Rio Grande do Sul

Entrevista

A grande farsa que absolveu Bolsonaro

Morte de Luiz Maklouf, no último dia 16, reascende o interesse sobre seu último livro

Extraclasse | Porto Alegre |
Luiz Maklouf Carvalho, autor de O Cadete e o Capitão - Acervo pessoal

A entrevista que segue, inédita, foi feita em três momentos. Em 26 de agosto de 2019 e num segundo e terceiro contatos realizados em janeiro/fevereiro deste ano com o jornalista e escritor Luiz Maklouf  Carvalho, que morreu no último sábado, 16, no Hospital AC Camargo, na capital paulista, aos 67 anos. Ele lutava contra um câncer de pulmão havia dois anos. Uma postagem de sua filha também jornalista Luiza Maklouf no Facebook faz uma síntese da trajetória humana e profissional ao mesmo tempo em que confirmava a notícia. (Leia a íntegra).

Maklouf nasceu em Belém, no Pará. Trabalhou nos jornais Resistência (durante a ditadura militar), Movimento, Jornal do Brasil, Jornal da Tarde, Folha de S. Paulo e das revistas Época e Piauí. Seu último emprego foi como repórter do jornal O Estado de São Paulo, desde 2016.

Em nota de pesar, a editora Todavia, que publicou seu último livro, O cadete e o Capitão – A vida de Jair Bolsonaro no quartel, objeto desta entrevista,  destaca Maklouf como “um dos maiores repórteres do Brasil em atividade. Apurador meticuloso e incansável, foi autor de livros e reportagens fundamentais. Vencedor de dois prêmios Jabuti de livro-reportagem – Mulheres que foram à luta armada (Globo) e Já vi esse filme: Reportagens (e polêmicas) sobre Lula e/ou o PT (Geração Editorial). Em seu último trabalho retratou a vida de Jair Bolsonaro no quartel, com uma apuração irretocável que revelou fatos controversos da biografia do atual presidente. Uma grande perda para o jornalismo e para a cultura brasileira”.

O Cadete e o Capitão ganha especial importância com eleição de Jair Bolsonaro para a presidência da República no final de 2018, que suscitou uma série de perguntas sobre o momento anterior a seu ingresso na política, no fim da década de 1980 e por que motivos ele abandonou a carreira militar. Bolsonaro tornou-se uma figura pública em 1986, quando assinou na revista Veja um artigo em que reclamava dos baixos salários pagos aos militares. Um ano depois, voltou a aparecer nas páginas da mesma Revista, só que desta vez em reportagem que apontava um plano terrorista que visava explodir bombas em locais estratégicos do Rio de Janeiro.


Capa do livro / Todavia/Divulgação

Para realizar o livro, Luiz Maklouf Carvalho se debruçou sobre a volumosa documentação do processo e as mais de cinco horas de áudio da sessão secreta – ambos disponíveis nos arquivos do Superior Tribunal Militar (STM). Também entrevistou diversos personagens que atuaram no caso, entre jornalistas de Veja e militares colegas de Bolsonaro.

A reportagem de Maklouf publicada em O cadete e o capitão reconstitui um episódio decisivo não apenas para a trajetória do presidente eleito em 2018, mas também para o entendimento do fazer jornalístico, acerca da redemocratização do país e sobre o momento atual.

A entrevista que segue é, se não a última concedida pelo autor, uma das últimas e detalha o conteúdo de um livro que coloca em dúvida o resultado alcançado pela Justiça Militar, demonstrando claramente, que pode ter ocorrido uma grande farsa.

Extra Classe – Como o senhor situa a importância do seu livro-reportagem O cadete e o Capitão, sobre o julgamento de Jair Bolsonaro, que resultou em sua saída do Exército, e que aborda também a cobertura da imprensa na época?

Luiz Maklouf – A gente tem um presidente da República que foi eleito sem que episódios e fatos importantes da sua vida, de uma maneira geral, fossem examinados, aprofundados e discutidos. Seja pelo motivo que for, essas histórias nunca foram esclarecidas. Depois levou aquela facada. Houve recusa em participar dos debates que poderia ter participado. O período eleitoral foi pequeno. Antes disso, ele era um deputado federal do baixo clero sem muita visibilidade. Então, sabia-se das histórias, que a mídia publicou várias vezes sobre esse período militar e sobre essas encrencas em que ele se envolveu no período em que foi do exército, mas tudo era muito confuso. Ou seja, uma ótima história mal contada, contada de maneira confusa ou, diria até, contada parcialmente.

