Rio Grande do Sul

MEIO AMBIENTE

Após mobilização, prefeitura sinaliza permanência da diretora da Reserva do Lami

Para entidades, há um desmonte em curso na Reserva Biológica José Lutzenberger e no Refúgio de Vida Silvestre São Pedro

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Moradores da zona Sul realizaram um protesto em frente à sede da Smams, quando a secretaria propôs manter a bióloga Maria Carmen Sestren Bastos por três dias da semana nas Unidades de Conservação - Divulgação

Após intensa mobilização dos moradores da zona Sul da Capital e entidades ambientalistas, que criticam o desmonte de duas Unidades de Conservação (UCs) de Porto Alegre – a Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger e o Refúgio de Vida Silvestre São Pedro -, a prefeitura sinalizou com uma proposta de manter no cargo a bióloga Maria Carmen Sestren Bastos, diretora das UCs. Ela havia sido remanejada unilateralmente, junto com seu funcionário e chefe de grupo nas duas Unidades, Osmar Oliveira, pela Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smams) no dia 14 de agosto. "Uma vitória parcial", afirma o grupo.

Membros da comunidade do Lami foram de surpresa, na manhã desta quinta-feira (27), até a Smams e solicitaram uma audiência com o secretário da pasta, Germano Bremm. Atendidos, reivindicaram a revisão da decisão. À tarde, outro grupo voltou ao local, justamente na hora da reunião do Conselho Municipal do Meio Ambiente (Comam), para denunciar ao Conselho que a decisão foi tomada sem diálogo com a sociedade. Após um tempo protestando na janela, três manifestantes foram recebidos pela secretária-adjunta, Viviane Diogo, quando informou a proposta de manter Maria Carmen trabalhando na reserva três dias por semana, ficando somente dois na fiscalização. Quanto a Osmar, não houve definição.


Grupo de moradores foi recebido pelo secretário na manhã desta quinta-feira / Divulgação

Entidades denunciaram no MPRS

Diversas organizações vinham apelando pela revisão da decisão e realizando manifestações públicas. Uma petição pública foi lançada para pressionar a secretaria, já tendo mais de 1.400 assinaturas. Além disso, o Instituto Econsciência, o Instituto Gaúcho de Estudos Ambientais InGá e o Instituto Curicaca entraram com uma representação no Ministério Público do RS, solicitando a adoção de medidas para garantir a continuidade de atividades administrativas essenciais à proteção das UCs. O documento solicita ainda a apuração de eventuais condutas de improbidade administrativa e criminais da prefeitura de Porto Alegre.

O ambientalista Felipe Viana, do Instituto Econsciência, explica que os servidores afastados realizavam um trabalho de preservação ambiental da região há cerca de 20 anos. Ele destaca que possuíam uma relação de confiança estabelecida com a comunidade e vinham denunciando invasões de áreas protegidas, fruto da forte urbanização pela qual vem passando a zona Sul da cidade.

“A questão da retirada da Maria Carmen, a gente identifica como represália às denúncias que estava fazendo. Ela vinha cobrando para que a fiscalização estancasse os problemas ambientais de áreas sendo griladas, loteamentos irregulares, desmatamentos e aterros em áreas grandes de mais de 50 hectares. Denúncias de ocupação e desmatamento de áreas indígenas, onde eles já estão acampados e está sendo gravado pela FUNAI como área indígena”, afirma Felipe.

Para a advogada e integrante do coletivo Preserva Belém Novo, Michele Rihan Rodrigues, a retirada dos servidores, “que vinham fazendo um trabalho reconhecido pelas comunidades e atuavam em defesa dessas reservas”, demonstra uma ingerência injustificada da gestão de Nelson Marchezan Júnior (PSDB). Ela avalia que há um desmonte das políticas de preservação ambiental em curso no município.

“A gente inclusive já recebeu informações de pessoas que trabalham na prefeitura, na Smams, de que sim, houve um desmonte, um desmantelamento da Secretaria do Meio Ambiente. E a saída deles parece reafirmar isso”, explica. Conforme Michele, a atual gestão chegou a tentar eliminar a secretaria em uma reforma administrativa, mas voltou atrás porque o licenciamento ambiental obrigatoriamente tem que ser feito por essa pasta.

Para Michele, a Secretaria do Meio Ambiente “hoje só se presta a licenciar empreendimentos”. Conforme relata, é comum ver alguém desmatando um terreno, mas o cidadão não consegue acionar a prefeitura. “Já fizemos diversos pedidos de trabalho de educação e informação ambiental com as populações do Extremo Sul para que as pessoas saibam como informar um desmatamento, uma ocupação ilegal, ou animais silvestres que aparecem, mas nunca temos retorno.”

