Minas Gerais

Artigo

Pandemia expõe desigualdade, desinformação e violações de direitos nas periferias

Fake news, hospitais e transportes lotados, falta de água e internet são alguns problemas que podem piorar com covid-19

Brasil de Fato | Belo Horizonte (MG) |
Medidas de proteção social anunciadas para os trabalhadores são insuficientes para equilíbrio econômico das classes - Mídia Ninja

Desde o final de fevereiro, quando tivemos os primeiros casos de COVID-19 no Brasil, passamos a enfrentar o que o presidente dos EUA, Donald Trump, classificou como o maior desafio da humanidade após a Segunda Guerra Mundial. Apesar de não causar impactos socioambientais tão destrutivos como a guerra e a exploração de recursos naturais, ou mesmo a fome, o feminicídio e o combate às drogas, a pandemia do coronavírus tem sido muito discutida por políticos e meios de comunicação, justamente pelo fato de atingir países centrais da economia global.

A rápida expansão do vírus para a Europa e os EUA, através de uma grande malha intercontinental dos transportes, poupou inicialmente a América Latina e a África, onde há menor circulação de mercadorias e pessoas do exterior. O ritmo de propagação mais lento e posterior, entretanto, não significa que os problemas aqui serão menores, pelo contrário. Devido à precariedade dos trabalhos, das moradias e dos sistemas de saúde, além da fragilidade e dependência político-econômica dos países, as projeções ligadas à pandemia para o Sul global não são nada boas, apesar de ainda incertas.

Além da incapacidade de o mercado absorver sozinho os impactos da crise, o que demonstra a importância do papel social do Estado, vivemos uma situação de desinformação em massa, com a concentração das notícias em poucos veículos, que reproduzem informações de meia dúzia de agências internacionais. Além de aumentar a sensação de pânico, o foco extremo nos números e nas declarações oficiais faz com que a mídia deixe de problematizar questões estruturais para o interesse público.

A quarentena nas periferias

Aproveitando-se da desorganização social causada pela pandemia, no último dia 22 de março, o presidente Jair Bolsonaro editou a Medida Provisória 927 que possibilitava a suspensão de contratos de trabalho e de salários por até quatro meses. No dia seguinte, o próprio governo voltou atrás, mantendo os demais itens que alteram as relações trabalhistas no país durante a crise. Em resumo, ela dá poder de lei a acordos individuais entre patrões e empregados, permitindo corte de salários e jornadas pela metade, férias coletivas, banco de horas para cumprimento futuro da jornada não exercida, além da antecipação de férias individuais e feriados não religiosos.

Em rede nacional, o presidente brasileiro também fez duras críticas aos governadores que estabeleceram políticas de isolamento social, com o fechamento de estabelecimentos e a restrição da circulação, como recomendado na Europa, Ásia e EUA. “Os impactos econômicos dessas medidas estariam acima das vidas perdidas”, “idosos do grupo de risco ficam em casa, o restante trabalha”, reproduziram nas redes sociais, em coro com o governo, grandes empresários, como Roberto Justus e os donos da Havan e do restaurante Madero.

Na noite de terça-feira (24), o presidente fez mais um exercício de desinformação e escancarou sua estratégia necropolítica. Em rede nacional durante pronunciamento oficial, Bolsonaro voltou a desdenhar dos riscos do coronavírus, declarou-se imune e fora de risco por seu suposto histórico de atleta, criticou e contradisse as medidas de contenção e isolamento social tomadas por alguns governadores e incitou o retorno de atividades laborais e setores da economia, sugerindo que as escolas, por exemplo, por não reunirem grupos de risco poderiam voltar a funcionar.

Uma semana depois, no pronunciamento que foi ao ar nesta terça (31), o presidente mudou o tom. Disse estar preocupado com a crise sanitária, ainda que continue dando mais destaque à crise econômica. Destacou as medidas do governo federal de apoio a empresas e aos trabalhadores informais. Nesta última, o governo tem tentado capitalizar os ganhos, mas na proposta original enviada ao Congresso Nacional, Paulo Guedes e sua equipe propunham o valor de R$ 200. Após um acordo costurado por partidos de oposição, o Congresso aprovou o valor de R$ 600.