EC – Para alguns, passa a até por lenda urbana, dada a enxurrada de fake news e guerra de versões.

Maklouf – Há debates que participei em que as pessoas contam coisas incríveis do tipo: “ele não era capitão” ou “isso é mentira”. Ou seja, tem ou tinha uma cortina grossa encobrindo essa história. E, eu digo tinha, porque sem falsa modéstia o meu livro esclarece essas histórias referentes ao período militar. São duas histórias que foram, na época, gravosas e que deram muita mídia e muito barulho e, que justamente tiraram Bolsonaro do anonimato, que ele, assim como milhares de oficiais do exército, vivia no quartel.

EC – E que tipo de oficial ele era?

Maklouf – Ele era um oficial que se destacava pelas atividades físicas e atléticas. Tinha muitos elogios nessa parte. O apelido dele na academia das Agulhas Negras era Cavalão. Do ponto de vista das disciplinas de conteúdo ele foi um aluno razoável. Poucas notas boas, mas na maioria razoáveis. Era um ilustre desconhecido como outro qualquer, que estava lá para cumprir suas obrigações como militar. Isso, até o artigo dele publicado na revista Veja, em setembro de 1986, intitulado O salário está baixo. Aquilo, do ponto de vista do regulamento militar foi considerado um atrevimento e uma desobediência. Era algo inadmissível dentro da hierarquia militar. Nesse período, ele já era capitão, paraquedista, casado e com três filhos. Trata-se de um artigo assinado na última página da revista de maior circulação do país. Foi um deus-nos-acuda. Bolsonaro ganhou seus primeiros 15 minutos de fama. E lhe rendeu também uma prisão disciplinar por 15 dias. Do ponto de vista militar, foi considerado uma transgressão grave. Esse texto está transcrito no caderno de imagens do livro, assim como grande parte dos documentos aos quais eu vou me referindo. Aliás o que é essencial para a compreensão dos episódios está lá.

EC – Uma das características do seu livro é a farta documentação.

Maklouf – Eu fiz questão disso, porque assim o leitor vai lá e consulta, se quiser. Não fica só com a interpretação. Inclusive, as matérias de Veja estão integrais. Laudos grafotécnicos.

EC – O contexto da época era de pós-abertura, metade do Governo Sarney e o caldo político não era tranquilo.

Maklouf – Sim, era o primeiro governo democrático depois da ditadura. Era um momento importante da história do país. A ditadura, de uma maneira ou de outra havia sido derrotada e não existia mais. E neste artigo a que me refiro há um ataque direto à política econômica do governo e à autoridade do Ministro do Exército que se chamava Leônidas Pires Gonçalves. Era um momento de algumas manifestações pontuais aqui e ali. Em 1986, a publicação do artigo foi algo que se destacou por si só e não teve paralelo. Um ano depois, a Veja publicou em uma matéria que Bolsonaro havia contado para sua repórter Cássia Maria Rodrigues, que ainda descontente com os soldos baixos, tinha um plano terrorista chamado Beco sem Saída em que ele ameaçava explodir bombas em unidades militares em protesto contra esses baixos salários. Veja publicou isso. A matéria fez muito barulho.


“Ele era um oficial que se destacava pelas atividades físicas e atléticas. Tinha muitos elogios nessa parte. O apelido dele na academia das Agulhas Negras era Cavalão” / Todavia/Divulgação

EC – Inicialmente Bolsonaro teria pedido sigilo e a reportagem e editores da Veja acharam que era fato de interesse público. O que dá para entender a partir daí?

Maklouf – O que dá para entender é que Bolsonaro era uma fonte da repórter. A partir do artigo, em 1986, ele teria se tornado uma fonte dela. Segundo relato da jornalista, em seu depoimento, tudo leva a entender que Bolsonaro seria uma fonte. E numa dessas conversas, mais para 1987, ela conta que, em se tratando de uma ameaça terrorista de alta gravidade, era obrigação de um jornalista divulgar, e eu concordo com essa avaliação de não compactuar com esse segredo tenebroso. Veja reafirmou a denúncia em uma segunda reportagem depois de ter sido desmentida, tanto pelo capitão Bolsonaro e pelo colega dele, que era coparticipe do plano, segundo a versão de Veja, quanto pelo Ministro do Exército da época. Veja, portanto, havia sido desmentida cabalmente. A Revista, então, publicou os dois croquis do plano, reafirmando que os mentirosos eram os dois oficiais, e que o Ministro do Exército acreditava em dois mentirosos, revalidando a denúncia de sua repórter. A partir desse momento, a coisa bifurcou. Bolsonaro dizia que Veja mentiu. Veja reafirmava que Bolsonaro é quem mentiu. Só restava uma forma de apurar os fatos, que era judicializar militarmente o caso. Foi o que ocorreu. E o meu livro, principalmente da metade para o fim, se detém em grande parte, em mostrar didaticamente, com começo meio e fim, nos mínimos detalhes e de uma forma agradável ao leitor, para não ficar muito chato, as três fases dessa judicialização.