Participação negada


À tarde, outro grupo de moradores fazia pressão no lado de fora da Smams, quando a secretária-adjunta chamou três manifestantes / Divulgação

A denúncia encaminhada ao MPRS afirma que a mudança na gestão das UCs contraria a garantia do controle social mínimo da gestão pública sobre os territórios decretados como sendo de interesse coletivo para a conservação da biodiversidade. A Lei Federal 9985/2000, Sistema Nacional de Unidades de Conservação, e o Decreto Federal 4340/02, que a regulamenta, estabelecem as categorias Reserva Biológica e Refúgio de Vida Silvestre, nas quais estão classificadas as duas UCs, garantindo no mínimo uma consulta prévia, o que não ocorreu com a mudança do quadro de servidores.

“É uma reserva biológica ao lado de um núcleo de ocupação intensiva, tem uma comunidade que mora ao lado, com características urbanas, e ela não pode ser ignorada no processo, tem que ser incluída e participar da gestão. É importante que a gente tenha gestores com essa visão, e a Maria Carmen tem essa visão”, afirma Felipe. Segundo ele, as entidades que assinam o documento enviado ao MPRS criticam que as reservas tenham uma gestão fechada e isolada, que não se preocupa com o entorno.

A denúncia levanta suspeitas sobre as motivações para a movimentação dos servidores. Uma delas é o início do período eleitoral e um possível interesse em indicar pessoas filiadas a partidos políticos aliados. Outra seria a tentativa de dificultar atividades em curso como a implementação de Área de Proteção Ambiental e Corredores Ecológicos das zonas rurais entre o Morro São Pedro e o Lami, devido a interesses econômicos relacionados a loteamentos.

Michele relata que há uma pressão de crescimento urbano ordenado e desordenado na região. “Tem condomínios ou loteamentos de todos os padrões sendo criados, desde os mais populares do Minha Casa Minha Vida até condomínios de alto padrão, que não preveem os impactos desse crescimento populacional. Isso por si só pressiona demais a questão da preservação ambiental. O Bairro Hípica é um exemplo. Há 20 anos, era pequeno em número de moradores, hoje se transformou em um grande loteamento.”

Prefeitura afirma que mudança visa qualificação

Antes da proposta de permanência por três dias de Maria Carmen, a Smams informou à reportagem que “as alterações foram feitas visando à qualificação do trabalho executado, uma vez que o corpo de funcionários e técnicos da Coordenação de Educação Ambiental e Fiscalização (CEAF) está sendo ampliado”. Afirmou que a responsabilidade técnica pelas duas UCs seria compartilhada entre dois servidores, uma engenheira agrônoma e um engenheiro florestal, que já atuam nas outras UCs do município, a do Morro do Osso e do Parque Saint’Hilaire. Destacou ainda que a equipe “passa a contar também com os serviços de um assistente administrativo e de uma arquiteta, a fim de suprir a necessidade de profissional habilitado para a elaboração de projetos importantes para as UCs”.

As entidades ambientalistas rebatem a posição. “Recebemos a informação que tal remoção se deveria à criação de novo órgão, o qual ainda não contaria sequer com estrutura física, e tampouco a organização e planejamento necessários para exercer atribuições, o que ocasiona a subutilização de recursos humanos altamente qualificados e experientes. De qualquer modo, tal iniciativa – ainda que venha a ser bem organizada e receba a estrutura compatível – não justifica a descontinuidade de um serviço indispensável e altamente técnico e especializado”, apontam na denúncia.

De fato, o CEAF é um órgão novo, consolidado a partir do Decreto nº 20.097, de 19 de novembro de 2018, já na gestão Marchezan. A Smams ressaltou que a designação dos servidores é uma “atribuição inerente aos gestores”, contrariando a cobrança por participação reclamada pelos ambientalistas, e que “visa à melhoria dos serviços oferecidos à população e à proteção do ambiente natural”. A secretaria explicou que “seis servidores do quadro passam a atuar em apoio às equipes de fiscalização e monitoramento: dois biólogos, um arquiteto, dois veterinários e um operário”.

Movimentação seria ideológica

Para Michele, o cerne da questão é saber onde estão as políticas públicas de meio ambiente. “Por que servidores que fazem o seu trabalho são retirados dos seus postos nessas unidades de conservação sem diálogo com a sociedade civil, sem participação no controle social dos conselhos consultivos?”, questiona.

O presidente da Associação Gaúcha de Proteção ao Ambiente Natural (Agapan), Francisco Milanez, avalia que existe um movimento generalizado que parece ser ideológico, ao comparar a gestão de Marchezan com a do governador gaúcho Eduardo Leite, ambos do PSDB. Ele recorda o desmonte do código ambiental aprovado pelo governo estadual, sem diálogo com a sociedade, que facilitou a obtenção de licenças para exploração da iniciativa privada no estado.

Do lado da prefeitura, recorda o Decreto 20.185, de 2019, em que o prefeito Marchezan revogou 78 decretos municipais sobre espécies vegetais imunes ao corte, usando como base o novo código estadual para alterar o manejo da vegetação em Porto Alegre. “A própria painera do Centro (árvore próxima à prefeitura) não é mais tombada, foi desprotegida. É evidente que existe uma visão tacanha de absoluta ignorância ambiental que defende que o meio ambiente é inimigo do desenvolvimento, enquanto a gente sabe que é o contrário”, afirma o presidente da Agapan.

