Um país que perde alguém como Aldir Blanc sem conceder um doutorado “honoris causa” demonstra suas raízes coloniais: não reconhece sua cultura, portanto.
Enquanto o Brasil assiste, boquiaberto e “de frente pro crime” (no caso, pros crimes de responsabilidade e comuns do presidente da república), ao cordão dos puxa-sacos da ditadura pedindo a volta do regime que matou, roubou e destruiu o país, o poeta da anistia nos morre de coronavírus. Um pouco de todos nós morremos de COVID-19 hoje, e “de frente pro crime” (como diriam Aldir e João Bosco, para escolher uma de sua imensa coleção de canções), com muitos corpos estendidos em valas comuns...
- “De frente pro crime” (Aldir Blanc e João Bosco) – com João Bosco
A morte de Aldir Blanc, seguida do suicídio político de Flávio Migliaccio (a carta deixada pelo ator originado no CPC da UNE e no Teatro de Arena é um dos documentos mais tristes de nossa história recente), parece invisível à cultura do ódio reinante na república terraplanista do Brasil. A senhora Duarte parece não ter dignidade cultural alguma. Só segue, silente e amedrontadamente, seu chefe coronário. Isto, aliás, faz lembrar o discurso de João Calvoso, na trilha de “Era no tempo do rei”, composta por Carlos Lyra e Aldir Blanc, para o livro de Ruy Castro sobre a chegada da família real ao Brasil, no século XIX:
- “Ária do Calvoso” (Aldir Blanc e Carlos Lyra) – com André Dias
“Criminoso, oportunista e cão servil”, além de outros adjetivos de mesmo quilate: alguém tem dúvida de que cabem perfeitamente para o “estróina” de plantão? Aliás, outra do Aldir, dessa vez em parceria com Sílvio da Silva Júnior, que serve como luva no contexto atual é o “Amigo da onça”. As minhas músicas preferidas da dupla Blanc e Silva Júnior são mais românticas (“Nada sei de eterno” – na incrível expressão de Taiguara) e fraternas (“Amigo é pra essas coisas”), no entanto, para o momento a perfeita mesmo é a resposta dos próprios autores para o tema – “Amigo é pra essas coisas 2”:
- “Amigo da onça ou amigo é pra essas coisas 2” (Aldir Blanc e Sílvio da Silva Júnior) – com MPB4
“Você se agarra direitinho no passado”, “Tô falando e andando” (expressão tipicamente brasileira censurada na canção), “Quem está incomodado que se mude”, “Que ingratidão”, “Teu caso só bordoada cura”: todos versos que, sem tirar nem pôr, expressam a briga do ex-juiz com o presidente-insano. Um vive do passado, outro arrependido teve que se mudar. Só bordoada de Brasil na cara dos dois para curá-los...
Pois é, Aldir Blanc era um desses poetas apaixonados pelo Brasil, que vagava sem ser ouvido. Brincando com Ary Barroso ou Silas de Oliveira, deu sua versão para a exaltação do nosso país com suas “Querelas do Brasil” (compostas com Maurício Tapajós). Como pode uma música exaltar e criticar tão bem ao mesmo tempo?
- “Querelas do Brasil” (Aldir Blanc e Maurício Tapajós) – com Elis Regina
Em minha opinião, a maior lição sobre quem são as classes sociais dominadas no Brasil – a nova classe operária, o proletariado, a classe-que-vive-do-trabalho, enfim, o povo – está no “O rancho da goiabada” (também parceria com Bosco). Professoral e ironicamente eu diria – senão vejamos:
- “O rancho da goiabada” (Aldir Blanc e João Bosco) – com Quarteto em Cy
Mas como poeta maior também Aldir, assim como tantos outros, cantou a América Latina. A parceria com a incrível Sueli Costa – à qual se juntou o também importantíssimo companheiro de composições Paulo Emílio – dedicada “Para os meninos da Nicarágua” é notável:
- “Para os meninos da Nicarágua” (Aldir Blanc, Sueli Costa e Paulo Emílio) – com Sueli Costa
O final agonizante da canção é depoimento oposto ao que vivemos no Brasil de hoje: “disposto a doar seu sangue, gota a gota, a gota, a gota... Como gotejam os soros nas noites dos hospitais” um guerrilheiro sandinista se sacrifica para uma nova sociedade. Engraçado que a carta de Migliaccio pedia para que cuidássemos de nossas crianças. Terão esses meninos e meninas futuro?