EC – E o General Newton Cruz nisso tudo? Afinal existem relatos de encontros dele com Bolsonaro e seus parceiros. Inclusive de jantares na casa do general. E que ele, Newton Cruz era simpático à causa do capitão. Se falava em criar uma situação ideal para uma eventual candidatura para João Figueiredo nas eleições seguintes. Como essa história é abordada no livro?

Maklouf – Essa judicialização militar teve uma sindicância que não deu em nada e teve um julgamento por um Conselho de Justificação (uma espécie de primeira instância) em que Bolsonaro perdeu por três a zero, que dizia que quem mentiu foi o capitão Bolsonaro e que Veja dizia a verdade. Tudo porque dois laudos grafotécnicos acusavam o capitão de maneira peremptória como sendo o autor dos mesmos, inclusive do croqui da bomba que seria colocada na adutora do Guandu, no Rio de Janeiro. Baseado nesses dois laudos grafotécnicos, que constam como prova nos autos, ele foi condenado. Nessa instância aparece o nome dessa figura citada na pergunta, o general Newton Cruz. Na época, ele se encontrava na reserva e notoriamente conhecido pelas suas atividades no período da Ditadura, controversas e autoritárias.


O general Newton Cruz foi testemunha de defesa arrolada por Bolsonaro / Divulgação/FGV/Reprodução

EC – Inclusive, ele respondeu pelo assassinato do jornalista Alexandre Von Baumgarten e chegou a ser acusado de participação no atendado a bomba do Rio Centro em 2014, que prescreveu.

Maklouf – Sim, e é sempre bom dizer que ele respondeu e foi absolvido. Precisamos levar em consideração o resultado final, senão não vale. Isso para qualquer um: para você, para ele e para mim. Uma figura controversa e de posições claramente autoritárias.

EC – E na caserna Newton Cruz era contrário ao General Leônidas?

Maklouf – Sim. O generalato que tinha sido derrotado pela Democracia que estamos falando. Isso inclui o Newton Cruz.

EC – A gente fala de Forças Armadas como sendo uma coisa só, mas eles têm lá suas correntes internas como qualquer instituição.

Maklouf – Tanto ontem, como hoje. Não tenhamos dúvidas quanto a isso. Isso é essencial para mostrar a cereja do bolo do livro depois, que é questionar o resultado do julgamento, que ocorre depois destes três a zero.

EC – Mas, voltemos ao Newton Cruz.

Maklouf – É essencial para entendimento dos desdobramentos do caso, porque Bolsonaro o arrolou como testemunha de defesa. Bolsonaro quando esteve em Brasília, participando de um exercício, pegou uma turma de capitães e levou até a casa do general para conhecê-lo. O general Newton Cruz então considerou ter sido uma noite “retemperante”, por ter se sentido homenageado. Isso demonstra mais uma vinculação, já naquela época, ao espírito militar da ditadura que foi derrotado pela democracia. E que vai ser essencial na terceira fase do caso. Ele perdeu por três a zero e o caso subiu para uma instância superior, que é o Superior Tribunal Militar (STM), a maior instância dessa área. Subiu o endosso de mérito – que não precisava ter dado mas deu – do general Leônidas ao resultado adverso para o capitão Bolsonaro. Ou seja, o Ministro do Exército assinou embaixo, concordando com o resultado.

EC – Em algum momento Bolsonaro teria comparado Leônidas a Pinochet, procede essa informação?

Maklouf – Chamou de Pinochet, de racista e mais alguns adjetivos pesados. Segundo relato da repórter, ele ofende bastante o general Leônidas, que foi uma espécie de pivô da história, porque ficou em uma situação difícil. Em determinado momento, ele veio a público e disse, “acredito nos meus oficiais”. Ou seja, acreditou no desmentido do Bolsonaro. Quando o Conselho de Justificação o condena, baseado nos laudos grafotécnicos conclusivos, o ministro passa vergonha. Inclusive, tem a dignidade de vir a público naquele momento e pedir desculpas. Fez uma autocritica, dizendo que a revista Veja é que estava certa e que ele estava errado. Assim, ele endossou no mérito dessa sentença de três a zero. Mas, por força de lei subiu para o STM e de lá, e essa é, digamos, a parte mais importante do livro, o Bolsonaro reverteu essa derrota por um resultado favorável a ele de nove a quatro.