“A gente lutou pela criação daquela reserva porque tem lá várias espécies que são endêmicas, só existem ali, estão em extinção. Tem que haver o mínimo de visitação. Foram conquistas. Aí vem um cara que não compreende o que é uma reserva. Há ali uma repressão porque a coordenadora da reserva estava defendendo a questão ambiental no Extremo Sul, o que é sua obrigação”, critica. Francisco lembra ainda que o Brasil vive uma situação difícil com o Ministério do Meio Ambiente “ocupado por um criminoso ambiental que quer passar a boiada”, equiparando os três governos dentro de uma mesma lógica.

Importância das UCs para a biodiversidade


Banhado da Reserva do Lami / Reprodução

A Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger e o Refúgio de Vida Silvestre São Pedro são de extrema importância para a conservação da biodiversidade no município de Porto Alegre. Abrangem um dos ecossistemas mais ameaçados do Rio Grande do Sul, as matas de restinga. Além disso, têm papel fundamental como corredor ecológico para diversas espécies da fauna ameaçadas de extinção, como o mão-pelada, o graxaim e o bugio-ruivo, e também na conservação de espécies raras e endêmicas da flora nativa, como a efédra.

Criado por meio do Decreto Municipal 18.818, de 16 de outubro de 2014, com intensa participação social, o Refúgio de Vida Silvestre São Pedro é uma UC de Proteção Integral. Está inserido no maior fragmento de Mata Atlântica de Porto Alegre, com vegetação florestal e campestre. Como destaca Felipe, o Refúgio de Vida Silvestre preserva as nascentes do Arroio Lami e a Reserva Biológica do Lami preserva a Foz do Arroio Lami. “Esse é um dos arroios mais preservados de Porto Alegre, tanto a qualidade da água quanto das matas ciliares, então ele representa uma biodiversidade muito grande pela questão dos corredores ecológicos.”

O Morro São Pedro possui uma Mata de Encosta, uma área de 1.500 hectares prioritária para conservação da biodiversidade. Felipe ressalta que a prefeitura está com projeto de preservação e tem uma área indenizada de 10% desse morro. “Embora seja pouco, é uma área considerável para começar um projeto de preservação, e tem a demanda de se adquirir mais áreas lá.”

Já a Reserva Biológica do Lami possui grande variedade de ambientes, como matas ciliares, banhados, juncais, matas de restinga, maricazais, vassourais e campos arenícolas, contribuindo para a diversidade de espécies da flora e fauna silvestre. Foi criada em 1975 e tem como objetivos ainda a pesquisa científica e a educação ambiental. Visitas educativas podem ser agendadas pelo e-mail [email protected].

Seu nome é uma homenagem a seu idealizador, o ambientalista porto-alegrense José Antônio Kroeff Lutzenberger, falecido em 2002 e até hoje uma referência internacional na proteção ao meio ambiente. Agrônomo de formação, Lutzenberger foi um dos fundadores da Agapan e o criador da Fundação Gaia.

Atualização

Após o fechamento desta matéria, a Smams retornou o contato da reportagem informando o novo posicionamento. Confira:

Como forma de acolher as solicitações recebidas, a Secretaria Municipal do Meio Ambiente e da Sustentabilidade (Smams) informa que a bióloga Maria Carmen Bastos continuará a executar seu trabalho na Reserva Biológica do Lami José Lutzenberger e no Refúgio da Vida Silvestre São Pedro às segundas-feiras, quartas-feiras e sextas-feiras. Às terças-feiras e quintas-feiras, a servidora contribuirá com o fortalecimento dos serviços da Coordenação de Educação Ambiental e Fiscalização (CEAF).

Por reconhecer o trabalho desenvolvido pela técnica nas UCs, por todo o seu conhecimento e histórico, a gestão entende que a contribuição da servidora é fundamental para qualificar o trabalho da CEAF, visando a resultados mais efetivos das ações fiscais e de monitoramento, principalmente nas Unidades de Conservação (UCs), ambientes com forte pressão urbana e que demandam reforço especializado.

Além da colaboração da bióloga, outros cinco servidores do quadro também foram designados para qualificar os serviços de fiscalização e monitoramento: um biólogo, um arquiteto, dois veterinários e um operário. A transferência dos servidores para a CEAF visa à melhoria dos serviços de fiscalização e monitoramento oferecidos à população e à proteção do ambiente natural. Os novos integrantes da CEAF irão realizar avaliação de dano ambiental para que processos decorrentes de ação fiscal tenham efetividade, e atuarão para fortalecer o monitoramento das UCs, visto que, até o momento, não havia na CEAF técnicos especializados neste setor, entre outras atividades.

Além do retorno da bióloga, a Reserva do Lami e o Refúgio passaram a contar também com os serviços de um assistente administrativo e de uma arquiteta, a fim de suprir a necessidade de profissional habilitado para a elaboração de projetos importantes para as UCs.

 

Edição: Katia Marko