Soberania alimentar

Alimentação escolar em tempos de pandemia: como mantê-la?

Campanha Nacional pelo Direito à Educação lança guia para pais e gestores à frente da comunidade escolar

Brasil de Fato | Belém (PA) |

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Produtora de Santa Bárbara do Pará, na III Feira de alimentos orgânicos do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem-Terra (MST), na capital paraense. - Catarina Barbosa/BDF

O quinto volume da Campanha Nacional pelo Direito à Educação dedicou a edição à defesa da alimentação escolar no contexto da pandemia da covid-19. O documento reúne recomendações e orientações para atuar não só no âmbito individual, mas no coletivo. 

O material foi elaborado pela campanha em parceria com o Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) e o Fórum Brasileiro de Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (FBSSAN). O Brasil de Fato convidou Simone Magalhães, do setor de educação do MST para dar mais detalhes sobre o documento. 

Brasil de Fato: Simone, qual é o objetivo do guia?

Simone Magalhães: O objetivo do quinto guia, que é sobre alimentação escolar, é exatamente compilar uma série de informações, dados e links úteis, disponíveis em fontes confiáveis. Além disso, ela também elabora algumas recomendações acerca deste tema, e orienta sobre a importância de atuar para além da ação individual. Ou seja, nesse momento, a ação coletiva deve ser a referência.

Para quem é direcionado?

Para a comunidade escolar: professores, diretores e profissionais da educação. Ele também está direcionado para família: mães, pais, responsáveis, tios, tias, primos, enfim, todos os que compõem a estrutura familiar, e quem cuida das crianças e adolescentes, além dos tomadores de decisão do poder público. 

Como é possível dar prioridade para o coletivo dentro de um contexto de isolamento social como o da pandemia da covid-19?

A gente tem entendimento que, a despeito do isolamento, do distanciamento, da quarentena, está sendo colocado para nós o desafio de pensarmos alternativas coletivas para enfrentar a pandemia e superar as consequências danosas. 

A pandemia e toda essa crise econômica e sanitária colocada não só para os brasileiros, mas para todas as pessoas do mundo não tem uma saída fácil, não tem uma única fórmula. Portanto, está colocado, para o conjunto da classe trabalhadora, para aquelas e aqueles que estão preocupados com as vidas, o desafio de, efetivamente, pensar alternativas, fazer um diálogo, refletir sobre a pandemia e as possibilidades de superação dessa crise. Reforço: a saída não é individual, é coletiva, e coloca para os movimentos sociais, entidades, organizações que se vinculam com a defesa dos direitos, o desafio de pensar saídas. Esse desafio é para todo mundo. 

O que está sendo feito hoje com relação à alimentação escolar? Estamos em um momento em que as aulas estão suspensas, e as crianças que estão recebendo algum tipo de alimento é graças a que, por pressão dos movimentos populares, os governos acabaram atendendo a reivindicação de garantir a alimentação escolar. Como se trabalha isso dentro do contexto da covid-19?

A lei 13.987, de abril de 2020, alterou a lei 11.947 de 2009 para autorizar, em caráter excepcional, a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos com recursos do PNAE aos pais e responsáveis. Para regulamentar a aplicação desta lei foi expedida a resolução nº 2, de abril de 2020, do Ministério da Educação, e do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação [FNDE], autorizando a distribuição de gêneros alimentícios adquiridos no âmbito do PNAE para as famílias. O que gente observa é que, a despeito da lei, está havendo uma diversidade de soluções sendo adotadas no país. Então, há estratégias, em implementação, que contemplam essa legislação, porém há outras, especialmente nos estados aqui no sudeste e municípios de grande porte, que com recursos próprios estão um pouco na contramão dessas orientações; na medida em que eles optaram pela distribuição de renda e não de alimento, através de esquemas que tendem a focalizar o repasse às famílias beneficiárias do programa Bolsa Família. 

Simone, como se deu a participação do MST e do Movimento dos Pequenos Agricultores (MPA) nessa construção?