Bolsonaro ainda cadete, em foto com seus familiares. Imagem dos arquivos do Estadão publicada no livro / Todavia/Reprodução dos Arquivos do Estadão

EC – Dá para dizer que seu livro coloca esse resultado final em xeque?

Maklouf – O meu livro questiona esse resultado de absolvição. Ele afirma baseado nessa documentação, que o TSM julgou de forma contrária às provas dos autos. Trata-se uma documentação em papel, com mais de 700 páginas, tudo oficial e carimbado como “reservado” e disponível no STM, e mais áudio da sessão secreta em que Bolsonaro foi julgado em 16 de junho de 1988, quase 32 anos atrás. Para um repórter, é como você encontrar um tesouro. É ter acesso a uma coisa secreta de um tribunal militar. A maioria dos ministros foram indicados durante a ditadura militar, portanto esse espirito de corpo que o Bolsonaro pertenceu foi determinante no julgamento. E pelo fato de terem feito vistas grossas de maneira ostensiva à prova técnica dos autos, que são os laudos. Então, o Bolsonaro levou para o Tribunal, ele próprio, sem advogado, uma ideia estapafúrdia de que havia um empate entre quatro laudos. Esse empate dois a dois, In Dubio Pro Reo, o beneficiaria. O que era uma falácia e o Tribunal acatou essa falácia. Eu demonstro, no livro, com essa documentação, que o Tribunal julgou contra a prova dos autos e cometeu um erro grave. Deveria tê-lo considerado culpado e não o absolvido.

EC – Existe algum momento do julgamento que torne isso mais evidente. Que demonstre algum tipo de acordo ou negociação que levasse a esse resultado? Ou é mais uma daquelas coisas que não dá para afirmar, mas que fica no ar?

Maklouf – Olha, eu uso, no livro, o verbo aventar. Aventar significa que, baseado nessa documentação farta, que foi bastante trabalhada por mim; nesse áudio, ouvido por mim diversas vezes, você fica se perguntado: mas poxa, e os dois laudos contra o capitão, por que os ministros não falam nisso? Por que eles ignoram? E com todas essas outras interpretações, as ligações dele com o general Newton Cruz foi a resposta que eu dei para essa pergunta.

Eu avento que houve um grande combinado para preservá-lo, para não o condenar, desde que ele saísse do Exército, onde aliás ele não iria muito longe porque ele já tinha uma prisão e o currículo não era lá essas coisas. Inclusive, ele se candidatou naquele mesmo ano a vereador na Câmara do Rio de Janeiro. Fica claro para o leitor, quando vou mostrando intervenção por intervenção, ministro por ministro, como eles trataram essa questão dos laudos.

EC – O que foi desconsiderado pelo STM?

Maklouf – Essa parte da Veja, da repórter, dos editores da maior revista do Brasil, não foi sequer tocada no julgamento, a não ser muito de passagem. Porque esses jornalistas todos foram – assim como os capitães e colegas de Bolsonaro, generais e oficiais – também convocados a prestar depoimentos. Uma das entrevistas importantes é com o então editor assistente da revista Veja no Rio de Janeiro, o Ali Kamel, que hoje é o diretor de jornalismo da TV Globo. Ele acompanhou aquilo de perto e hoje tem essa posição proeminente na Rede Globo. Eu procurei montar esse quebra-cabeças com todas as partes encaixando de uma maneira completa. Eu espero que o leitor do livro saia informado. É um livro sóbrio, de pouquíssimos adjetivos e muito objetivo. Não entra nessa lamentável guerra panfletária que a gente está vendo aí.

EC – Isso a sua própria biografia como jornalista comprava. Até por episódios que envolveram matérias suas com o próprio Lula, que chegou a restringir sua presença em determinadas coberturas. Aliás, eu gostaria que o senhor explicasse aos leitores como é a busca do repórter por isenção apesar de ser impossível a imparcialidade.

