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Coluna

Valor de uso e pandemia: algumas lições de Bolívar Echeverría

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Intelectual equatoriano lançou mão do marxismo aliado a outras referências e às raízes latinoamericanas - Reprodução
Resgatando a obra de Marx: o que importa é o “valor de uso” e não o “valor” das coisas.

*Artigo em coautoria com Pedro Pistelli Ferreira, doutorando em direito na UFPR e pesquisador do IPDMS

 

O presente mês de junho marca os dez anos da morte de Bolívar Echeverría. Nascido no Equador, a 31 de janeiro de 1941, exilou-se no México e lá faleceu a 5 de junho de 2010. A data rememorativa, porém, encontra agora a humanidade ameaçada por uma pandemia que põe em risco seu futuro. Quais seriam, nesse contexto, as possíveis lições deixadas pelo filósofo que escreveu o clássico livro “Valor de uso e utopia”?

Primeira lição: a prevalência do valor de uso

O século 21 começou contrariando o tão propalado fim da história pregado pelos entusiastas da democracia liberal. Além de recorrentes ciclos de crise do capitalismo mundial, recrudescimento de práticas políticas cada vez mais autoritárias e aplicação de mecanismos bárbaros de acumulação de capital – em especial nas periferias da economia mundial –, estamos assistindo, desde o início deste 2020, a um contexto ainda mais caótico. Uma pandemia de dimensão global e novas formas de convivência, oriundas da vida em isolamento social por ela exigida, têm catalisado este momento.

Os operadores dos grandes centros de acumulação assustam-se com os impactos desses novos cenários no mercado mundial e, em casos como o brasileiro, escancara-se uma persistente contradição entre a saúde das pessoas e a liquidez dos investimentos de grandes empresários; entre a produção de bens voltados para a subsistência humana e a produção de mercadorias, luxos e serviços que criam sua própria demanda para fazer girar uma roda da economia extremamente desigual; entre a manutenção e expansão da vida do povo e a manutenção e expansão das oportunidades de lucratividade para o mercado e seus investidores.

Trocando em miúdos, no contexto caótico da pandemia e do isolamento social, o que se percebe é que importa mais a saúde que o dinheiro; a comida que as mercadorias supérfluas; o abrigo mais que o mercado.

Esta percepção é exatamente o que Bolívar Echeverría concebeu como uma de suas teses centrais para explicar o mundo moderno, resgatando a obra de Marx: o que importa é o “valor de uso” e não o “valor” das coisas.

Complexificando um pouco a proposta teórica do autor, podemos dizer que Echeverría explica essa tensão lançando mão da ênfase na centralidade da reprodução da vida em suas dimensões materiais e simbólicas em detrimento da sanha de proteção da economia burguesa. Trata-se de uma mirada latino-americana sobre Marx que propõe justamente a superação do capitalismo pelo resgate da riqueza socialmente construída (valor de uso) em contraste com o processo de valorização capitalista das mercadorias (valor).

Segunda lição: o discurso crítico de Marx

Echeverría foi um eminente filósofo que, entre suas andanças por Equador, Alemanha, México e toda a América Latina, elaborou uma teoria marxista própria. Ela bebe não só nas fontes da crítica da economia política de Marx. Ela também faz uso da teoria da revolução de uma Rosa Luxemburgo, da crítica cultural de um Walter Benjamin e de debates anticoloniais latino-americanos e do terceiro mundo tais como os de Ernesto Che Guevara ou Frantz Fanon. Suas diversas influências deságuam em um marxismo crítico que, ao mesmo tempo, conjuga elementos de ortodoxia e heterodoxia; de crítica da modernidade e de rechaço da resignação pós-moderna; de ávida leitura do pensamento europeu e de radical enraizamento na situação latino-americana como periferia do sistema capitalista mundial.

Suas teses são ainda mais pertinentes para o momento atual, quando a maior parte da intelectualidade de esquerda atemoriza-se com a ascensão do conservadorismo e recua cada vez mais a radicalidade de seu discurso. Perspectivas legalistas, republicanas e de cariz eurocentricamente liberal estão se sobressaindo como respostas à barbárie neofascista, quando, na verdade, o pensamento social crítico latino-americano tem muito mais a contribuir. A o

bra de Echeverría parece indicar um instigante antídoto contra a complacência diante das promessas da modernidade capitalista que as alternativas legalistas engendram: o antídoto do marxismo crítico profundamente arraigado em solo latino-americano.

Terceira lição: a resistência mestiça latino-americana

O contexto latino-americano, ao qual Echeverría está umbilicalmente ligado, é marcado pela figura da “mestizaje” (mestiçagem), o “modo de vida natural das culturas”, como ele gostava de se referir. Isto quer dizer que a América Latina foi forjada de uma maneira tal que seus povos tiveram de criar sua “estratégia de sobrevivência”. E ela se baseou na resistência de culturas originárias, mas ao mesmo tempo inseridas no contexto de transformações geradas pelo colonialismo. Uma aceitação crítica, portanto; uma recriação da modernidade.

Esta mestiçagem, pois bem, não dá espaço para que entre nós prevaleça a figura do “flâneur”, personagem que Echeverría extrai da obra de Benjamin para explicar o amortecimento e a resignação vivida no mundo capitalista europeu. O “flâneur” é o burguês que caminha errantemente por entre as calçadas de lojas com mil mercadorias e, ante tantas opções, não acha graça em nenhuma.

Quarta lição: críticas à branquitude, à modernidade e ao capitalismo

Por ser inviável a resignação, a mestiçagem traz consigo a crítica como estratégia, que Echeverría desenvolveu muito bem. Na linha da tese sobre a prevalência do valor de uso, aquilo para que ele chama atenção é muito atual. Em face do racismo, Bolívar Echeverría desvela as características da branquitude; perante o discurso eurocentrado da modernidade, ele propõe a construção de alternativas (mas sem cair em modismo pós-modernos); diante da exploração capitalista, ele se coloca a favor da utopia de um novo mundo. Branquitude, modernidade e capitalismo não escapam, portanto, ao seu discurso crítico.

Daí que suas lições se desdobram nos tempos pandêmicos em que vivemos. Elas servem para refletirmos sobre o racismo vivenciado no Brasil ou nos Estados Unidos e aprofundado em casos emblemáticos durante este período; sobre a ausência histórica de efetivas políticas de assistência social aos trabalhadores, o que faz com que a crise atual ganhe contornos ainda mais dramáticos; ou, ainda, sobre a falta de organização do Estado na área da saúde e da economia, simultaneamente, para fazer imperar o valor de uso das coisas produzidas, e não seu valor de troca.

A pergunta que fica é: de que adianta tamanha tecnologia e desenvolvimento das forças produtivas se as pessoas não têm asseguradas as condições básicas de desenvolvimento de suas capacidades e de atendimento de suas necessidades?

É por isso que a contradição entre “valor de uso” e “valor” se apresenta como explicação muito atual para entendermos o mundo de hoje. Somente quando o primeiro deixar de se subordinar ao segundo é que poderemos respirar, poderemos ter relações sociais a favor da vida: eis a imbricação que podemos ressaltar entre valor de uso e utopia, em tempos de pandemia. E, assim, seguimos com os ensinamentos de Bolívar Echeverría, vivo em seu discurso crítico, exigindo urgentemente o resgate de suas lições.

 

Edição: Pedro Carrano