Rio Grande do Sul

Educação

“Escolas fechadas, vidas preservadas”: os rumos da educação em tempos de pandemia

Representantes da educação gaúcha discutiram os desafios e problemas vividos por alunos, pais e professores no estado

Brasil de Fato | Porto Alegre |
Em live, debatedoras destacam aspectos como sobrecarga de trabalho, exclusão digital e modelo privatizador - Reprodução

Para além de um espaço de aprendizagem, a escola também é ambiente de sociabilização, troca, afeto e convivência. Locais antes cheios que, por conta da pandemia, agora estão vazios. Cerca de 1,5 bilhões de estudantes ficaram fora da escola em mais de 160 países, segundo relatório do Banco Mundial. No Rio Grande do Sul, há praticamente quatro meses, as salas de aula foram transferidas para as salas das casas. A lousa, substituída por telas de celular, tablets e de computadores. Mas essa passagem do modelo “analógico” para o digital descortinou ainda mais as desigualdades de acesso à educação. 

O governo gaúcho havia anunciado um calendário programado para retornar as aulas gradativamente. Porém, em decorrência do crescimento exponencial de casos de covid-19 no estado, o futuro das aulas presenciais segue incerto. Os trabalhadores e representantes do setor da educação no estado já vinham afirmando, desde o início da pandemia, que não é hora de voltar com aulas presenciais. Para debater o tema, o Brasil de Fato RS, em conjunto com a Rede Soberania, realizou, na última quarta-feira (09), uma live com a presença de Helenir Aguiar Schürer, presidenta do Centro dos Professores/RS (CPERS Sindicato), Cecília Farias, diretora do Sindicato dos Professores do Ensino Privado do RS (Sinpro/RS), Rúbia Vogt, presidenta do ANDES/UFRGS, e Aline Kerber, presidenta da Associação Pais e Mães pela Democracia. Uníssono, as convidadas ressaltam: “Escolas fechadas, vidas preservadas”. 

Uma pesquisa do Datafolha divulgada no dia 26 de junho aponta que, para 76% dos brasileiros, as escolas devem continuar fechadas. Sem condições do retorno presencial, as debatedoras defendem o calendário (ano letivo), para que não se perca todo o trabalho feito até o momento. Para elas, são necessárias políticas públicas integrais de proteção social para que seja possível garantir o isolamento e também o direito à educação. Pós-pandemia, observam, será preciso discutir e sanar o acesso dos alunos que ficaram à margem por conta do acesso na modalidade digital. 

As convidadas também destacaram o descaso do poder executivo com a educação, em suas três esferas, municipal, estadual, e sobretudo federal. Assim como a área da Saúde, outro setor importante nessa pandemia, a Educação segue sem ministro.

Sobrecarga de trabalho e impacto na rotina

O novo coronavírus impactou a vida de toda a cadeia educacional, pais, alunos, professores, que de acordo com as convidadas são os grandes heróis nesses tempos de pandemia. Passado mais de cem dias de distanciamento social, os efeitos vão se tornando visíveis: desestímulo por parte dos alunos e sobrecarga para os docentes, que veem sua rotina pessoal cada vez mais misturada com a profissional. “Se antes um professor tinha, por exemplo, 20 horas, agora ele está com 40. Há relatos de professores que atendem pais e alunos à meia noite para sanar alguma dúvida”, aponta Helenir. 

Conforme destaca Rúbia, o professor sempre trabalhou em casa, com os trabalhos para corrigir, preparação de aulas, e isso nunca foi reconhecido. “Mas agora trabalhando totalmente em casa, fica sem a separação desse tempo de trabalho e de descanso. Intensificação do contato com pais e alunos. O teletrabalho também coloca para os docentes maior controle das suas atividades e mais exposição da sua imagem, da sua produção. Há casos de ataques cibernéticos durante atividades. Antes já havia o escola sem partido, que vinha fazendo esse controle desmedido dos professores, desnecessário, ilegal, isso se agrava com a gente se dispondo, se colocando mais no meio virtual”, aponta.  

A sobrecarga de atividades também atinge os professores de escolas particulares, pontua Cecília. “Professores da rede privada estão sujeitos a mudança de tecnologia que impactou muito. Muitos professores analógicos tiveram que se tornar digitais de um dia para outro, isso gerou uma sobrecarga de trabalho, excesso de trabalho”, afirma. Ela destaca ainda que se as escolas privadas têm recurso, essa não é a realidade de alguns professores, que precisam ir atrás de incremento, por exemplo, em sua internet, para dar conta da demanda. 

Cecília ainda chama atenção para a realidade dos professores estaduais que, para além dessa sobrecarga, ainda têm o atraso em seus salários. Conforme expõe Helenir, há 55 meses os docentes estaduais estão lidando com o atraso em seu pagamento, além do desconto de 30% por conta da greve deflagrada no ano passado. Apesar disso, informa a dirigente, o RS foi o estado com o melhor desempenho no Enem das escolas públicas. “Isso foi por conta do compromisso e capacidade da categoria em defesa da educação pública”.  

Direito à educação

Para Aline a pandemia evidenciou a crise do direito à educação. "A educação que a gente acredita também está sendo negada para os alunos das escolas privadas, sofrimento dos professores, alunos vivendo desinteresse, insatisfação. É impossível transplantar a sala de aula para sala de casa, percebemos a falta de interface com os alunos, que é o combustível do professor, e muitos medos e incertezas atrapalhando esse processo. Os professores, hoje, são nossos heróis, estão carregando com tanto afinco e coragem esse momento”, ressalta. Segundo ela, se visualiza uma série de erros dos governos em todos os níveis.