Maklouf – Eu, como todo repórter, como todo jornalista, gosto de histórias maravilhosas, de histórias ótimas ou no mínimo de boas histórias. Não dá para ficar perguntando se vai atrapalhar alguém, fulano, beltrano ou partido A, B ou C. E isso é independente de qualquer simpatia que você possa ter. Eu jamais troquei, troco ou trocaria uma bela história por conveniência nenhuma. Só quero que ela seja bem contada. Sou dessa geração. Quanto mais fatos e papelada e consistência melhor. Sigo nessa linha desde o começo da carreira. Tem uma matéria que fez muito barulho na época, que foi a revelação da Lurian, filha de Lula no Jornal do Brasil, onde eu trabalhava na época. Isso foi em 1989. Fui eu quem deu esse furo. Aliás, modestamente foi um furaço. Mas também, paguei meus pecados. Depois fiz diversas matérias sobre o PT, inclusive sobre atos antiéticos, coisas pontuais aqui e ali. Escrevi um livro sobre essas reportagens. Ganhei um prêmio Jabuti. O livro se chama Já vi esse filme, sobre o Lula e PT. É um livro de 600 páginas. Depois teve a Dilma. Fiz uma matéria mostrando que não era verdadeira a história de ela ter feito mestrado na Unicamp. E, paralelamente fiz, imagino que a única, entrevista da Dilma sobre a tortura. Que é uma entrevista com lágrimas de sangue, literalmente. Então, meu ponto é esse, uma história boa. O leitor ganha quando a gente vai jogando luz. “O melhor detergente é a luz do sol”, já dizia Louis Brandeis, Juiz da Suprema Corte norte-americana, um século atrás. Quanto mais transparência melhor. No caso desse livro, O Cadete e o Capitão, estamos falando do presidente da República. É uma coisa meio assustadora.

EC – E parece que fica muito claro, no próprio livro, que desde sempre ele tenta criar em torno dele uma aura de mito, para se tornar mais aceito. Também tem o episódio da ida dele ao garimpo. Como o senhor, depois de concluído o livro, define o Jair Bolsonaro?

Maklouf – Olha, eu tenho tentado evitar de fazer essas comparações. Eu sou repórter. Não sou analista político. Eu me atenho aos fatos em si e neste período determinado da história. Tem o episódio que ele foi ao garimpo com colegas militares, que é dessa época. O que não tem nada demais. Trata-se de uma atividade totalmente legal. O que existe é que um comandante dele, na época, que somando outros elementos, entendeu que essa ida ao garimpo mostrava uma pessoa de ambição excessiva.

 


Bolsonaro usava tecidos de paraquedas usados para confeccionar bolsas, o que teria levado às primeiras advertências / Reprodução/Todavia/Divulgação

EC – Também teve o episódio das bolsas fabricadas com tecido de paraquedas pertencente ao Exército.

Maklouf – O livro mostra que ele tinha uma certa dificuldade e que em alguns momentos tinha uma preocupação com ganhar dinheiro. Num determinado momento ele fazia bolsas com os paraquedas usados. Eles mandavam o alfaiate do quartel fazer essas bolsas para vender. E isso era proibido. Ele foi advertido e parou. Depois ele foi para a fronteira do Brasil, no Mato Grosso do Sul, que é um período obscuro ainda desse período militar. O que ele foi fazer lá ninguém sabe. Mostro no livro apurações de que ele uma época tentou plantar arroz não deu certo. Plantou melancia e funcionou. Fez contrabando para o Paraguai. Ele tinha dessas coisas. E tem esse coronel Pelegrino, que fez a crítica por escrito sobre a excessiva ambição do Bolsonaro. E isso foi em 1983. Cinco anos depois, no processo, ele não só mantém as críticas, como ainda agrava suas críticas, acrescentando tratar-se Bolsonaro de um oficial com problemas de comando. Que achava que era o rei da cocada preta, mas não era. E esse coronel foi para Bolsonaro sempre uma pedra no sapato.

EC – Mas ele tinha também no generalato quem o protegesse. Se fala que tinha um general que era mais amigo dele e que pesava nas decisões contra ele. Quem seria esse general na época?

Maklouf – Não há um levantamento preciso sobre isso. Os que vêm a público, são notórios. Um é este que você mencionou, o general Newton Cruz. Também, João Batista Figueiredo, que foi o último presidente da ditadura, e depois que o Bolsonaro foi eleito vereador no Rio, mandou uma carta de congratulações. Evidentemente, que neste caldo aí tinham outras viúvas da ditadura. Do outro lado da hierarquia há o episódio, que é público, do conceito que o general Ernesto Geisel, que foi o penúltimo presidente da ditadura, tinha do capitão. Ele afirmou que Bolsonaro era um mau militar. Isso também está registrado no livro. Não há uma unanimidade, nem para um lado, nem para o outro. Até hoje, parte da oficialidade o admirou pela rebeldia e pela polêmica e parte o execrou pelas mesmas razões. Sempre se considerando que hierarquia é um princípio fundamental nesse meio. Minha impressão, e apenas uma impressão, é que os militares, que cercam o presidente hoje, sequer têm informações detalhadas sobre esses episódios que eu conto no livro.

