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Florestan Fernandes e a fúria da burguesia brasileira – terceiro artigo da série

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Florestan Fernandes é responsável pela elaboração do capítulo da Constituição que trata da autonomia das universidades - Arquivo/Câmara dos Deputados
Seus textos continuam sendo uma bússola importante para identificar temas caros às organizações

A terceira parte da obra “A revolução burguesa no Brasil” foi escrita por Florestan Fernandes especialmente para tal publicação. Intitulada “Revolução burguesa e capitalismo dependente”, no interior de uma publicação feita no ano 1975, em plena ditadura militar no país, é resultado do amadurecimento do autor sobre os conceitos de autocracia burguesia e sobre a condição brasileira e latino-americana de dependência.

Florestan já havia passado por questões centrais em sua obra, pautas muito atuais de problemas que o povo brasileiro ainda hoje precisa se confrontar. Nesse sentido, é fato que percorrer sua trajetória intelectual se confunde com percorrer o processo para entendimento dos principais desafios da classe trabalhadora no Brasil: a questão indígena, a questão de negros e negras, a dependência latino-americana e o caráter da burguesia brasileira, no marco de sua relação com as outras classes sociais.

Do tema do seu mestrado e doutorado sobre a organização social dos tupinambás, passando pela questão da necessária organização da população negra, em “Integração do negro na sociedade” (1964), até chegar a duas obras de ensaio anteriores à “Revolução burguesa no Brasil”, mas que acumularam na compreensão do conceito de dependência, no Brasil e no continente. São as coletâneas de artigos intituladas “Sociedade de classes e subdesenvolvimento” (1968) e “Capitalismo dependente e classes sociais na América Latina” (1973).

Com isso, temos a compreensão do papel antidemocrático, patrimonialista e colonialista da burguesia brasileira. A terceira parte de “A Revolução burguesa no Brasil” se detém justamente sobre este ponto. Tão central para percebermos hoje como setores burgueses apresentam divergências pontuais, porém se unificam em torno da capacidade do governo Bolsonaro de aplicar um programa de venda do patrimônio público, exploração das massas trabalhadoras, mantendo alto índice de desemprego e repressão quando necessário, contra a população das periferias e do campo.

Florestan, por isso mesmo, segue atualíssimo.

Não apenas pela frase rápida de que o caráter da burguesia brasileira é ser antipopular, como costumamos nos referir a ele no cotidiano, mas ao descrever justamente o processo e desenvolvimento da burguesia brasileira enquanto classe social, dentro da particularidade histórica de nosso país, para concluir a conformação de uma autocracia burguesa. Uma burguesia que, formado ao fim da dissolução da ordem colonial, porém carregou e manteve elementos desse colonialismo.

Como vimos no artigo anterior, esse processo resultou em concentração de terras, impossibilidade de criação de um mercado interno de consumo de massas, problema que se prolongou e foi objeto de análise também de outros pensadores do Brasil.

A sociedade civil no país seguiu comprimida. O discurso liberal apenas um mero discurso. Demorou muito a haver qualquer iniciativa séria de integração nacional. O deslocamento da oligarquia tradicional, sua modernização e adaptação, se deu sem confrontos, com um aperto de mão entre a velha classe proprietária no campo e a burguesia em ascensão, que não realizou revolução que ampliasse possíveis “potenciais democráticos”, como sugere Florestan. “Não tínhamos uma burguesia distinta e em conflito de vida e morte com a aristocracia agrária”, afirma, na página 246.

Nada disso. Uma revolução burguesa e nacional, é, segundo a descrição do sociólogo, incompatível com o modelo neoimperialista imposto de fora, com o “ultraimperialismo” como é chamado por ele, referindo-se certamente ao processo de hegemonia do imperialismo estadunidense no século vinte, sua determinação sobre nosso país, sobretudo a partir da década de 50.

“...sob a situação de dependência – tanto sob a dominação neocolonial, quanto sob a dominação imperialista – os extratos sociais dominantes e suas elites não possuem autonomia para conduzir e contratar a revolução nacional, gravitando historicamente, portanto, de um beco sem saída para outro”, afirma, na página 347.

A partir de então, Fernandes identifica a formação de uma burguesia dividida entre a transnacional que se instalou com força nesse período, a grande empresa estatal formada anteriormente com a criação da indústria de base, ao mesmo tempo convivendo com a burguesia agrária, usando inclusive de formas “subcapitalistas” de exploração.

Como o escoadouro de todo um raciocínio, o livro chega até o golpe militar de 1964, seu caráter justamente preventivo, autocrático, de uma burguesia que passou a ver com preocupação a classe trabalhadora saindo da sua tutela ao longo do século vinte e gerando seus processos de organização e de mobilização – dentro de um contraditório processo industrial, que teve como uma de suas condições justamente a ampliação da classe trabalhadora no país.

Fernandes, ao identificar as particularidades de nosso processo de formação e o desenvolvimento histórico das classes sociais, soube dimensionar também o significado do golpe de 1964. “Tais burguesias pretendem concluir uma revolução que, para outras classes, encarna atualmente a própria contrarrevolução”, página 344.

Seus textos continuam sendo um mapa, uma bússola importante para identificar temas caros às organizações que almejam a revolução brasileira: a identificação do caráter autocrático e submisso ao imperialismo da burguesia brasileira; a necessidade das massas populares alterarem o sistema de poder concentrado; o problema da integração e da indústria nacional.

O problema do capitalismo dependente e de uma burguesia que, em lugar de buscar rompê-lo, apresenta muito mais receio ao ver a movimentação das massas populares. Como em 1964.

“Ao que parece, mesmo a transição para o fascismo será contida pelo temor de classe, que impediu, até agora, qualquer forma de mobilização ideológica e política das massas populares no âmbito da contrarrevolução preventiva. A fascistização incidiu diretamente sobre o Estado, e, neste, concentrou-se em algumas de suas estruturas e funções, assumindo, por isso, o caráter de um processo localizado e institucionalizado (e, sintomaticamente, dissimulado e posto acima de qualquer comunicação ou articulação das elites com a massa)”, página 423.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Edição: Lucas Botelho