Rio Grande do Sul

Entrevista

Sistemas de opressão interligam racismo, sexismo e classe social

"As raízes racistas e patriarcais ampliam as desigualdades e as violências contra as mulheres"

Extraclasse | Porto Alegre |
Denise Mantovani, pesquisadora e pós-doutora em estudos feministas - Igor Sperotto

Denise Mantovani, pós-doutora em estudos feministas interseccionais, é doutora em Ciência Política pela Universidade de Brasília. Como pesquisadora, participa da Rede de Pesquisas em Feminismos e Política, que reúne professoras e pesquisadoras de diversas universidades e ativistas de organizações feministas do Brasil, integra a Marcha Mundial de Mulheres e atua como pesquisadora-colaboradora do Núcleo de Pesquisa de Comunicação Social da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs). Graduada em Jornalismo pela Pontifícia Universidade Católica (PUC/RS), é autora de obras sobre mídia; feminismos e interseccionalidade; democracia e desigualdades de gênero, raça e classe; aborto e democracia. Denise ressalta como o feminismo e a luta antirracista tornam-se centrais para entender e enfrentar a política de destruição do extremismo fascista sobre o Estado, a sociedade civil, a educação e o bem viver. “É fundamental a compreensão de que as raízes racistas e patriarcais ampliam as desigualdades e as violências contra as mulheres, sejam elas brancas, negras, indígenas, migrantes, mulheres com deficiência, mulheres do campo, das florestas, ricas e pobres, criando sistemas de opressão que interligam racismo, sexismo e classe social”.

Extra Classe – Vivemos um período de extrema violência. Qual sua análise deste contexto no bolsonarismo?

Denise Mantovani – São múltiplas perspectivas que se interligam. Primeiro, é importante relacionar o que vivemos com o ataque às democracias liberais que ocorre em várias partes do mundo. No Brasil, o bolsonarismo articula-se sob essa mesma agenda extremista de direita, de apologia à violência, de enaltecimento ao militarismo, ao autoritarismo, de propagação do ódio racista, sexista e homofóbico, de discursos reacionários articulados por um moralismo de direita que reafirma e naturaliza hierarquias. Compartilho das visões que relacionam a realidade atual à sequência de acontecimentos do período 2014-2016 que culminaram com o golpe contra a ex-presidente Dilma Rousseff. Desde lá tem ocorrido uma brutal destruição do Estado, o que atinge diretamente mulheres, população negra, indígena e LGBT. O desastre se completa com ausência de uma ação efetiva do governo federal no enfrentamento à Covid-19. Por fim, há conjugação entre interesses do capital internacional no desmonte do Estado brasileiro com os grupos extremistas de direita, racistas e misóginos, apologistas da violência, do armamentismo, da defesa da repressão militar e do punitivismo que atinge a população negra, pobre e periférica articulados com o ativismo religioso da direita cristã que prega hierarquias de gênero, raça e sexo, controle sobre os corpos e a sexualidade das mulheres e imposição de um modelo único de família patriarcal heteronormativa.

EC – É um cenário gerador de conflitos sociais?

Denise – Sim. São conflitos no sentido antidemocrático, onde o direito à divergência política não está colocado. Ao contrário, são autoritários e fascistas porque pregam a destruição do pensamento antagônico. O adversário torna-se um inimigo a ser destruído. E nesse conjunto de retrocessos, ressentimentos provocados pelo aprofundamento neoliberal − perda do emprego, desregulação do trabalho, precarização da vida e medo sobre o futuro − vão sendo instrumentalizados pelas ferramentas da internet, com as fake news, incentivando o ódio racial, de classe e sexista. No governo Bolsonaro, a crise econômica já estava posta antes mesmo da pandemia. E se aprofundou com o desmantelamento do Estado e as medidas supostamente para enfrentar a crise da pandemia que transferiram recursos públicos para bancos privados. Todas essas situações afetam diretamente as mulheres, porque a reforma neoliberal tem na moralidade e na família tradicional patriarcal a tarefa de substituir o papel do Estado e das políticas de bem-estar social. O mercado privatizou serviços essenciais do Estado e responsabilizou os indivíduos masculinos − por isso a ideologia patriarcal importa − a arcar com os custos de educação, saúde e provisão e de cuidado com os dependentes − as mulheres. Por isso, a moral cristã reforça a ideia de retorno ao modelo de família hierárquica, heteropatriarcal.

EC – E quem são as pessoas mais afetadas por esse projeto político?