Mesmo mudando o tom, Bolsonaro seguiu disseminando desinformação. Em cadeia nacional, o presidente afirmou que o diretor-geral da Organização Mundial de Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, havia dito que “muitas pessoas, de fato, têm que trabalhar para ganhar o seu pão diário e os governos devem levar essa população em conta”, o que confirmaria o discurso adotado pelo governo federal de priorizar a economia em detrimento do isolamento social para conter a transmissão do vírus. No entanto, o presidente omitiu partes importantes da fala de Ghebreyesus, que na sequência afirmava que era dever dos governos desenvolverem políticas de proteção social à população que se encontrava nessa situação.

No Brasil, as medidas de proteção social anunciadas para os trabalhadores e aposentados são insuficientes para o equilíbrio econômico das classes. Na realidade, as medidas expõem um desmonte da política social do Estado brasileiro, em marcha desde o golpe de 2016. Não esqueçamos do congelamento de recursos da Saúde, através da emenda do teto de gastos públicos; do estímulo às terceirizações e privatizações, que criam trabalhos sem estabilidade, através da reforma trabalhista; além da reforma da Previdência, que afeta a aposentadoria de quem mais precisa de assistência social.

Há ainda relatos de falta de água em bairros periféricos, assim como um risco iminente de diminuição da velocidade da internet, que atinge sobretudo os pacotes básicos e limitados de dados. Diante dos problemas, a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), órgão do Ministério Público Federal (MPF), cobrou esclarecimentos do Ministério da Saúde sobre as ações de combate ao coronavírus nas favelas e periferias. Já em relação aos cortes na rede, o Intervozes protocolou, via Comitê de Defesa dos Usuários de Serviços de Telecomunicações (CDUST) da Anatel, um pedido de proibição da suspensão dos serviços de internet (conexões móveis e banda larga) por 90 dias. As operadoras tentam negociar isenções fiscais e outras manobras para flexibilizar a fiscalização no período da crise.

Mídia alternativa periférica

Uma realidade trágica que as comunidades tradicionais e os bairros periféricos já convivem há muitos anos poderá ser justificada, neste período, para a implantação de uma política de austeridade e de precarização do trabalho, trazendo consequências desastrosas de uma ordem social que nunca foi projetada para preservar o bem-estar geral.

Reagindo ao cenário de violação de direitos, diversas iniciativas têm surgido nas redes e nos territórios periféricos. São ações de distribuição de cestas básicas, arrecadação de recursos e vaquinhas, instalação de faixas e banners sobre cuidados básicos,  além de produções de conteúdo informativo por coletivos de comunicação, cultura e educação populares e comunitários.

Apesar de a grande mídia pautar as periferias, são fundamentais as produções locais, que através de uma linguagem acessível, apresenta forte capilaridade nos territórios, combatendo inclusive muitas fake news que estão sendo criadas com o objetivo de atingir a população mais pobre, se valendo de falsas medidas atribuídas ao Estado (como o pagamento de benefícios) para roubar dados cadastrais das vítimas.

Nesse sentido, quase 100 coletivos de mídia e comunicadores das periferias, de várias partes do país, inclusive territórios tradicionais - que há muito resistem aos silenciamentos e genocídios de classe, raça e gênero - mobilizaram uma coalizão nacional de enfrentamento ao coronavírus através da #CoronaNasPeriferias. Lançada no dia 19 de março, a ideia da frente é compartilhar produções coletivas e reunir esforços para informar seus territórios sobre ações relacionadas ao covid-19.

As medidas tomadas pelo governo Bolsonaro são um exemplo da necessidade e urgência dessas ações coletivas. “Diante de tantas recomendações, a periferia – mesmo sendo a mais afetada -, ainda não está conseguindo participar e se informar como realmente precisa. Precisamos saber apontar caminhos que realmente levem as nossas realidades em consideração”, afirma a coalizão. De forma bem direta, em carta pública, questionam: “Se o governo vai ajudar os grandes empresários a não quebrar, vai ajudar o favelado a pagar suas contas também?”.

Não estaremos mais seguros se nossa sociedade for reduzida a um monte de indivíduos atomizados. Todos precisam se inserir em grupos de maneira a maximizar a segurança, os processos comunicacionais e a capacidade coletiva da organização social. O próprio Estado tem gerado mais pânico e caos social, onde, num contexto de distribuição drasticamente desigual dos recursos, o enfrentamento aos riscos são distribuídos de formas também desequilibradas. Nesse cenário político, mais do que exigir políticas equitativas, precisamos agir.

*Iago Vernek é professor. Kel Baster é jornalista. Ambos integram o Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social.

Edição: Joana Tavares