados para a mudança de governo, revelam a complexidade da conjuntura regional. Demonstram a dificuldade que os projetos neoliberais apresentam em se viabilizar eleitoralmente frente às massas populares, e que impede que se dê completamente por encerrado o ciclo de governos populares e progressistas no continente.

Da mesma forma, as revoltas e manifestações populares que atingiram Equador, Chile e Colômbia, entre os meses de outubro e dezembro de 2019, e que tiveram recentemente como corolário, no caso chileno, o referendo “Apruebo” para a convocação de uma Convenção Constitucional, sinalizam a rejeição popular às políticas neoliberais de “austeridade” e de “privatizações” e o esgotamento do modelo político-econômico, incapaz de atender às demandas reais da sociedade.

No entanto, em todos esses casos, se exigirá maior capacidade de organização e de unidade entre as forças sociais para o longo processo de luta entre distintos projetos que está aberto nesses países. É necessário atenção, como alerta Žižek, pois muitos membros do establishment vão buscar se aliar aos novos governos populares e progressistas, ou, inclusive se apropriar das reivindicações do povo, no caso chileno, mas tão logo “começarão a alertar contra o ‘novo extremismo’ e a trabalhar sutilmente para conseguir manter a mesma ordem [neoliberal] sob uma nova roupagem, a mesma estrutura com apenas algumas mudanças cosméticas” (ŽIŽEK, 2020), acomodando o processo de mobilização nos marcos da institucionalidade política.

Por fim, qualquer análise da conjuntura regional do continente não pode perder de vista o contexto global de disputa hegemônica entre os Estados Unidos e a China. Enquanto os Estados Unidos buscam reforçar a sua presença na região, após o relativo grau de autonomia que os governos da “onda rosa” alcançaram em sua política externa, se afastando, em diferentes graus, ao atrelamento geopolítico estadunidense. Já a China se tornou a principal parceira comercial da região, para onde se exportam nossa produção agropecuária e os nossos recursos minerais e energéticos, e vem realizando importantes investimentos em infraestrutura da região, ampliando sua influência no continente.

Tal contexto, coloca a América Latina como palco das disputas geopolíticas, que tendem a provocar o acirramento também das disputas entre as classes, frações e grupos internos. Se por um lado, os Estados Unidos necessitam manter seu domínio na região, tanto pela diplomacia como pela força, reforçando e aprofundando as políticas econômicas neoliberais para a qual contam com significativo apoio das classes dominantes internas. Por outro lado, somente a mobilização e a organização das massas populares podem fazer frente a esse projeto, forjando resistência, integração e traçando caminhos mais prósperos ao tempo presente e futuro.

* Pesquisadores do Núcleo de Estudos em Política, Estado e Capitalismo na América Latina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (NEPEC-UFRGS/CNPq).

Referências

CORTÉS, Martín; TZEIMAN, Andrés. Discutir el Estado. Dilemas estratégicos a la luz de los procesos políticos latinoamericanos. Revista Theomai, n. 35, pp. 202-219, 2017.

DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.

MARCELINO, Paula; AMORIM, Henrique. Neoliberalismo e dominação de classe: uma análise marxista do capitalismo contemporâneo. Entrevista com Gérard Duménil. Lutas Sociais, n. 17/18, pp. 184-196, 2007.

OSORIO, Jaime. O Estado de contrainsegurança com coro eleitoral na América Latina. Observatório do Estado Latino-Americano, 07/09/2020. Disponível em: https://www.ufrgs.br/odela/2020/09/07/o-estado-de-contrainseguranca-com-coro-eleitoral-na-america-latina/ Acesso: 07 set. 2020.

ŽIŽEK, Slavoj. Žižek: Chile e Bolívia, entre duas normalizações. Blog da Boitempo, 29/10/2020. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2020/10/29/zizek-chile-e-bolivia-entre-duas-normalizacoes/ Acesso: 04 nov. 2020.


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Edição: Marcelo Ferreira