EC – E muitos estão com ele desde aquela época.

Maklouf – É que foi uma coisa muito fechada. Não é como hoje que tudo ganha publicidade e que hoje você vai lá no STM e está tudo à disposição. Naquela época eram todos documentos reservados.

EC – Bolsonaro aposta na confusão e na ficção sobre si?

Maklouf – Uma das coisas que iguala ele lá atrás e ele hoje é que, tanto o capitão quanto o presidente, tem extrema dificuldade de lidar com o contraditório. Parece que ele faz questão da confusão sobre isso. Ficou ofendendo a jornalista dizendo que ela era incompetente, que tinha sido demitida da Veja. E provo no meu livro que isso não é verdade. Ele nunca falou de uma forma transparente sobre o fato, como foi criando uma série de histórias ficcionais sobre si próprio.

Uma dessas histórias, e que salta mais à vista, é a que ele diz que ajudou o exército a combater e capturar o capitão Carlos Lamarca no vale da Ribeira. Isso é uma coisa que não tem a menor evidência de que seja real. É uma bazófia a rigor. Há outras histórias que ou são exageradas ou simplesmente não são verdadeiras. O que o livro mostra é que, neste período, esta característica do atual presidente já era muito evidente.

EC – Ele já demonstrava nessa época uma intenção de ir para a vida política?

Maklouf – Eu entrevistei, para o livro, o coronel que era o comandante dele na época, que parece, se não o primeiro, mas foi um dos primeiros a sugerir isso para ele. E, consideremos que o filme dele estava queimado no exército. Não é um exagero dizer que dificilmente ele iria longe na carreira militar. Ele tinha uma prisão. Tinha se envolvido numa polêmica pública. E, uma polêmica gravosa, que envolvia um plano de soltar bombas em quartéis e adutora. Ele concorreu na eleição de 1988 e, só depois de eleito, pediu para entrar para a reserva. E até é possível cogitar que se ele não tivesse sido eleito, permaneceria militar.

EC – Tem um momento que Bolsonaro reencontra o Ali Kamel durante o debate para as eleições presidenciais em que manifesta que a revista Veja o catapultou para a política.

Maklouf – É um episódio que conto, que é bem atual. De quando Bolsonaro foi participar da entrevista com os presidenciáveis, com a Renata Vasconcellos e com o William Bonner. Nessa ocasião, ele encontrou muitas pessoas da emissora em uma sala. Entre essas pessoas, o Ali Kamel, diretor de jornalismo. E ele mesmo, o Bolsonaro, virou-se para Kamel e falou: “Ali, a gente já se conhece né, de 1987? ” Então, o Kamel lembrou-se da história e disse: “sim, eu tinha 25 anos na época”. Nesse momento, Bolsonaro teria dito, conforme a pessoa que me contou essa história, “não tem problema, sem mágoas”. Nisso, Kamel rebate, “como assim sem mágoas? Não fosse aquele episódio o senhor não teria aparecido para a política”. Isso mostra que essa história ainda está muito presente na cabeça dele e foi importante na sua vida. E, mais uma vez ele faz uma referência torta ao caso. O que o meu livro prova, no final das contas, é que a Veja estava certa ao atribuir a ele o croqui da bomba.

EC – Com o livro, deixa de ser uma história mal contada e passa a ser bem documentada. Pena que alguns personagens, entre eles o próprio Bolsonaro, não quiseram lhe conceder entrevistas?

Maklouf – O principal deles, o hoje presidente. Insisti muito desde antes, quando ele ainda era candidato, já no começo da apuração, para que fizéssemos uma entrevista detalhada sobre esse assunto. Enfim, tentei todos os caminhos possíveis de assessoria e pessoas próximas a ele, desde coronéis, amigos e pessoas que convivem com ele no dia a dia. Usei todos os meios que um repórter pode usar para conseguir uma entrevista com alguém. Ele não concedeu. O mesmo ocorreu com a repórter Cássia Maria, da Veja, que também não deu. Tentei da maneira que pude e tanto ela quanto o fotógrafo da revista, que participou da reportagem na ocasião. Nenhum dos dois quis dar entrevistas. No caso da Cássia Maria, eu tenho interlocutores que falam com ela e ela tem dito a essas pessoas que não toca mais no assunto porque tem medo. Então eu não vou entrar no mérito.