Denise – As pessoas que mais sofrem, que estão mais expostas e vulneráveis diante da ausência de um Estado social, são as mulheres e homens negros, mulheres, homens e crianças indígenas, minorias étnicas e população pobre, sem acesso a bens básicos. Assim como o machismo e o sexismo que afetam as mulheres, o racismo estrutural atua em profundidade nesse cruzamento, num modelo genocida, com desdenho e omissão diante da destruição de vidas humanas. Recorro a Lélia Gonzales – antropóloga negra, ativista e teórica feminista, para reforçar o que quero dizer. A estratégia de colonização no Brasil produziu o racismo de negação, exercendo o controle sexual e racial de forma estratificada e hierárquica, o que garantiu a superioridade do grupo racial branco, especificamente do homem branco, colocado no topo da pirâmide social. Se observarmos o discurso bolsonarista, além do viés antidemocrático, da demonização do político e social, da valorização da moralidade tradicional, vemos nos discursos de ódio o forte componente classista − de desprezo ao povo pobre, racista − de negação ao racismo e sexista,  de superioridade masculina e subordinação das mulheres a papeis de gênero tradicionais e a naturalização da violência. Nesta complexa diversidade da categoria “mulheres” é importante compreender as raízes racistas, patriarcais e de classe que se cruzam e ampliam as desigualdades entre brancas e negras, ricas e pobres, criando sistemas de opressão e desigualdade que interligam racismo, sexismo e pobreza.


"O caminho fundamental é olhar para as relações de poder a partir do gênero, da raça e da classe social com a perspectiva de inverter a distribuição desse poder" / Arte: Fabio Edy Alves sobre fotos de Igor Sperotto

EC – Como as teorias feministas abordam esta questão?

Denise – O campo feminista quando olha a sociedade, olha fazendo esta crítica: vê que a violência tem gêneros, sexualidades diversas, tem raça, tem classe social. Quando discutimos violência contra as mulheres, estamos vendo todos estes fatores que não estão apartados da realidade. Para os feminismos diversos, mas especialmente a perspectiva antirracista e anticapitalista com a qual estabeleço um diálogo nessa reflexão, a forma atual do capitalismo neoliberal produz a destruição que atinge diretamente as mulheres. Dados do Ibge mostram que quase 40% dos lares brasileiros são chefiados por mulheres, sendo que a taxa de desemprego das mulheres é 39% superior a dos homens. O desemprego no Brasil atinge quase 13 milhões de pessoas, mas afeta mais as mulheres, 15% das desempregadas e os homens 10%. No recorte racial os dados mostram que 15% das pessoas autodeclaradas pretas estão em situação de desemprego. Assim como 14% dos desempregados são pessoas pardas e 10% brancas. Para os feminismos, essa realidade é devastadora porque a maioria mais vulnerável é composta por mulheres negras e pobres.

EC – Sob o aspecto do patriarcado, qual o impacto nesta teia social?

Denise − Algum tempo atrás, Bolsonaro tentou relacionar o contexto do desemprego e isolamento social com a violência doméstica, sugerindo que o problema da violência era o fato dos homens estarem em casa, sem trabalho. Um engodo que representa a postura machista, elitista e racista, pois a violência doméstica ocorre em todos níveis sociais. A estrutura da violência contra a mulher está relacionada à ideologia patriarcal, que prega a supremacia masculina. O conceito do patriarcado ajuda a revelar o discurso político e ideológico em torno da naturalização da hierarquia do masculino sobre o feminino que mascara uma relação desigual entre os sexos. Não tem nada a ver com biologia, ou maternidade. A relação de poder dos homens sobre as mulheres precisa ser enfrentada como algo estruturante das relações sociais, profundamente imbricado com a exploração capitalista e o racismo. A cultura patriarcal gera o machismo e a misoginia, que são o desprezo e o desrespeito às mulheres e, em consequência, as violências contra nossos corpos. O patriarcado estrutura as manifestações de machismo no interior das famílias, nas escolas, nas ruas, nas piadas, nos estereótipos de gênero, nos papeis sociais atribuídos ao masculino e feminino heteronormativos, na formulação de leis e na interpretação delas por um sistema jurídico que carrega o princípio de decidir em favor do patrimônio dos homens brancos, burgueses, endinheirados.

EC – E nisso entra a imposição de uma divisão sexual do trabalho?

