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O Direito de Respirar

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Protestos antirracistas e antifascistas em Curitiba (PR) - Giorgia Prates
Como mulher, mulher negra, favelada, lesboafetiva e umbandista, entendo que são muitas as pandemias

Repetidas vezes as mesmas coisas. Pensei em começar a escrever sobre o invisível. Sobre o ar, ou a ausência dele, que vem afetando as vidas da humanidade inteira. Mas pensando no momento atual, vejo que não há nada de novo no front.

Ando de um lado para outro. Adentro desde comunidades bastante afetadas pela pobreza a mundos escalonados de possibilidades. O que penso, então, sobre o ar, sobre a pandemia? Como mulher, mulher negra, favelada, lesboafetiva e umbandista, entendo que são muitas as pandemias que me atravessam.

No dicionário encontro essa concordância: Pandemia significa, uma enfermidade epidêmica amplamente disseminada.  Durante muitos e muitos anos essas enfermidades varrem as ruas das grandes e pequenas periferias, o que mudou, é que agora ela não pode mais ser ignorada pelas regiões centrais, pelas ruas das grandes metrópoles, pelas mídias. O que causa o rebuliço. Porque o que agora se vê, nas ruas, são as desigualdades, varrendo as calçadas; o que se vê é apenas o lixo humano sendo veementemente exposto. 

Duas semanas atrás, senti meus passos serem novamente violados. Duas mulheres brancas, ao gritarem comigo, me chamavam de agressiva, por retribuir o tom de voz que ambas juntas usavam comigo, para ser por elas escutada. Até o momento que sento a escrever, me coloquei a pensar sobre isso. Por que essa agressividade parte de nós e não dessas pessoas que nos silenciam, que precisam ter a última palavra sobre o que quer que você viva, pense ou tenha que fazer enquanto ação? Por que a violência, não parte dessas vidas que tentam dominar, diminuir e escravizar outras vidas e pensamentos? Por que essa inversão? Se alguma vida oprimida tenta falar mais alto, tenta se mover sem essa "autorização"  logo recebe um adjetivo diminutivo buscando o silenciamento. Que sensação de poder é esse que algumas (muitas) almas procuram ao se sobrepor ao direito das outras pessoas? Não seria essa a maior das faces da real fraqueza? 

Sabemos de uma estrutura racista que de maneira muito branda e pandêmica, inculca nas mentes a exclusão social, falas e hábitos pejorativos que se incorporam ao nosso cotidiano. Chimamanda Ngozi Adichie nos lembra que "a história sozinha cria estereótipos, e o problema com estereótipos é que não é que eles não são verdadeiros, mas que eles são incompletos. Eles fazem uma história se tornar a única história".  Por que somos tão visíveis em certos assuntos e tamanhamente invisíveis em outros? Somos visíveis quando tomamos o nosso poder de existência e resistência em nossas mãos, somos visíveis quando ao invés de dizer sim, soltamos um não. Mas somos visíveis para o medo de pessoas não negras que, ao temer, se sentem no direito de minar nossos espaços de expansão. E então somos invisíveis, nos sistemas carcerários, nas mortes diárias das favelas, comunidades e periferias. Somos invisíveis nos espaços de cultura, de poder, etc. Somos invisíveis não, somos invisibilizados. Somos apagados e na maioria das vezes sob os discursos dos hipócritas.  

Quando penso no número de políticos que se dizem antirracista mas que não dão trabalhos a pessoa negra, ou quando empregam, o fazem com valores de pagamento inferior ao restante da equipe e que, ainda assim, em épocas de eleição e de aparição, sempre trazem à tona o discurso do branco salvador, mas efetivamente, hipócrita por natureza. Conhecedor do discurso, ganha a confiança dos menos avisados ou dos de pensamento alinhado. 

Assistindo as mídias o discurso é o mesmo. Muitas ações de levantaram contra o extermínio da população negra nos Estados Unidos e, agora, elas vêm galgando outros espaços. Em Curitiba, tivemos o primeiro ato antirracista. Negros e Brancos nas ruas. Na televisão, nas mídias, o discurso permanece o mesmo. A onda de violência, de vandalismo que é apresentada por correspondentes brancos, narra a realidade através desse mesmo olhar. Caminham pelas ruas junto aos manifestantes, mostram com uma riqueza de detalhes as coisas que estão acontecendo no momento, mas ao finalizar a matéria, o tom ainda é o mesmo. O título da matéria se refere a ação contra o racismo, e termina com a palavra vandalismo. Logo pressupõe a ação de negros e negras. A negritude raivosa. A negritude vândala.