Antes da entrevista na TV Globo com William Bonner e Renata Vasconcellos, o ainda candidato Jair Bolsonaro reencontrou Ali Kamel, diretor de jornalismo da emissora / Reprodução/YouTube

EC – Ela chegou a receber ameaças de morte na época, não?

Maklouf – Mas aí tem os dois lados. Ela diz que o capitão fazendo esse gesto da arminha, que ele adora fazer até hoje, por trás de um vidro, a ameaçara. Que dava para para ver de outra sala quando ele a teria ameaçado de morte, enquanto ela foi prestar depoimento. Por outro lado, o capitão Bolsonaro negou peremptoriamente que tenha feito ameaça. Inclusive, pediu de maneira formal, que fosse feita uma perícia no vidro da sala, porque segundo ele seria um vidro canelado, e que, portanto, ela não poderia vê-lo fazendo esse sinal. O fato é que essa perícia estranhamente nunca foi feita. O coronel que comandou esse processo entendeu que não era necessário. Objetivamente falando, ficou uma palavra contra a outra. Aliás, seria um bom assunto, se ela tivesse dado a entrevista. E, com ele também. Seria uma chance de esclarecer algumas lacunas que ainda ficam sobre essa história. Uma pergunta que certamente eu faria, seria: “mas, poxa, como é que o senhor conseguiu convencer o tribunal de que havia um empate entre esses quatro laudos?” Eu colocaria a íntegra dos laudos na mesa bem na frente dele diria, “me mostre onde existe empate aqui. Aqui tem um dois a zero contra o senhor”. Continuo bastante curioso quanto a isso.

EC – Inclusive, havia laudo da Polícia Federal?

Maklouf – Sim, o laudo decisivo foi o laudo do órgão que sabe fazer laudo, o Instituto de Criminalística da Polícia Federal. Ficaram algumas lacunas, que obviamente trariam mais contribuições e completariam partes da história. Mas eu acho, que de maneira geral, no essencial, acho que o leitor sai do livro com uma sensação de “que bom, agora eu sei o que aconteceu”. Como ele tem lá as íntegras dessas reportagens todas, os laudos, as documentações relevantes, é um livro que dá para ele ler e reler, conferir os documentos, olhar as imagens e chegar à conclusão dele. Que é esse o objetivo dos jornalistas.

EC – Muita gente não tem clara essa trajetória política de Bolsonaro e nem de suas ligações com a política do Rio e no Congresso.

Maklouf – Reforça minha ideia de que temos um presidente cujo conhecimento público sobre ele é muito pequeno, sobre as atividades que ele se envolveu ao longo da vida, né? Seja porque durante muitos e muitos anos ele foi um deputado que realmente nunca se destacou, a não ser nos momentos em que vinha ameaçar as pessoas e elogiar a tortura. Essas coisas abomináveis. Fazendo um paralelo com o Trump, lá nos EUA, a transparência foi maior. Tem um livro sobre ele, chamado Revelando Trump, que foi fruto de uma entrevista longa feita em vários momentos, de vinte horas dele com jornalistas do Washington Post, que botou uma equipe de mais de 20 repórteres durante três meses para levantar o máximo possível de coisas, considerando a intempestividade da candidatura. E, para o bem ou para o mal, achando bom ou achando ruim, ele sentou-se com esses jornalistas e concedeu essas entrevistas, que somando tudo dá 20 horas de conversa. Se formos comparar com Bolsonaro durante a campanha não chegamos a essa soma de jeito nenhum. Aqui tivemos muito pouco. Acho que grande parte da vida dele precisa ser melhor esclarecida, começando com a carreira parlamentar. Acho que é preciso fazer livros ou reportagens aprofundadas sobre isso. Inclusive, que tipo de vereador ele foi. Como foi sua trajetória como deputado. Quando ele começa a acrescentar na biografia essas alusões à tortura? Acho que isso daria um retrato muito mais completo dele. Tem mais essa coisa da atividade no Rio de Janeiro, essa estranha ligação com esses milicianos. Alguns deles condenados, e que até hoje não há transparência sobre isso. Como eu já disse. O presidente tem problemas em sentar para conversar e enfrentar temas contraditórios e perguntas difíceis. Eu cito um exemplo no livro, da entrevista dele com o Rubens Valente da Folha (de São Paulo), que está no YouTube, que mostra como ele reage quando as perguntas são sobre coisas que o desagradam. No caso do Rubens ele só não bateu no repórter por sorte. Mas chegou bem perto disso. O repórter teve um comportamento digno. Enquanto o presidente deu uma aula de ignorância, o jornalista teve um comportamento tranquilo. É um exemplo de como ele tem dificuldade. Qual é o problema de sentar com o repórter que está fazendo um livro sobre ele? Ele foi fartamente avisado de que eu estava fazendo o livro. Por que não sentar e dizer, olha isso não foi assim, foi de outra forma, que isso ou aqui não é verdade? Obvio que diria, não, presidente, mas está aqui o documento, que prova a verdade. Entendeu?