Bom, o fato é que Aldir era médico de formação, com especialidade em psiquiatria. Continua tendo muito a nos ensinar nesse mundo “louco”. E ainda tem espaço para criticar os planos de saúde, o imperialismo e o estresse do mundo do trabalho moderno no seu sugestivo “Baião de Lacan”, feito a quatro mãos com o desventuroso parceiro de análises, o grande Guinga:
- “Baião de Lacan” (Aldir Blanc e Guinga) – com Leila Pinheiro e Guinga
Quando todos recebemos a notícia da internação de Aldir, comoção inevitável; seu passamento agora então, comoção geral. O Brasil internado e morto num hospital de Vila Isabel. Deixa muita saudade, assim como a que ele tinha pela Guanabara. Minha música preferida dele, inclusive, são as “Saudades da Guanabara”, em coautoria monstruosa ao lado de Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro (se juntássemos Vinícius e Chico, teríamos o quinteto letrista perfeito do Brasil):
- “Saudades da Guanabara” (Aldir Blanc, Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro) – com Moacyr Luz
“E na Vista Chinesa solucei de dor pelos crimes que rolam contra a liberdade”! Quanto simbolismo sem querer querendo!!! E certamente é a China que nos acusa os crimes do capitalismo neofascista brasileiro...
O pedido do salgueirense e vascaíno Aldir para o Brasil tirar “as flechas do peito do meu Padroeiro” é muito forte. Um santo negro vilipendiado simbolizando o Rio como metáfora de todo um país. Impossível não recordar de uma “Lua sobre sangue” como a que ilumina o Salgueiro do poeta (em composição conjunta com Cláudio Jorge):
- “Lua sobre sangue (Salgueiro)” (Aldir Blanc e Claudio Jorge) – com o próprio Aldir Blanc
Alta poesia, no meu modesto modo de ver... Mas altamente popular, também. Espécie de reverso de um Gregório de Matos no século XVII, e sua crítica ferina mas conservadora.
Com essas veredas da canção de Aldir Blanc, apresento, na verdade, minhas preferências dentro de seu repertório genial, priorizando a pluralidade de parceiros e intérpretes. É verdade que faltou uma “pá” de músicas ao lado de João Bosco, unha-e-carne como este último mesmo disse no dia de hoje, por ocasião da morte do camarada. Mas as que foram citadas servem para representar outras obras-primas como inegavelmente o são “O mestre-sala dos mares”, “O bêbado e a equilibrista”, “A nível de...”, “Escadas da Penha”, “Gênesis”, “Incompatibilidade de gênios”, “Kid Cavaquinho”, “Linha de passe”, “Nação”, “O cavaleiro e os moinhos”, “Plataforma”, “Ronco da cuíca”, “Siri recheado e o cacete” e “Tiro de misericórdia”... ufa!
Por fim, a poesia aberta ao tempo que tudo sara, como carta-testamento de Aldir Blanc, sobre o piano de Cristóvão Bastos:
- “Resposta ao tempo” (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos) – com Nana Caymmi
“E o tempo se rói
Com inveja de mim
Me vigia querendo aprender
Como eu morro de amor
Pra tentar reviver
No fundo é uma eterna criança
Que não soube amadurecer
Eu posso, ele não vai poder
Me esquecer...”
Ninguém vai poder esquecer o nosso grande poeta! Aldir Blanc é Aldir Blanc para sempre!
Em resumo:
1. De frente pro crime (Aldir Blanc e João Bosco) – com João Bosco
2. Ária do Calvoso (Era no Tempo do Rei) (Aldir Blanc e Carlos Lyra) – com André Dias
3. Amigo da onça ou amigo é pra essas coisas 2 (Aldir Blanc e Sílvio da Silva Júnior) – com MPB4
4. Querelas do Brasil (Aldir Blanc e Maurício Tapajós) – com Elis Regina
5. O rancho da goiabada (Aldir Blanc e João Bosco) – com Quarteto em Cy
6. Para os meninos da Nicarágua (Aldir Blanc, Sueli Costa e Paulo Emílio) – com Sueli Costa
7. Baião de Lacan (Aldir Blanc e Guinga) – com Leila Pinheiro e Guinga
8. Saudades da Guanabara (Aldir Blanc, Moacyr Luz e Paulo César Pinheiro) – com Moacyr Luz
9. Lua sobre sangue (Salgueiro) (Aldir Blanc e Claudio Jorge) – com o próprio Aldir Blanc
10. Resposta ao tempo (Aldir Blanc e Cristóvão Bastos) – com Nana Caymmi
Edição: Gabriel Carriconde