Paraná

Luta e Samba

Canções para a pandemia

“31 de março/1º de abril Ontem foi hoje? ou hoje é que é ontem?”

Brasil de Fato | Curitiba (PR) |
Composição de Candeia e Arthur José Poerner sofreu censura em 1971 durante a ditadura - Acervo Funarte, 1988

Não tem jeito. No dia de hoje eu sempre lembro o “Calendário perplexo” de José Paulo Paes. O poemeto que nunca deixará de falar por si é a “Dúvida revolucionária”:

“31 de março/1º de abril
Ontem foi hoje?
ou hoje é que é ontem?”

A direita (em seus vários espectros) construiu um imaginário e parece estar próxima de vencer. Até a esquerda caiu no conto do vigário (provavelmente da renovação carismática), propalando que o dia do golpe militar de 1964 foi 31 de março. Se a história nos oferece de bandeja uma piada pronta, por que cargas d’água, meu Deus, vamos desprezá-la? O golpe se deu no dia da mentira, 1º de abril de 1964. Hoje, portanto, rememoramos esse dia nefasto, mas importantíssimo. Primeiro, como tragédia, depois... 

Nessa o amigo Guilherme Daldin, em nossos diálogos pandêmicos, não caiu. Ao contrário, tematizou o cancelamento necessário dos reis do baralho burguês, já que “nos dias de hoje é bom que se proteja”. Aliás, a versão de Ivan Lins para sua tão atual música – que diz: “não pare nas praças, não corra perigo” – está no disco “Nos dias de hoje”, de 1978, em que o cantor e compositor aparece estampado na capa com foto de presidiário, nítida alusão à repressão que nunca poderemos esquecer.

A mentira durou mais de vinte anos. Sobreviveu sob críticas outros vinte ou trinta. Mas parece querer retornar como verdade, com seus capitães e generais de plantão (plantão, até mesmo, feito no Palácio do Planalto), bem como com seus “garotos chicagueanos” da vez. É como se tivesse sido uma bênção milagrosa atravessada por anos de chumbo e iniciada a 31 de março de 1964. E é todo o contrário (à exceção, é lógico, da referência ao chumbo grosso...).

No livro de Zé Paulo Paes, que citei, há uma epígrafe em latim que começa assim: “Omnia tempus habent”, ou seja, “tudo tem seu tempo”. A expressão remete ao Eclesiastes (3, 1) quando diz que "tudo tem seu tempo, cada coisa tem um momento debaixo do céu". A sabedoria bíblica foi parar em poema anônimo de um monge goliardo (a esquerda católica medieval, igualmente desterrada como a de hoje), para dizer que tudo tem seu tempo e basta uma pequena parte dele para apresentar um poema. O poema tornou-se parte, inclusive, da Carmina Burana de Carl Orff.

Pois bem, basta pouco para apresentar alguns versos. Na verdade, menos de três minutos. Mas três minutos que demoraram décadas para reaparecer. Refiro-me a um samba de Candeia, censurado pelo Regime da Mentira de 1º de Abril. A história que envolve este que parece ser o único samba de Candeia censurado pela ditadura de 1964 é excepcional. Quem a descobriu foi o ex-professor da Universidade Federal de Pernambuco, que foi para a de Michigan, Stephen Bocskay.

“Morro do Sossego” é um samba que Candeia fez sobre poema de Arthur Poerner. Poerner era militante e foi preso na ditadura por seus livros, matérias jornalísticas e participação no PCB. Mas o que interessa mesmo é que gostava de música e de compor. Em 1968, antes do AI-5, recebeu Eduardo Galeano em sua casa na região do Jardim Botânico, próximo ao Corcovado, no Rio de Janeiro. Galeano pesquisava para, dentre outros, seu livro “As veias abertas da América Latina” e escutava, à noite, os tambores do terreiro que vinha de um morro próximo. Resolveu ir com Poerner conhecer a quimbanda de Vovô Catirino e ambos ficaram impressionados. Galeano relatou o episódio no capítulo intitulado “Crônica do Burro, do Vovô Catarino e de como São Jorge chegou a galope em seu cavalo branco e salvou-o das maldades do Diabo” do livro “Dias e noites de amor e de guerra”, de 1983. A leitura é obrigatória, o texto espetacular!

Por sua vez, Poerner fez um poema. Era sexta-feira da paixão. Dois anos depois, a pedido de Candeia, mostrou os versos. Candeia gostou. Poerner foi preso e se exilou na Alemanha. Candeia lhe escrevia cartas, dizendo que a música sairia em disco de 1971. E nunca mais se soube da canção. Mas Candeia continuava cantando-a em rodas de samba. Cristina Buarque de Holanda a gravou, pela primeira vez, em 1988, em disco em homenagem a Candeia. Ninguém sabia, nem Poerner nem Cristina, o porquê de nunca ter sido gravada antes. Mas o fato é que ela foi censurada pela ditadura e o professor Bocksay descobriu, só em 2017 (há cem anos do primeiro samba gravado...).

A ditadura vetou quase quatorze mil (!!!) letras de música, pelo menos. Uma delas era “Morro do Sossego”. E por quê? Porque os versos incentivavam “a luta de classes”. Eis o parecer de 26 de maio de 1971 dos agelastas da ditadura. Poerner e Galeano pareciam estar certos em sua intepretação: Vovô Catirino era subversivo. E não por ser comunista, mas porque dizia: “eu não vou mais trabalhar, nasci pra ser humilhado, é mais negócio deitar. Vou deitar até rolar e sonhar pra melhorar, ninguém vai me escravizar”. Ao que parece, os censores não gostaram mesmo foram dos versos finais: “não vou ser esvaziado, pro meu patrão engordar, homem não consome o homem”. Acho que os censores, em sua defesa da mentira, estavam certos. Era a mais aberta luta de classes, em todos os sentidos. E mais certos ainda estão os que criticam a ditadura, hoje, neste dia da mentira.

Agora, no hiato histórico causado pelo coronavírus, vamos continuar torcendo para o “menino pombo que escapa ao morcego”. O menino-pombo é o povo trabalhador; o morcego não é chinês coisíssima nenhuma, tem mais cara de águia careca estadunidense mesmo. Eis a contínua verdade da luta de classes contra a mentira dos que removeram Vovô Catirino do Morro do Sossego para deixar o Redentor em paz. 


CANÇÕES PARA A PANDEMIA: Esta é uma série de diálogos diários de Guilherme Daldin e Ricardo Prestes Pazello sobre música e conjuntura em tempos de pandemia, para resistir ao confinamento. Desde 17 de março, estamos trocando cartas virtuais no “Facebook” e divulgando nas redes sociais.

Essa carta é de Ricardo Pazello, professor da UFPR, músico amador e militante da Consulta Popular.

Escute a música citada acessando o link do Youtube: https://www.youtube.com/watch?v=-ltgdJ5Px_4

Edição: Lucas Botelho