A negritude que, embora tenha motivos, não precisava agir com tamanha destruição contra o Estado. Legitimam a ação desnecessária e violenta da polícia, dos governantes. Normalizam o vandalismo real que dá 80 tiros em um carro; o ato de vandalismo que matou Marielle Franco, uma vereadora negra que lutava pelos direitos da população menos favorecida; que deixa 76 tiros na casa de João Pedro e mata um jovem inocente; que atira contra 4 jovens pobres dentro de um carro tombado no Parolin; o mesmo vandalismo que assiste às mais de 30 mil mortes por COVID-19, diante de um descaso sem precedentes, que está tirando o ar, a vida, de várias pessoas diariamente.  

Não são capazes - por não querer mesmo - de revelar a cólera do Estado, do país, tal qual ela é, porque isso também os poria em risco. Essa ação antirracista sendo posicionada, a argumentação do porquê, como e quando, confrontaria seus próprios ideais. Confrontaria o seu próprio posicionamento racista. E assim, o achismo de alguns brancos são transformadas em fatos. E por que a realidade dos negros não pode ser vista como fato? Por que ela ainda está sendo narrada por esses brancos.  Seria, por acaso, menos violento um ato que prega a o fim da democracia, o golpe militar, o nazismo, o fascismo, a supremacia branca? Conhecemos todas essas histórias e sabemos as suas consequências. Sabemos quantas milhares de vidas foram dizimadas. É por acaso menos violento um presidente que despreza o povo, que prega o ódio, fomenta a guerra civil, que conspira contra a própria constituição?  

A tática mais usada atualmente é a da deslegitimação. Quando não encontram meios de desarticular um pensamento ou uma alegação, dão a este um caráter agressivo. Desumanizam e enquanto depreciam, retiram a sua credibilidade.Esse discurso vem acompanhado da ausência de autocontrole e desvaloriza. A perpetuação desse estereótipo, é uma forma de manter o controle sobre as pessoas. E, repito, esse medo, nada mais é do que o medo capitalista do branco. Medo que o movimento seja capaz de compelir consciências, que seja capaz de mobilizar a totalidade de pensamentos e subverter a ordem. Medo de que a sociedade mude e que sejamos capazes de aceitar a diversidade com equidade.  

Em nosso país, a raiva pelo descaso, pela ignorante ação violenta da polícia, dos Estados, da milícia, dos governantes, está se acentuando. Fato, que durante esse tempo de COVID-19, tivemos todos que sentir o medo da fome, o medo da falta emprego, o medo de não ter como sustentar a família com o básico, de não ter atendimento médico para um familiar querido. Tivemos que assistir pessoas morrendo, famílias procurando os corpos, pessoas implorando pela vida. E diante disso tudo, ver um presidente com a alma lavada pelo ódio, negligente com suas responsabilidades, ironizando todas essas dores do povo brasileiro. Atitudes negligentes que estão matando as pessoas.  

Obviamente, que toda ação traz uma reação. A própria retirada da bandeira, tem um significado que precisa ser analisado. Ainda que haja discordâncias, não podemos nos negar uma reflexão. Quantos veem hoje a bandeira brasileira com a mesma representatividade de antes? Quantos, a veem com o sentimento de patriotismo sendo que hoje ele se revela com uma face fascista e intolerante? Um país que deveria ser de todos, mais do que nunca,  está sendo governado para bem poucos.  

De repente a humanidade teve que entender o que milhões de pessoas estão vivendo há séculos, em especial a população negra e indígena. Tivemos que entender que a Terra não aceita mais os disparates que estamos cometendo sobre seu solo em nome do capitalismo que queima, que fere, que mata e depreda. E ainda, tivemos que compreender que a ação de um afeta a todos, sem distinção.  

E é através desse período, que resumo brevemente, que sentimentos estão sendo gerados em toda a população. É possível que quem esteve ontem nas ruas queimando, quebrando, não entenda sobre ser negro, não entenda sobre ser favelado, mas, certamente, compreenderam o que é ser brasileiro e que essa história é escrita por todos. Estamos no mesmo barco. Estamos todos tendo que reaprender a viver sem tamanhas injustiças, disparidades e sem essa aceitação de situações excludentes, e estamos todos entendendo que é a hora essencial para um basta.  

E uma luta, não deve excluir ou apagar a outra. O genocídio do povo preto. A luta do povo preto não pode ser apagada por qualquer que seja a ocorrência. Não podemos ignorar e nem sobrepor uma luta a outra. A postura antirracistas é isso. Ela não silencia. Ela se soma. E precisamos de todos, não por questões de “privilégios”, mas de consciência.  É necessário que agora a gente faça o dever de casa. Que consigamos olhar para as coisas tais como elas são e não como querem que a gente as veja. As nossas histórias, a história do povo preto, precisa ser contada por nós mesmos. E o povo precisa ser escutado. Precisa cessar com o que está roubando dia a dia o nosso direito de existir. E esse movimento não terá volta, ele é mundial. Isso tudo precisa parar. E a única pandemia agora que devemos aceitar, é a pandemia do direito de respirar.

Edição: Gabriel Carriconde