Paraná

CONTO

Ignorância bem-intencionada

Mas ele não tinha rosto, história, sonhos ou traumas

Curitiba (PR) |
História triste e violenta, infelizmente comum na periferia brasileira - Giorgia Prates

Assisti Cidade de Deus, novamente, hoje, anos depois. Criança negra que cresce na velocidade de sua bestialidade. Sem mãe, pai ou história, inicia matando, continua chacinando e termina morto por outras crianças que prometiam ser a continuação.
Levantei do sofá incomodado, queria saber a caminhada do mano que carregava tanto sofrimento e revolta em cada semblante. Mas ele não tinha rosto, história, sonhos ou traumas. Nasceu para ser alegoria, leão no conto do caçador.
Lembrei da primeira figura matadora do lugar em que nasci. Oswaldo era seu nome. Tirado desde criança pelo mesmo folgado do bairro. Trabalhador, “jurão sem sorte”, pais catadores de latinha. Sua casa na beira da valeta adornada pela miséria era o palco da revolta.
Cresceu até que seu ódio explodiu. Aí o rapaz que o humilhava constantemente pela sua condição de extrema pobreza virou alvo. Foi o primeiro a morrer. Depois outro, depois o policial que já havia feito fama de matador na vila.
História triste e violenta, infelizmente comum na periferia brasileira.
Contei isso a um amigo universitário. Ele, em tom de triste afetação, exclamou: “é triste o que fazem com a juventude negra nesse país!” e me olhou, esperando a devida aprovação.
Eu, desde sempre convencido de que estava falando com um “religioso da doutrina da ignorância bem intencionada”, respondi:

- O cara é branco.

 

Edição: Pedro Carrano