O MST participa da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. A campanha tem um trabalho de 20 anos, de luta pela educação pública, gratuita e de qualidade, e o MST contribui com esse debate em âmbito nacional. Esses dois movimentos dialogam diretamente com o tema da alimentação escolar. Eles defendem a alimentação saudável e adequada como um direito humano. São movimentos que estão fazendo ações concretas para o enfrentamento da pandemia do coronavírus. Então, foi um movimento, por assim dizer, natural. Exatamente porque eles defendem, e estão lá com os agricultores. 

O MPA e MST são movimentos vinculados, justamente, à produção e ao abastecimento da alimentação saudável. Pensar a alimentação, mais do que nunca, implica pensar também na forma de produção desses alimentos, tão necessários para a garantia de uma alimentação saudável. Além disso, eles são movimentos envolvidos com a política do Plano Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). Lembrando que o PNAE estabelece, no mínimo, a destinação de 30% da aquisição de alimentos da agricultura familiar para alunos da rede pública, da educação básica. 

Dentro do manual há exemplos de boas práticas?

Existem sim alguns exemplos. O caminho mais adequado para garantir o direito à alimentação, durante esse momento crítico, é a manutenção de aquisição de alimentos pelo poder público. E uma forma de garantir isso é respeitando o percentual determinado em lei, de no mínimo 30%. Essa é uma decisão muito importante, porque ela resulta na possibilidade da montagem e distribuição de kits alimentares para as famílias, e desse modo a gente garante que as famílias tenham uma alimentação adequada.

Essas estratégias devem ser planejadas de forma intersetorial com a participação de secretarias de educação, assistência social, agricultura, em diálogo com os conselhos de alimentação escolar e conselhos de segurança alimentar e nutricional, onde elas não sejam tomadas isoladamente. Agora, é importante também notar que tem algumas coisas que não devem ser feitas, como por exemplo, o cancelamento ou o adiamento de entregas e contratos. Os recursos do FNDE são, por lei, destinados exclusivamente para aquisição de gêneros alimentícios. Portanto, os recursos não podem ser transferidos para as famílias. Ou seja, é muito importante que a gente pense em como garantir a aquisição da produção dos agricultores e agricultoras, que se planejaram para abastecer a alimentação escolar e não podem de uma forma abrupta ter seus contratos ou entregas suspensos. Isso geraria um impacto muito grande na vida desses agricultores, justamente, nesse contexto de pandemia. O poder público precisa fazer essa opção: de não suspender ou cancelar os contratos. 

Outro problema que o repasse de verbas gera – apesar de ser uma alternativa fácil – é o risco de aglomeração nos supermercados, uma vez que estimula o deslocamento das pessoas. Além disso, essa perspectiva expressa uma visão de que os supermercados são a opção mais segura de abastecimento, e isso pode promover a exclusão dos agricultores familiares desse circuito de abastecimento. Então, nem sempre saídas fáceis vêm ao encontro do que está sendo assegurado em lei e também ao encontro da garantia do direito da alimentação. 

Pode-se dizer, então, que o guia foi construído para garantir a alimentação saudável para as crianças e também a produção do pequeno agricultor? Ele foi pensado dessa forma?

Exatamente. É importante a gente ter em mente que, se o poder público considerar apenas o cálculo do valor [repassado a estados e municípios por dia letivo para cada aluno], tomando como base o valor per capita, no final, esse valor é irrisório e ele não dá conta de garantir a alimentação, por exemplo, no ensino fundamental. O cálculo per capita que é feito é de R$ 0,36 [por dia], ele se relaciona com a base de compras em larga escala. Sendo esse critério usado para calcular o valor para repassar às famílias durante a pandemia chegaremos a um valor de R$ 7,20 por mês. Ou seja, não daria de forma alguma para garantir a alimentação para essas crianças e para essas famílias. Então, o que a gente percebe é que é necessária a opção política de não interromper o abastecimento. 

O guia orienta também nesse sentido: você tem a família, o estudante que precisa se alimentar, que precisa de uma alimentação adequada, mas não é só comer, tem toda uma família abastecida e a de produtores, que abastecem, envolvidos nessa cadeia produtiva também. 

Edição: Mauro Ramos