Paraná

CRÍTICA

"Estamos juntos": uma frente incoerente

Portanto, só é possível conformar uma frente pela democracia se a estratégia comum for o fim deste governo

Curitiba (PR) |
"não permitindo que as políticas antipopulares sejam denunciadas e o impeachment seja exigido" - Giorgia Prates

Algumas lideranças progressistas, em nome do apoio a quaisquer movimentos “democráticos”, defendem a conformação de frentes amplas contra o Bolsonaro. Como a aprovação de um impeachment depende do voto dos parlamentares de direita, pensam que será a partir de frentes com estes setores que reuniremos uma força social capaz de pôr fim à ameaça fascista representada pela continuidade do governo Bolsonaro.
Advém daí o sucesso, sobretudo entre os setores progressistas, do manifesto “Estamos Juntos”, movimento articulado por setores liberais que contou com a adesão de diversos artistas, intelectuais e lideranças políticas, de esquerda e de direita.
Mas será que este tipo de frente ampla, de fato, ajuda na luta pela democracia?
Qualquer frente serve, sempre, a uma determinada estratégia, que seria o ponto de acordo comum entre todos que a conformam. O manifesto “Estamos Juntos” fala, inclusive, de um “projeto comum de país” entre seus signatários. Será que há?  
Para a esquerda, há um consenso público de que não haverá democracia com a manutenção do governo Bolsonaro. A permanência deste governo, como lamentavelmente estamos vivenciando, significa milhares de mortes a mais pela Covid-19 - que, em parte, poderiam ser evitadas -, e intensos retrocessos sociais e políticos para a maioria do povo.
Portanto, só é possível conformar uma frente pela democracia se a estratégia comum for o fim deste governo. Este, inclusive, é o recado das mobilizações que surgem espontaneamente nas ruas, sejam de torcidas organizadas, antirracistas e antifascistas, nas janelas de casas e apartamentos: o que se ouve, em alto e bom som, é o “Fora Bolsonaro”.
As frentes amplas, com setores da direita tradicional, no entanto, apesar de pretensamente falarem em nome de dois terços da sociedade, não defendem esta estratégia. Ou seja, desprezam o sentimento de mudanças de boa parte do povo e aquilo que seria o ponto de partida da esquerda para conformar qualquer movimento. Aliás, nem sequer citam o governo Bolsonaro e defendem uma pauta tão genérica quanto duvidosa, como a “a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia” (Manifesto “Estamos Juntos”).  
Assim, o ponto de acordo comum delimitado nestas frentes não atende às necessidades do povo e da democracia, mas, apenas, as estratégias das elites econômicas, no qual o objetivo não é tirar o Bolsonaro, mas tutelá-lo. Eles têm acordo e sustentarem as medidas antipopulares adotadas pelo governo, como a Emenda Constitucional da reforma da previdência, o congelamento dos salários de servidores públicos e as privatizações, e não desejam nenhuma mudança que possa colocar em risco a manutenção desta política.
Isso fica claro quando o presidente do PSDB, Bruno Araújo, reafirma a contrariedade dos tucanos a tirar o presidente, o Rodrigo Maia continua sentado sob 48 pedidos de impeachment e os deputados do “centrão” se acomodam na estrutura do governo federal.
O que estes setores disputam com o bolsonarismo, no entanto, é o controle do poder político que sempre esteve concentrado nas suas mãos, seja na comunicação, no judiciário, na polícia, no parlamento, pelo qual limitaram as ações dos diferentes governos desde a redemocratização – inibindo, inclusive, as reformas populares estruturais nos governos petistas -, mas que agora Bolsonaro tenta governar sem quaisquer amarras.
Por isso, os signatários do “Estamos Juntos” do campo liberal, como Fernando Henrique Cardoso, André Lara Resende, Elena Landau e outros, buscam um acordo em frentes amplas, com palavras de ordem abstratas, - buscando uma correção de rumos do presidente - porque desejam apenas enquadrar o “monstro” e manter a política do Guedes. Precisam colocá-lo contra a parede, acuado pelo medo de ser abatido, para, assim, assumirem as rédeas do governo.
Mas, para a pressão dar certo, necessitam de apoio popular. Sabem que o Bolsonaro carrega 30% de apoio e eles são incapazes de mobilizar o povo - basta lembrarmos os resultados pífios de seus representantes nas últimas eleições: Alckmin (4,76%), Amoedo (2,5%), Meirelles (1,20%), Álvaro Dias (0,80%).
Dependem, portanto, do PT e dos demais setores progressistas para ganhar o povo. Em especial, precisavam da adesão do Lula, que não aceitou embarcar nesta armadilha e foi acusado por estes setores de direita por priorizar seu “projeto individual de poder”.
Buscam capturar os setores progressistas se valendo dos horrores produzidos pela cúpula do governo, em especial no manejo criminoso da crise sanitária do coronavírus, e de um sentimento positivo compartilhado entre as pessoas de quererem juntar forças para parar este governo. Falam em nome dos 70% e artificializam uma unidade ideológica entre a direita e a esquerda contra os “exageros” do presidente, não permitindo que as políticas antipopulares sejam denunciadas e o impeachment seja exigido. Portanto, envolvem e utilizam as lideranças progressistas que desejam o fim deste governo genocida para, justamente, garantir a permanência do Bolsonaro, tutelado pelas elites tradicionais, mantendo os seus privilégios históricos e a adoção de um programa contra o povo.
É exatamente disso que se trata.
Assim, a adesão dos progressistas nestas frentes amplas organizadas pela direita, sem se ater às estratégias a que elas servem, não é apenas uma ação inofensiva, mas reforça um movimento que trilha na rota oposta ao combate que estes setores já decidiram encampar pelo impeachment do Bolsonaro e por eleições diretas para a escolha do novo governo. São frentes que andam na marcha ré.
É evidente parlamentares progressistas devem constituir frentes para se oporem ao Bolsonaro, para impedirem a aprovação de projetos antipopulares e medidas autoritárias do governo, mesmo com aqueles deputados e senadores que não defendam o impeachment. Mas isso não pode ser transposto para o movimento que estes setores progressistas precisam fazer na sociedade. Os deputados e senadores de direita abandonarão o navio do Bolsonaro somente na iminência do seu naufrágio e  isto só ocorrerá com muita pressão popular e massas nas ruas.
Os setores progressistas não podem se equivocar sobre a profundidade do fenômeno Bolsonaro, alimentando uma ideia de que o presidente está isolado e basta um arranjo por cima entre os partidos para tirá-lo, mesmo que seja verdadeiro que haja uma crise aguda. Nem tampouco, novamente, iludir-se com um suposto caráter democrático da direita tradicional, a mesma que apoiou as manifestações contra a Dilma, o golpe de 2016, a prisão do Lula e, sobretudo, a própria eleição do Bolsonaro para derrotar o Haddad/Manuela, criando um falso consenso em torno de um "projeto de país" inexistente.
A frente que devemos construir é pelo Fora Bolsonaro, nos aproveitando das experiências já acumuladas com a Frente Brasil Popular e Povo Sem Medo, buscando maior amplitude nesta grande massa de inconformados com a situação do país. Devemos dar apoio, por exemplo, para a mobilização nacional de entregadores de aplicativos no dia 1º de julho e a outras mobilizações nas periferias, assim como colocar em movimento as categorias de trabalhadores em defesa dos direitos ameaçados, da vida, da saúde pública, contra as privatizações, dos empregos, da presença estatal para enfrentar os problemas sociais.

Edição: Pedro Carrano