Paraná

Solidariedade

Agroecologia, partilha e esperança: MST doa 12 toneladas de alimentos em Castro (PR)

Cidade é Capital Nacional do Leite, porém, a fome é a realidade. Demanda por ajuda do CRAS cresceu 200% na pandemia

Curitiba (PR) |
Com a ação de sábado (8), agricultores e agricultoras Sem Terra do Paraná chegaram a marca de 400 toneladas de alimentos doados - Iara B. Facalde Pereira

Arroz, feijão, legumes, frutas, verduras, leite, pão e até macarrão caseiro compuseram as mais de 12 toneladas de alimentos da Reforma Agrária doados para cerca de 800 famílias carentes de Castro, no Paraná, no sábado (8). As sacolas e cestas com a diversidade de produtos frescos - e a maior parte orgânica - foram partilhadas por sete assentamentos e acampamentos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) de Ponta Grossa e Castro.

A ação solidária faz parte da campanha nacional do MST para partilhar alimentos com quem enfrenta a fome neste período de pandemia do coronavírus. Com a ação de sábado, agricultores e agricultoras Sem Terra do Paraná chegaram a marca de 400 toneladas de alimentos doados. Em todo o Brasil, foram mais de 2.800 toneladas.

Junto à mensagem da solidariedade, cada cesta também carrega o projeto proposto pelo MST de acesso à terra para produção de alimentos saudáveis e vida digna. O acampamento Maria Rosa, que acolheu toda a logística de organização das cestas, é exemplo disso. Ali vivem cerca de 200 famílias, com práticas agroecológicas de produção - em março deste ano, todo o território recebeu certificação 100% agroecológica pela Rede Ecovida de Agroecologia. Desde maio, as famílias mantêm uma horta comunitária para garantir a continuidade das doações e também o consumo interno.

A comunidade completa cinco anos no próximo dia 25 e escolheu a ação de solidariedade como forma de comemorar, já que as tradicionais festa e feira de sementes crioulas não poderiam ser realizadas durante a pandemia. “É uma forma de comemorar, agradecer os frutos colhidos da terra e repartir com as famílias, nossos amigos e irmãos da cidade que não têm a terra pra produzir e se desenvolver”, conta Célio Meira, integrante da direção da comunidade Maria Rosa.

A fartura de alimentos saudáveis e a solidariedade são motivos para festejar, mas uma ordem de despejo também aflige os camponeses. No final de outubro, uma audiência vai decidir o futuro da comunidade. “Mesmo a gente tendo as dificuldades e uma ação de despejo sendo movida contra nós, as famílias continuam animadas, plantando, produzindo, na tentativa de sensibilizar o poder público e toda a sociedade castrense e do país a ter um olhar mais cuidadoso, mais criterioso com o agricultor familiar, com a Reforma Agrária”, explica Meira.

Fome na Capital do Nacional do Leite

Castro recebeu o título de Capital Nacional do Leite em 2017, por ser a maior produtora do Paraná e uma das maiores do Brasil. No entanto, a fome é uma realidade para a população empobrecida.

“Tem pessoas que passam necessidade, que não têm o que comer, infelizmente. A gente fica sem ação, sem ter o que fazer, porque a gente vê as pessoas passando fome e não tem como ajudar. Isso machuca a gente como ser humano”, relata emocionada Rosilda Rodrigues Marcondes, 39 anos, sobre a realidade da sua vizinhança na Vila Operária.

O bairro de Rosilda foi um dos que recebeu cestas de alimentos da Reforma Agrária no sábado. A mãe e o padrasto dela estão entre as pessoas próximas que enfrentam dificuldades para garantir o básico para viver. “Eles estão sobrevivendo com o que os meus irmãos podem fazer, porque eu também ganho pra sobreviver, não posso ajudar muito”, lamenta Rosilda, que paga o aluguel e as contas da casa com um emprego temporário, com prazo para se encerrar em 45 dias. “É uma batalha diária”, resume.

Simone Gomes, coordenadora do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS) Consulesa Helena Van Der Berg, conta que houve um aumento de 200% de atendimentos a famílias vulneráveis em maio. A demanda por cestas básicas passou de 40 para 120 por mês, “e se tiver mais cestas, tem demanda”, relata. “Muitas pessoas que nunca precisaram do CRAS agora estão nos procurando”, conta.

A convivência diária com a realidade da população mais empobrecida da cidade mostra para a coordenadora que o Auxílio Emergencial tem sido usado para suprir o pagamento de contas como aluguel, contas de luz, água e remédios. A alimentação fica em segundo plano. “Pra nós foi de grande importância essa doação de alimentos vinda de vocês [MST]. Muitos têm uma visão equivocada do movimento de vocês. Só quem conhece sabe a causa realmente de vocês. A gente conhece os assentamentos, viu que vocês são organizados, têm uma produção boa”, diz.

