A última luz no topo do céu rela o último andar de um prédio vizinho. Caminho pelo Largo da Ordem, depois de cem dias. O vazio quase completo no domingo traz um tom de irrealidade, protegida por força policial. Observo vizinhos. Tento notá-los e compreendê-los por trás das janelas e portas inermes. A amiga de um prédio ao lado colocou na sacada o cartaz “E se fosse o filho da patroa?”. Outro vizinho da esquina da Riachuelo arrisca algumas canções incompletas no órgão. Um piá bate o skate contra as pedras do chão do Largo, que agora são a boca escancarada cheia de dentes mostrando a ausência e os buracos por onde passa o canal de nossas certezas inertes. Sartre, Simone, Camus e Genet poderiam sentar ali para uma cerveja e, insatisfeitos, perceber que tudo o que escreveram, a grande náusea, realiza-se. O vazio então já temos. Sabemos como lidar com as feras, adaptar nossos corpos de carapaças, demônios e bichos, e nos reinventar.
Resta agora destruir todo o resto que nos fere, nos limita mas que, cretinamente, não se mostra.
Edição: Lucas Botelho