Denise – A divisão sexual do trabalho mostra como essa hierarquia constroi uma divisão de tarefas e responsabilidades baseada na diferença sexual. Dessa forma, porque as mulheres são mães, é naturalizada a ideia de que cabe a elas a responsabilidade do cuidado e das obrigações domésticas − mesmo que trabalhem fora. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios mostram que em 2019 a jornada de serviços feitos em casa ocupava 10h24min semanais a mais no tempo das mulheres em relação ao tempo dos homens. O que mostra que, na melhor das hipóteses, ainda persiste a ideia da “ajuda” em casa, mas não da “divisão” das tarefas entre casais. O trabalho doméstico, chamado de trabalho reprodutivo, não é valorizado. No capitalismo só o trabalho externo é valorizado com salário. Esse é um ciclo que favorece a desigualdade. Realidade que muitas vezes cria dificuldades para romper casamentos violentos, pois impõe às mulheres a subjugação econômica de si e de seus filhos. Já o trabalho doméstico remunerado expõe a realidade do racismo estrutural cruzado com a desvalorização que o capitalismo e o patriarcado produzem sobre o trabalho doméstico.

EC – Fora da política focada na estratégia de dominação, qual seria a alternativa para um caminho mais democrático?
Denise – Penso que um caminho fundamental é olhar para as relações de poder a partir do gênero, da raça e da classe social com a perspectiva de inverter a distribuição desse poder. Faço uma provocação: se olharmos para as posições de chefia nos locais de trabalho, nos sindicatos, nos partidos políticos, quantas são as mulheres e onde elas estão em termos de posições de poder? Onde estão as mulheres negras e os homens negros? Num país como o Brasil o exercício democrático do poder precisa levar em consideração que sua população é majoritariamente negra: 56% e feminina: 52%. É o oposto da representação política na Câmara de Deputados, 85% composta por homens e 15% por mulheres, maioria brancos. Dos 436 homens eleitos, 73% são brancos, 26% negros e 2 asiáticos. E das 77 deputadas eleitas, 81% é branca, 17% negras e 1% indígena. Por isso, redistribuir o poder é essencial. É uma agenda relevante para enfrentar a extrema direita racista e misógina.

EC − “Não há hierarquia de opressão”, diz a feminista norte-americana Audre Lorde, na defesa de que todas pessoas têm direito de lutar por seus direitos. Como é isso na prática?

Denise – Penso que a dor de cada pessoa é muito particular, não existe dor maior ou menor. Não creio que seja correto alguém julgar a dor do outro. No livro Dororidade, a feminista negra Vilma Piedade fala que a dor não é medida, ela é sentida. A questão colocada na pergunta é relevante. Audre Lorde denunciava a rejeição institucionalizada das diferenças entre as pessoas como uma necessidade das economias baseadas no lucro para tornar homogêneo o que não é. E nós, dentro dessa cultura que busca apagar as diferenças para dizer que “somos todos iguais”, quando sabemos que isso não é verdade, fomos programados para reagir com medo e ódio às diferenças humanas. Somos uma sociedade diversa. Entre nós existem diferenças de sexo e sexualidade, de raça e etnia, de gêneros, de idade. Penso que precisamos reconhecer isso que Lorde propõe: que somos forjados por uma cultura que se estruturou na negação da diferença e, com isso, se afirmou numa cultura violenta e opressiva para a diversidade. Somos diferentes e essas diferenças precisam ser reconhecidas e enfrentadas − não apagadas. Elas devem servir para enriquecer nossa visão de mundo e desenvolver novos modelos de convivência sustentados no respeito, na distribuição equitativa da riqueza e num ambiente de acolhimento.

EC – O Brasil ocupa o 5º lugar em feminicídios. Quais as marcas disso?

Denise – Com o desmonte das políticas públicas e o bolsonarismo incentivando a resolução do conflito pela bala, todos nós estamos expostos às violências. Mas as mulheres estão muito mais expostas. Conforme relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, entre março e abril de 2020 os feminicídios cresceram 22% em 12 estados brasileiros, comparado ao mesmo período de 2019. Sabemos que há falta de transparência, que o Estado brasileiro nega a violência, o que é um grande problema. A cada hora, cinco mulheres estão sofrendo algum tipo de violência. É muito grave. É preciso enfrentar o machismo e o sexismo, reforçar redes de denúncia e solidariedade e combater esse modelo de masculinidade baseado num comportamento agressivo e violento de imposição de vontades.

Edição: Extra Classe