Paraná

Violação de direitos

JBS doa milhões para combate à Covid-19 mas demite indígenas para não pagar ônibus

Ministério Público do Trabalho entrou com ação pedindo reintegração de funcionários e R$ 10 milhões em indenizações

Francisco Beltrão (PR) |
JBS demitiu 40 indígenas da etnia kaingang no início de maio alegando “altos custos operacionais” - Reprodução

A JBS de Seara, município no Oeste catarinense, demitiu 40 indígenas da etnia kaingang no início de maio por alegar “altos custos operacionais”, após o ônibus que levava os indígenas até a empresa interromper as viagens devido à pandemia do novo coronavírus. No mesmo período, porém, a empresa doou R$ 700 milhões para o combate do vírus.

Para o procurador Edson Beas Rodrigues Junior, do Ministério Público do Trabalho (MPT) de Joaçaba/SC, o comportamento da empresa foi discriminatório. Ele move uma Ação Civil Pública pedindo a reintegração dos trabalhadores e o pagamento de indenização no valor de R$ 10 milhões.

Os indígenas demitidos são da Terra Indígena Serrinha, localizada entre os municípios de Ronda Alta, Três Palmeiras, Engenho Velho e Constantina, no norte gaúcho. Ali moram 716 famílias kaingangs, mais de 3,5 mil pessoas. Os 40 trabalhadores vinculados a JBS, e que foram demitidos no início do mês de maio, precisavam suportar longas viagens de 600 quilômetros ida e volta para o exercício do trabalho. Entre esses trabalhadores está uma gestante.

Com a pandemia, os indígenas foram enquadrados, ainda em 17 de março, no grupo de risco, conforme portaria 419/PRES, da Fundação Nacional do Índio (Funai). O que se esperava, é que eles fossem afastados do trabalho, sem ônus aos salários. O que aconteceu, de acordo com a advogada dos indígenas, Lucia Fernanda Inácio Belfort Sales (ou Fernanda Kaingang, que também é indígena), foi a surpresa, no dia 18 de maio de 2020, do cancelamentos dos dois ônibus e do micro ônibus que faziam o trajeto dos trabalhadores até a indústria logo após a demissão dos trabalhadores, com aviso prévio anunciado em 6 de maio.

O que a empresa defendeu foi a “descontinuidade da linha de ônibus que fazia o transporte dos colaboradores”. Na Ação Civil Pública, movida pelo MPT após a demissão dos trabalhadores, documentos anexados apontam que a empresa também alegou “altos custos operacionais”.


Trecho da Ação Civil Pública em que a empresa justifica demissão / Reprodução

Em 11 de maio, porém, cinco dias após a demissão, a empresa anunciou a doação de R$ 700 milhões para o combate ao novo coronavírus por meio do projeto Fazer o bem faz bem. Essa é uma das maiores cifras doadas no Brasil para o combate à pandemia. Desse valor, R$ 28 milhões foram destinados apenas a Santa Catarina – os demais valores são distribuídos para outros estados brasileiros. No relatório da JBS, a empresa também apontou ter, em 2019, sua maior receita líquida: mais de R$200 bilhões.


JBS anuncia doação de milhões após demitir indígenas / Reprodução

Ato discriminatório

Foi o cacique da Terra Indígena, Ronaldo Inácio Claudino (conhecido como Roni Claudino), quem buscou o Ministério Público do Trabalho. “Isso nos deixou muito aflitos e preocupados, são pessoas que precisam de trabalho, mas também é necessário se precaver para que não tenhamos em nossas aldeias inúmeras mortes em decorrência dessa pandemia”, escreveu em documento enviado ao MPT no dia 7 de maio.

Devido ao anúncio da demissão, os trabalhadores precisavam ir a empresa para assinar os documentos de rescisão, mas estavam sob monitoramento clínico desde o dia 1º de maio, porque dois casos positivos de Covid-19 haviam sido registrados na Terra Indígena em 29 de abril. Os infectados estavam isolados e eram trabalhadores de outro frigorífico, também de Santa Catarina, o que aumentou a preocupação na comunidade.

Apesar disso, a JBS seguiu com a demissão e pediu que os trabalhadores fossem até a empresa assinar os documentos de rescisão. A ida foi no dia 1º de junho, com ônibus enviado pela empresa.

As recomendações para esse translado deveriam obedecer as diretrizes de cuidado fixadas pela portaria 312, da Secretaria do Estado da Saúde de Santa Catarina, desde 12 de maio de 2020, e que estabelece medidas de prevenção para o funcionamento dos estabelecimentos de abatedouros frigoríficos de carnes em Santa Catarina. Na portaria, fica definido que a ocupação dos veículos de transporte de trabalhadores deve ser de apenas 50% da capacidade, intercalando a posição janela-corredor (zigue-zague). Também, que é proibido o transporte de trabalhadores sem máscara e que álcool 70% deve ser disponibilizado para higienização das mãos, além de ser utilizado para limpeza do veículo.

Fotos feitas pelos indígenas, porém, denunciam o contrário: o ônibus foi lotado e oferecia condições precárias de transporte. “O ônibus chegou com aproximadamente duas horas de atraso. Se não bastasse isso, o ônibus disponibilizado pela empresa era muito antigo, sem conservação, sujo e não observava as regras fixadas pela Portaria SES 312, relativas ao transporte de trabalhadores”, destacou Fernanda Kaingang.


Fotos tiradas por indígenas trabalhadores da JBS mostram desrespeito a medidas de proteção no transporte / Arquivo

MPT intervém

Todos esses fatos estão na Ação Civil Pública, movida pelo MPT de Joaçaba, que acusa a empresa de dispensa discriminatória a trabalhadores vulneráveis (indígenas e gestantes) e que pede a reintegração dos 40 trabalhadores ao quadro de funcionários, sendo afastados enquanto durar a pandemia, sem ônus aos salários, além de que a empresa JBS pague indenização individual a cada trabalhador, mais o montante de R$ 8 milhões à Terra Indígena – um total de R$ 10 milhões.

O documento foi assinado no dia 1º de junho pelo procurador Edson Beas Rodrigues Junior, e tramita na vara de trabalho de Concórdia, município catarinense.

Nas 75 páginas da Ação, são apontadas outras violações que também teriam ocorrido na empresa. Os depoimentos citam que trabalhadores indígenas desenvolviam trabalhos mais pesados que os não indígenas e que ficavam mais tempo em serviços que apresentavam risco (como manuseio de faca), sem rodízio.

As acusações também falam de refeições diferentes para indígenas e não indígenas, falta de equipamento de proteção (após o retorno das férias em 2020), inexistência de aumento salarial e falta de exame médico após demissão (de um indígena). 

Empresa

Em nota, a JBS disse que as demissões ocorreram “em virtude da descontinuidade da linha de ônibus que fazia o transporte dos colaboradores” e que “foram feitas sem justa causa com o pagamento integral de todas as verbas indenizatórias previstas”.

Disse ainda que emprega 3700 colaboradores em sua unidade em Seara (SC), provenientes de várias regiões próximas à sua unidade e que, desse total, 200 deles são membros de comunidades indígenas “e estão afastados preventivamente conforme orientação de prevenção para a unidade de Seara durante a pandemia de Covid-19”.

Sobre as acusações de casos discriminatórios anteriores à demissão em massa, a empresa disse que não irá se manifestar.

 

Edição: Lia Bianchini