Roberto Benitez é morador do assentamento Conceição, em Castro, há 36 anos. Ele faz parte da Cooperativa dos Trabalhadores Rurais e Reforma Agrária de Castro (Cootramic), que reúne produtores assentados e da agricultura familiar da região. De lá saíram 1.500 litros de leite doados às famílias urbanas. “Na verdade, a Reforma Agrária funciona. A luta não foi em vão, valeu a pena, porque hoje a gente pode ajudar o pessoal lá da cidade. E, se a gente for ver, nenhuma grande propriedade doou nada, nem um litro de leite pro município. E nós vamos doar leite daqui”, compara.

A presença do agronegócio de grandes cooperativas agrárias é uma marca na política e na economia da cidade. Na principal estrada de acesso à área urbana do município, a PR 340, produtores rurais assinam dois outdoors em apoio a Bolsonaro.

Darci Frigo, coordenador da Terra de Direitos e Observatório de Direitos Humanos Crise e Covid-19, participou da distribuição dos alimentos na cidade e viu de perto a vulnerabilidade das famílias da periferia. Para o defensor de Direitos Humanos, a ausência de um plano do governo federal para enfrentar a pandemia deixa a população à mercê de pressões econômicas locais.

“O governo federal desorganiza a sociedade com as suas mensagens contraditórias, quando ele precisaria ter nesse momento uma política voltada para combater os efeitos da pandemia, cuidar das pessoas, da saúde e também garantir renda para que as pessoas possam sobreviver nesse momento em que milhões de pessoas passam fome e vivem na miséria. Eu vi isso, presenciei essa situação aqui em Castro”, relata.

Já existem denúncias no Tribunal Penal Internacional contra o presidente da república pela prática de genocídio. “A população indígena, quilombola, povos e comunidades tradicionais, as pessoas negras que vivem nas periferias estão sofrendo um genocídio. Ele se soma com as violências que historicamente já aconteciam na sociedade brasileira, mas que se agravam agora com a pandemia”, reforça Frigo.

Um estudo do Centro de Pesquisas Epidemiológicas da Universidade Federal de Pelotas (UFPel) divulgado em julho comprova que a contaminação pela Covid-19 reflete o racismo e a desigualdade no Brasil. A doença contaminou mais brasileiros pretos (2,5%), pardos (3,1%), indígenas (5,4%), amarelos (2,1%), do que brancos (1,1%). Já a pesquisa do Programa de Aprimoramento das Informações de Mortalidade (PRO-AIM), da Secretaria Municipal da Saúde de São Paulo, sinaliza que o número de mortes por Covid-19 em bairros de baixa renda é 60% maior do que em bairros ricos da cidade, o que se repete em outras áreas urbanas no país.

Partilha de alimentos é “sinal de esperança”

Antes de chegar às mãos das famílias urbanas, todos os alimentos doados pelos agricultores Sem Terra foram reunidos no barracão comunitário do acampamento Maria Rosa do Contestado, ao longo da sexta-feira (7). Após serem organizados por tipo, as cestas começaram a ser montadas, garantindo a diversidade em cada uma delas.

Uma pequena cerimônia, feita com distanciamento social e uso de máscara, marcou a benção dos alimentos. Uma mensagem gravada em vídeo por Dom Sérgio Arthur Braschi, Bispo da Diocese de Ponta Grossa (PR), foi transmitida ao público que participou do mutirão.

“Neste tempo difícil de sofrimento da pandemia, é um sinal de esperança, de luta pela vida, o que estão fazendo neste dia as famílias dos acampamentos e assentamentos da nossa região do MST, e tantos que lutam pela Reforma Agrária, repartindo o fruto do seu trabalho, das suas mãos e das suas lutas na agricultura. Obrigado a Deus por todo o esforço que vocês fazem, e abençoamos estes alimentos que serão distribuídos na região de Castro”, diz um trecho do vídeo.

Frei Franciscano Luiz Antonio Frigo, de Ponta Grossa, participou presencialmente da cerimônia. Para o religioso, a partilha dos alimentos “é um fermento na mudança da cultura atual, e para criarmos uma nova humanidade, uma nova maneira de pensar”.

O Frei relacionou a ação solidária das famílias Sem Terra com o trecho bíblico sobre o milagre da multiplicação dos pães e peixes. “Podemos dizer que hoje essa multiplicação da comida se realiza através de vocês. O milagre continua sobre nossos olhos. Famintos nós temos como nunca, e nunca a humanidade produziu tantos alimentos como hoje [...]. A humanidade aprendeu a produzir, mas a humanidade não aprendeu a distribuir”, diz.

Junto ao acampamento Maria Rosa do Contestado, participaram da ação outras cinco comunidades de Castro: assentamentos Três Pinheiros, Três Lagoas, Conceição, acampamento Padre Roque Zimmermann, agricultores familiares da comunidade Lagoa dos Ribas, e Associação União, que integra assentados e pequenos agricultores da região. O assentamento Che Guevara e acampamento Emiliano Zapata, de Ponta Grossa, também fizeram parte da mobilização.

Edição: Lia Bianchini