EC – Essa esquiva parece uma tentativa de não legitimar, não seria isso?

Maklouf – Eu acho que mais do que isso, essa esquiva é no sentido de aproveitar a confusão. Porque, parece que ele entende que essa confusão tira votos de um lado, mas coloca votos de outro. Em vez de dizer, como ele foi perguntado algumas vezes ao longo da vida, foi o senhor que desenhou o croqui com a ameaça de bomba? Ele podia dizer que não. As respostas são sempre curvilíneas. Já foi perguntado a ele se a repórter mentiu e ele não respondeu de maneira clara.

EC – Sobre isso, ele afirmava em seu artigo para Veja que muitos cadetes estavam abandonando a Academia por conta dos baixos salários. E a Revista afirmava que também havia questões ligadas a homossexualismo e drogas e ele rebateu que a Revista mentia sobre esses pontos.

Maklouf – Esses motes já eram daquela época, essa questão preconceituosa mesmo, são um pouco a origem do artigo. E depois dessa prisão ele se recolheu. Ele ficou satisfeito ali com a repercussão que deu. Virou uma pessoa famosa, ao menos no ambiente dele, mesmo que não com unanimidade. Mas, com certeza obteve alguns apoios por suas posições. Nesse segundo momento de 1987 já haviam outros focos de rebelião militar, isolados. Teve o caso de Apucarana, que o capitão, colega dele, invadiu a prefeitura. Havia um momento de ebulição que deixava o general Leônidas em palpas de aranha com a hierarquia dos quartéis. Essa questão do Leônidas é uma questão chave, porque quer goste dele ou não, ele era o primeiro ministro do Exército na era democrática. Ele teve uma série de problemas. Se bateu com a Constituinte algumas vezes, mas dentro de um regime democrático. Ameaçava. O doutor Ulisses Guimarães vinha e reagia. Há uma grande diferença entre uma ditadura e uma democracia, mesmo que problemática e insuficiente como a nossa, naquele momento. Mas é uma diferença de qualidade essencial. E esse pessoal todo do Bolsonaro representava esse espírito derrotado dessa direita militar que havia sido colocada para fora do poder. E, naquele período ali, eles estavam inconformados. Tudo que pudessem fazer para atrapalhar eles faziam.

EC – E esse espírito revanchista dessa ala da caserna, o senhor não sente ainda muito forte neste Governo?

Maklouf – Não é que eu não sinta. Eu não me sinto é autorizado a afirmar. Em princípio eu até responderia que não, porque é uma geração que já está historicamente bastante distante disso. Não vejo que o entusiasmo seja o mesmo de gerações militares anteriores. Acho que virou uma coisa mais retórica do que de fato. Essa turma que está aí hoje é outra turma, mas claro, uma turma bastante fiel àquele espírito de um golpe que derrubou um presidente constitucionalmente eleito. Acho que não é correto fazer uma transposição mecânica desses dois momentos, 1964 e agora. Há semelhanças, mas esse pessoal de hoje também foi pouco estudado e não se sabe exatamente as conexões todas. Nunca vi nenhum desses oficiais, desses generais, que estão com ele no governo falar, por exemplo, sobre essa história do artigo da Veja, da ameaça de bomba. O livro, desde o lançamento não recebeu nenhuma palavra de contestação do outro lado. Talvez por este livro ter essa característica de ser um livro sóbrio e em cima de fatos. O panfleto não ajuda ninguém em nada. Sempre é muito melhor a gente colocar os fatos. Simples assim, depois do trabalho feito as pessoas tem um bom material para saber mais sobre um determinado fato e isso ajuda a esclarece-lo. É este o espírito que o jornalismo. Enfim é isso que devemos continuar perseguindo.

Edição: Extra Classe