“A educação não é prioridade para o governo (Bolsonaro). Olhando para nossa secretaria de Educação do RS, temos como secretário um administrador de empresas, que lança um decreto protocolo sem promover diálogo com a comunidade escolar, como os sindicatos. Em Porto Alegre também temos um secretário que não tem capacidade de diálogo, não preza a gestão democrática. Há também uma política de incentivo de retorno ao trabalho”, frisa.  

Ensino remoto escancara a desigualdade

Em relação ao ensino remoto, por meio de plataformas digitais, que na avaliação de Rubia não passa de um EAD precarizado, as convidadas também são unânimes: é impossível de se trabalhar, principalmente nos ensinos fundamentais e médio. Entre os motivos está a falta de acesso dos alunos. 

De acordo com matéria divulgada pelo portal do CPERS, um mês após adoção da plataforma Google Classroom, imposta pelo governo Leite (PSDB), quase 300 mil alunos não a acessaram. “O contingente representa 34,7% do alunado, mas os dados também revelam uma aguda desigualdade regional. Em Porto Alegre, por exemplo, a proporção se inverte. Apenas 37 mil estudantes de um total de 115,7 mil realizaram o cadastro”, revela a nota

Ameaça dos plantões presenciais

Durante a live, as convidadas relataram também o fluxo de trabalho presencial nas escolas em meio à pandemia, dada a necessidade de entregar e recolher materiais impressos aos alunos e pais. Assim como a promessa de um auxílio pelo Executivo e a Assembleia Legislativa para estudantes e educadores (as) arcarem com a Internet, que ainda não se concretizou.

“Todas as pesquisas estão mostrando que os alunos, seja na educação básica ou no ensino superior, não têm pacotes de dados que suporte uma série de plataformas, recursos, não tem computador, só tem um celular que é dividido com mais membros da família. Sabemos que ler, fazer as atividades na tela do celular, é uma coisa bastante limitada, é cansativo”, ilustra Rubia, pontuando que há relato dos alunos sobre a falta de espaço de estudo em casa, abalos psicológicos de viver essa situação e também, muitas vezes, a necessidade de trabalho dos jovens para complementar a renda nesse momento.  

Privatização do ensino e outros problemas

Sobre o projeto de privatização, Helenir diz que ele está acontecendo no estado. Ela cita o caso da Fundação Lemur, através da venda das suas plataformas. “Aqui estamos vendo a implantação de plataformas que estão sendo ofertadas, e através disso dinheiro público que deveria ser para educação pública, na verdade, se torna privado. Esses pacotes educacionais que estão sendo vendidos, e no estado isso está acontecendo, pois em diversos lugares estão aparecendo materiais de empresas privadas dentro das escolas, isso já é uma forma de privatização da educação pública”, afirma. 

A dirigente também chama atenção para o fato do estado ainda não ter nomeado os representantes das entidades para o Conselho estadual de Educação. “Estamos com a metade da representação, os alunos não têm nenhuma. O governo está tentado enviar um projeto de lei onde, segundo consta, ele quer ficar com maioria no conselho. Estamos muito preocupados. Todo o sistema de educação é importante. Ter um conselho como órgão regulador, fiscalizador, independente do governo, é fundamental para educação de qualidade”, reforça.

Aline chamou atenção para o PL 170 de 2019 na Assembleia Legislativa, de autoria do deputado Fábio Osterman (Novo), que traz a educação domiciliar para o RS, uma matéria, que de acordo com ela, não é da alçada estadual, mas de cunho federal. "Descobrimos que o projeto que a princípio tinha sido rejeitado, com relatoria de Juliana Brizola, há duas semanas atrás, quando deputado Turra pegou a relatoria e colocou em votação, foi aprovado na Comissão de Constituição e Justiça da Assembleia legislativa. Um projeto flagrantemente inconstitucional foi aprovado no RS. Agora ele vai para Comissão de Educação. Temos o fortalecimento da ideia da educação domiciliar no estado, temos que atentar, temos que trabalhar nessa pauta. O Conselho Estadual de Educação regulamenta, por conta da pandemia, o ensino domiciliar. Precisamos ficar muito atentos para não munir e não fortalecer a elitização da educação.”

Para Aline é preciso fortalecer a educação pública. Ela cita, como uma forma de fortalecimento, o fluxo de alunos da rede privada, que por conta da pandemia e da situação financeira, estão migrando para a rede pública, em especial para a educação básica e fundamental. 

Na avaliação de Cecília é preciso um olhar diferenciado sobre o que está acontecendo ."Defendemos que continue havendo essa interação com os alunos, e somos a favor de, por enquanto, não voltar, seria uma temeridade, uma irresponsabilidade de voltar às aulas. Mesmo a volta dos estágios e aulas práticas é uma temeridade visto que muitos requerem contato, como odonto e fisioterapia.”

Cecília ainda aponta a política de destruição das condições da população ter educação. “Nas escolas privadas, de noite, são trabalhadores que estão lá. Não existe uma política para que haja a permanência desses alunos, recursos. É importante que tenhamos um projeto, um programa de condição de manter os alunos na escola”. Contudo, ressalta, os professores são os grandes heróis. “Esse período pode dar uma contribuição ainda maior que é ele próprio ser objeto de aprendizado”.

As debatedoras também falaram das faltas de financiamento para a educação, como a Emenda 95. E destacaram a situação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb), que ameaça os municípios, e a necessidade de ações e políticas afirmativas. 

Assista ao debate completo:

Edição: Marcelo Ferreira